A letalidade policial brasileira e a violação dos direitos humanos

Danielle Moraes
Youth for Human Rights Brasil
6 min readMar 12, 2019

O início do ano de 2019 trouxe ainda mais medo e insegurança para a população jovem e negra do Rio de Janeiro. Já no segundo mês do ano, 15 jovens negros foram mortos em operação da Polícia Militar do Estado nos morros do Fallet e Fogueteiro — região central do Rio. Segundo testemunhas, os jovens foram cercados em uma casa na comunidade e se renderam, sendo torturados e executados.

O muro dos fundos da casa Foto: Thathiana Gurgel / DPRJ — Jornal Extra

Segundo a CPI do Senado brasileiro sobre o Assassinato de Jovens, divulgada em 2016, são mortos por dia 63 jovens entre 15 e 29 anos, totalizando um jovem morto a cada 23 minutos.

Só no ano de 2019, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro matou 160 pessoas e, segundo o Relatório da Humans Right Watch (HRW 2019), houve um aumento de 20% na letalidade policial em comparação ao ano anterior.

Os números são alarmantes e criam ainda mais insegurança por parte da população, que teme a violência, mas também a própria polícia. O braço armado do Estado que, em tese, deveria servir e proteger, age sob ordens que enxergam o cidadão pobre e preto não apenas como criminoso, mas como inimigo em tempos de redução de direitos e apologia à execuções.

Criminalização da pobreza e violações de direitos

A criminalização da pobreza tem papel fundamental para entendermos as altas taxas de letalidade policial não apenas no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil. “Perigoso é ser o pobre, negro, jovem, desempregado, morador da favela. Esses conviverão sempre com o medo e a insegurança, serão sempre vítimas de “batidas” policiais, revistas arbitrárias, serão sempre suspeitos”. (Lemos, 2015).

De um lado, a classe média e alta tenta garantir seus privilégios e seu direito à propriedade privada. De outro, populações marginalizadas que sobrevivem como podem em meio ao medo, sendo atendidas pelo Estado apenas no campo da segurança pública: à base da bala.

A atuação da polícia brasileira fere diversos princípios da Declaração Internacional de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, gravemente. Uma polícia que age também como juiz e carrasco — executando sentenças decididas por si ignorando o direito à vida, o direito ao julgamento justo, à presunção da inocência — somos todos inocentes até provado o contrário e o direito de viver em um mundo livre e justo.

A liberdade e justiça em locais marginalizados são decididas por atores do Estado que não têm competência para tal e ferem, não apenas direitos humanos, mas também princípios fundamentais da Constituição Brasileira. O resultado disso se resume a execução e perda de corpos e mentes jovens que não têm o direito de conhecer outra realidade que não a violência. São corpos tidos como desprezíveis e menosprezados.

Moradores convivem com a violenta realidade de armas de guerra em seu cotidiano. Foto de Mauro Pimentel (AFP)

O Estado, enquanto gestor das políticas de (in)segurança pública, cumpre o papel de segurança privada da burguesia na sociedade. Ao invés de pensar na construção de políticas de prevenção, que dialoguem com o caráter social da segurança e das desigualdades, age eliminando os atores mais vulneráveis desta equação, seja por meio do aprisionamento massivo, seja pela execução.

A assistente social Malú Vale, atuando com jovens em situação de vulnerabilidade no Centro de Referência Especializado em Assistência Social, em Nova Iguaçu, na baixada fluminense, aponta que “a violência policial, talvez, tenha se institucionalizado enquanto política pública a serviço de uma política de genocídio. O impacto está aí, não só nas perdas diretas, mas nas indiretas, quando sequer conseguimos atender essas famílias.(…) São necessárias ações reais que intervenham na realidade local e, se o Estado começar a cumprir as lei que ele mesmo cria, já será de grande avanço.”

“Mira na cabecinha e … fogo”

O então governador eleito no Rio de Janeiro, Wilson Witzel, legitimou a ação policial após suas declarações perigosas como “a polícia vai mirar só na cabecinha e fogo” e “está de fuzil tem de ser abatido”. Por conseguinte, o deputado Rodrigo Amorim (PSL), apresentou pedido à Câmara para homenagear os policiais envolvidos na ação, ignorando a ilegalidade da mesma. O mesmo deputado foi alvo de duras críticas por quebrar uma placa com o nome da então vereadora executada em março de 2018, Marielle Franco, caso que um ano depois permanece sem solução.

Em São Paulo, segundo pesquisa realizada entre 2013 e 2016 por Samira Bueno, ativista dos direitos humanos e membra do Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, 6,1 jovens a cada 1000 são mortos pela polícia, sendo desses 67% negros e pardos, o que demonstra que a conjuntura não é exclusiva ao Rio de Janeiro.

No ano de 2018 o então governador em exercício de São Paulo prestou homenagem a uma policial feminina que matou um jovem negro a tiros, enquanto levava sua filha à escola e o rapaz tentou assaltá-la, sob alegação de legítima defesa.

Por mais que aparente ser deslocada a relação entre a ação policial e o discurso de governantes, este funciona como justificativa do primeiro, mas não apenas. Ao endossar o extermínio por parte da polícia, o Estado ignora e justifica a violação de direitos, colocando a polícia acima do poder judiciário e, criando uma sensação ainda maior de insegurança e medo, que resulta em uma “caça aos pobres”.

Carro onde 5 rapazes foram executados pela polícia no bairro de Costa Barros - RJ, em 2015 com 111 tiros. (Foto: Janaína Carvalho / G1)

Carlos Eduardo Vitorino, 25 anos, negro e morador do Jardim Miriambi, comunidade de São Gonçalo, RJ, conta sua vivência de medo no novo contexto de governantes que defendem abertamente o assassinato em ações policiais e redução de direitos por parte de pobres e trabalhadores:

“Parece que abriram oficialmente, com aval do governo estadual e federal uma temporada de caça aos jovens, pretos, pobres e periféricos, que são os que mais morrem na mão da polícia não só do Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil. Eu me sinto um alvo ambulante nesse campo de caça humano, e isso é extremamente amedrontador. Nos faz ficar em estado de alerta o tempo inteiro.”

Deivi Mattos, 24 anos, morador do Morro do Fubá, no Rio de Janeiro, relata a mesma sensação de medo:

“Bate um medo muito grande, porque parece que aqui no Brasil jovens negros andam com uma placa de alvo nas costas. Então, muitas vezes temos medo de sair à rua à noite sozinhos. Temos medo quando a polícia nos para porque a abordagem é sempre truculenta, com direito a tapas e xingamentos… Isso na melhor das hipóteses, porque quando entram na favela o tiro de fuzil chega antes de nos abordar.”

Os dados e a equação não são novos para a realidade brasileira, mas neste momento, o que se pensa como solução é o que gera mais violência. Os debates, pesquisas e resultados propostos há muito tempo colocam a necessidade premente de discutirmos qual o tipo de segurança pública queremos e precisamos, para a garantia dos direitos, não apenas de minorias representativas, mas de toda a sociedade. Não é com tiro na cabeça que resolveremos o problema da violência, mas com educação, saúde, assistência e empregabilidade. Devemos priorizar a proteção da vida em todas as suas esferas, respeitando seus limites e abrangendo suas possibilidades. Precisamos pensar a política de segurança como integrante da proteção de direitos humanos, que dialogue com a população e outras categorias de proteção à vida, buscando proteger também os agentes do Estado.

A proteção de nossos cidadãos só poderá ser efetiva com uma política de direitos humanos em sua integralidade onde o Estado não seja, em suma, o maior violador de Direitos Humanos.

Referências:

BRASIL. Relatório CPI Assassinato de Jovens. Senado Federal, 2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens

Bueno, Samira. “Trabalho sujo ou missão de vida? Persistência, reprodução e legitimidade da letalidade na ação da Polícia Militar de São Paulo” Fundação Getúlio Vargas, São Paulo: 2017.

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Organização das Nações Unidas (ONU). Disponível em: https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/declaracao/

Gonçalves, Juliana. 2018. “SP: Polícia Mata Mais Negros E Jovens, Aponta Estudo Sobre Letalidade Do Estado”. Brasil De Fato. https://www.brasildefato.com.br/2018/05/21/raca-e-idade-determinam-uso-da-forca-letal-pelas-policias/.

Lemos, Amanda dos Santos. Criminalização da pobreza e a culpabilização do pobre in Punição e prisão: ensaios críticos. Orgs: Francisco Ramos de Farias e Lobélia da Silva Faceira. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro: 2015.

Lemos, Marcela. 2019. “Deputado Homenageia Pms Envolvidos Em Operação Com 15 Mortos No Rio.”. Uol Notícias. https://bit.ly/2VFnUSx.

Right Humans Watch. Relatório Mundial 2019. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/world-report/2019/country-chapters/326447

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Danielle Moraes
Youth for Human Rights Brasil

Escrevo, componho e dou uns rolé po aí. Bacharel em Serviço Social, Mestra em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo pela Universidade Nova de Lisboa.