Lingua Ignota — SINNER GET READY

Oferecendo sua outra face menos abrasiva, a artista aprofunda ainda mais sua reconexão tensionada com o sagrado

Giovanni Vellozo
You! Me! Dancing!
5 min readAug 16, 2021

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SINNER GET READY

Lingua Ignota

Ouça: “I WHO BEND THE TALL GRASSES”, “PENNSYLVANIA FURNACE” e “MAN IS LIKE A SPRING FLOWER”
Nota: 8.5
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Ao despontar para um público mais amplo no cenário musical em fins da década passada, a artista estadunidense Kristin Hayter apresentou não só uma música ou uma estética intricada. Era uma proposta de ação. Ela mesma sobrevivente de transtornos alimentares e relacionamentos abusivos, fez de suas composições um “hinário” dedicado a aniquilar essas ameaças. E longe de trazer um conceito isolado em traumas sociais, a Lingua Ignota de Hayter era sonoramente igualmente rica. Criava uma fusão entre elementos de cenas abrasivas do Industrial e do Noise, com rompantes de vocais como vindos das falas-em-línguas de possessões religiosas — com o próprio nome do projeto referenciando a língua criada pela monja Hidergard von Bingen na Idade Média — e instrumentação inspirada por música erudita, presente na formação acadêmica da artista.

Nessa toada, tanto discos como All Bitches Die (2017) e Caligula (2019) como canções retrabalhadas (vide “Jolene” de Dolly Parton) alcançaram uma justíssima aclamação de crítica nos últimos anos. O que leva à incontornável pergunta: what next? A resposta, naturalmente, está em SINNER GET READY, lançado no dia 6.

De uma certa forma, SINNER é ao mesmo tempo uma continuidade e uma transição do projeto a que faz parte. O prosseguimento, no caso, vem no aprofundar de um aspecto que já fazia parte do universo de Lingua Ignota: o Sagrado. A própria canção tradicional que dá título ao álbum até havia aparecido antes, na faixa-título de All Bitches Die, mas o novo trabalho vai mais longe: trata-se de uma espécie de estudo da religiosidade no interior dos Estados Unidos, especificamente da Pensilvânia, onde Kristin passou a residir. Assim, o disco alterna canções inspiradas por textos de denominações religiosas interioranas a um som com instrumentação mais orgânica, emulando de modo possuído pela linguagem desconhecida de Hayter os arranjos com banjos, dulcimers e outras cordas mais presentes na região, como se percebe em “MANY HANDS”, que referencia mais uma vez o tema do pecador alerta.

Esta relação com o divino é, como se esperaria, tensionada. Mas — e isso é um grande mérito — em nenhum momento o disco se converte em uma louvação rasa, nem resvala numa fácil tiração de onda irônica com os signos religiosos que trabalha. Ao contrário, Hayter incorpora esses elementos próximos geograficamente com um distanciamento pensado que faz saltar aos ouvidos sua interpretação singular (pode ser só coincidência, mas em todo caso essa relação me remeteu diretamente a Children Of God, do Swans, álbum também marcado por relações religiosas tétricas entre continuidade e transição do grupo em questão).

Em SINNER, essa performance voraz pode ser resumida em dois momentos com propostas distintas. O primeiro é “I WHO BEND THE TALL GRASSES”, onde a compositora faz uma revisita invertida ao quase-sacrifício de Isaque, como um Abraão ordenando a Deus. “Use any of your heavenly means /Your golden scythe/Your holy sword/Your fiery arrows studded with stars/I don’t give a fuck/Just kill him/You have to/I’m not asking. É o momento mais próximo da catarse e raiva incontida dos trabalhos anteriores do projeto, e a faixa facilmente se destaca do restante nesse quesito.

O segundo vem justamente no single “PENNSYLVANIA FURNACE”, com clipe dirigido por Hayter. Aqui, temos literalmente a desolação em forma de música, própria desses tempos de incertezas pandêmicas. “I watched you alone in the home where you live with your family/And all that I’ve learned is everything burns”. É, de uma certa forma, o símbolo do aspecto de transitoriedade presente no trabalho: ao buscar sons menos abrasivos e uma louvação mais sublimada em seus hinos particulares, a artista faz de Sinner um trabalho, ainda que igualmente impactante, mais telúrico e contemplativo.

Essa escolha pode ter lá suas externalidades negativas. Alguns podem sentir falta de uma radicalidade maior nos vocais, de uma grandiosidade na instrumentação e na duração das faixas. E incontestavelmente há uma variação menor de humores e contrastes, tanto ao longo dos 55 minutos do álbum quanto internamente na composição das peças, algo que se nota especialmente em meados do álbum com arranjos acústicos sem muita novidade ao apresentado antes, como no single “PERPETUAL FLAME OF CENTRALIA”. Mas não se engane: seria forçado e grosseiro considerar que a execução desse novo caminho é uma pasteurização ou uma tentativa barata de atrair públicos — em verdade, se Sinner fosse um Caligula 2.0, talvez não soasse tão verdadeiro quanto soa aqui (ou, ao menos, não refletisse a “realidade da ilusão” proposta pela produção musical minuciosamente pensada por Hayter).

E, saindo da especulação tirada do vácuo, o disco certamente tem momentos recompensadores que são próprios dessa nova sonoridade. É o caso da magnífica dobradinha “MAN IS LIKE A SPRING FLOWER” e “THE SOLITARY BRETHREN OF EPHRATA”, que encerra o disco. A primeira é provavelmente a melhor canção do trabalho, iniciada com uma entrevista de uma prostituta envolvida em um escândalo sexual com o televangelista Jimmy Swaggart (cujo notório discurso de arrependimento em 1988 aparece antes na faixa “THE SACRED LINAMENT OF JUDGMENT”). Corta então para uma polifonia de Kristins ásperas, cantando o insuportável coração do homem. Dos 2 minutos e meio em diante, a estrutura polifônica evolui para a canção-processo: algo como um Reich apalachiano entre vozes e banjos, que desenvolvem em crescendo para a segunda faixa, em entrada abrupta. Em primeiro plano agora, uma entrevista com uma negacionista da COVID que garante estar protegida do vírus pelo sangue de Jesus Cristo. O que se segue é um pop funéreo, encerrando o disco como um réquiem, em uma redenção um tanto agridoce. “All my wounds are mended/Paradise is mine”.

SINNER GET READY surge em uma espécie de interregno tanto do projeto de que faz parte quanto do próprio mundo em que vivemos. Hayter aqui se propõe a equilibrar em meio a uma balança cruel: de um retorno conjunto à Terra e a Deus, de um disco menos beligerante em um mundo onde se vê morte por todo lugar. Goste-se ou não dos novos caminhos, ainda há maestria por aqui. Talvez sempre tenha havido, para aqueles que eternamente se devotaram. É ouvir para (não) crer.

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