Maria Bethânia — Noturno

Ícone da música brasileira, Maria Bethânia retorna com um novo trabalho simples e delicado, mas principalmente majestoso e necessário

Angelo Fadini
You! Me! Dancing!
3 min readAug 27, 2021

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Maria Bethânia

Noturno

Ouça: “Lapa Santa”, “Prudência”, “02 de Junho” e “De Onde Eu Vim”
Nota: 9.8
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Dona de uma interpretação única e voz singular, Maria Bethânia completou 56 anos de carreira em fevereiro de 2021. São 34 discos de músicas inéditas e muitos deles ganharam shows com roteiros também inéditos. Isso porque uma apresentação de Bethânia vai sempre muito além da pura música: há literatura, cenários e performances que variam de uma turnê para outra. Durante essa longa carreira, existiram momentos em que ela obteve mais destaque e outros em que ficou em menor evidência para o grande público. No entanto, algo que sempre a acompanhou em todo este tempo foi a qualidade do trabalho que criou. Nesse sentido, Noturno, seu trabalho deste ano, segue mantendo o nível do material criado por ela e seus parceiros.

Neste disco, Bethânia nos convida para uma viagem ao Brasil do povo comum, algo que vem explorando a algum tempo em sua discografia. No entanto, apesar de parecer algo repetitivo, sempre há uma faceta nova a explorar. A sanfona do sertão se faz presente em “O Sopro Do Fole”, sua Bahia amada é mais uma vez retratada em “De Onde Eu Vim”, a religiosidade do povo simples que mora às margens do Rio São Francisco é representada em “Lapa Santa” e o samba “Cria da Comunidade” passeia por várias paisagens da periferia fluminense. Além de lugares, há muitos sentimentos em Noturno: desde a esperança do poema final “Uma Pequenina Luz” ao desconforto e horror de “Dois De Junho”, faixa que descreve a tragédia que aconteceu com o pequeno Miguel de Recife.

A base instrumental é bastante coesa ao longo do disco, sem grandes variações instrumentais e muito próxima da sonoridade que ela apresentou na live comemorativa de 56 anos de carreira, em fevereiro deste ano. No entanto, apesar de dividirem a mesma base, cada faixa tem sua própria identidade dentro dessa sonoridade. Desde os tons graves das composições de Adriana Calcanhoto (“02 de Junho” e “A Flor Encarnada”) ao bolero existencialista e orquestrado de Tim Bernardes (“Prudência”) passando pelo samba ensolarado em parceria com Xande de Pilares (“Cria da Comunidade”).

Bethânia sempre renovou seu grupo de parceiros e compositores, e em Noturno não foi diferente. Do começo de carreira marcado por músicas de seu irmão Caetano, Chico Buarque e Gonzaguinha, foi agregando novos compositores como Chico César e Adriana Calcanhoto ao longo dos anos. Dessa vez ela adicionou Tim Bernardes e sua já citada bela “Prudência”, um dos pontos altos do disco. Essa renovação de parcerias é um dos fatores que ajudam a manter o frescor em uma carreira tão longeva.

Em seu trecho final, Noturno e Bethânia resolvem nos encher de esperança. Algo mais do que necessário no período que atravessamos O disco é encerrado pela música “Luminosidade” e por trechos do poema “Uma Pequenina Luz” que são majestosamente declamados por ela. A música, uma faixa delicadíssima composta por Chico César, tem uma suavidade no tocar dos instrumentos que se tornam o berço perfeito para a voz que sabe ser potente e, ao mesmo tempo, doce quanto necessário. Já o poema, discorre sobre a resiliência que precisamos ter por vivermos no período que vivemos. A pequenina luz que não se consome, não custa dinheiro, não se deixa apagar por sopros raivosos e brilha (não na distância, mas aqui) é a resistência que precisamos ser.

Bethânia é uma força da natureza e, à essa altura de sua carreira, talvez não precisasse mais se importar em lançar trabalhos inéditos. No entanto, o que ela tem não é somente uma carreira grandiosa. A verdade é que ela tem um caso de amor eterno e pulsante com a música brasileira e ela nutre esse caso com todo carinho, dedicação e envolvimento que ele merece. Para Bethânia, esse não é um caso de amor qualquer. Nunca foi. E Noturno é mais uma prova preciosa desse caso de amor sem fim.

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Angelo Fadini
You! Me! Dancing!

Nascido nos anos 80. Criança nos anos 90. Adolescente nos anos 00. Adulto nos anos 10. Sobrevivendo nos anos 20.