A luta feminina por Direitos Humanos na América Latina

Juliana Müller
Youth for Human Rights Brasil
8 min readJun 5, 2019

Apesar da falta de visibilidade nos livros de história e na mídia, as mulheres tiveram forte atividade na reivindicação dos Direitos Humanos na América Latina. A partir desse texto, vamos conhecer personagens que lutaram bravamente para que pudéssemos viver hoje uma vida digna e sem distinções, em uma época ainda dominada pelo patriarcado e conservadorismo religioso.

O Direito ao Voto

Até o início do século XX, o voto ainda era na totalidade dos países um direito exclusivo dos homens. Conforme as grandes transformações históricas, ativistas renomadas como sufragistas se mobilizaram no mundo inteiro pelo direito de participação política, representatividade e visibilidade para as causas das mulheres, desde a violência de gênero até a educação igualitária.

ARQUIVO PÚBLICO/BIBLIOTECA NACIONAL- Integrantes do PRF em passeada no Rio de Janeiro. Foto datada entre 1910 e 1920

A luta pela conquista do direito ao voto das mulheres teve como cenário um Brasil altamente conservador, que não conteve esforços para barrar a participação política feminina. Uma das principais precursoras do movimento foi Leolinda Figueiredo Daltro, fundadora do Partido Republicano Feminino (PRF). Embora o registro no Diário Oficial da União, o partido não podia receber nenhum voto, já que era composto somente por mulheres. Mesmo assim, teve forte impacto na época, realizando diversas passeatas a favor do sufrágio universal pelas ruas de Salvador e do Rio de Janeiro, além da elaboração de projetos de lei que concretizassem o voto feminino. “Através da educação, [Leolinda] buscou dar oportunidades para as mulheres se integrarem-se à vida pública. Mais do que uma revolução nos costumes, ela procurou reformar as leis para que a brasileira pudesse atuar de forma equivalente à dos homens, com as mesmas oportunidades e direitos. E assim devemos entender o seu pioneirismo no que seus filhos acharam por bem nomear de ‘feminismo pátrio’. O seu papel na História brasileira merece ser conhecido e reconhecido “, afirma a pesquisadora Mônica Karawejczyk no seu artigo Os primórdios do movimento sufragista no Brasil: o feminismo “pátrio” de Leolinda Figueiredo Daltro.

O trabalho progressista de Leolinda Figueiredo Daltro foi sucedido por Bertha Lutz, conhecida como maior líder na luta por direitos políticos das mulheres brasileiras. A zoóloga foi educada na Europa, onde teve contato com a campanha sufragista inglesa. De volta ao Brasil, se dedicou a luta pelo voto feminino, criando em 1919 a Liga para Emancipação Intelectual da Mulher, e posteriormente, em 1922 a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Bertha também foi responsável pelo primeiro congresso feminista do país, além das propostas pela igualdade salarial, a licença de três meses para a gestante e a mudança na legislação referente ao trabalho da mulher e do menor.

Fonte: Divulgação/UN

Somente através da Constituição de 1934, aproximadamente oitenta anos atrás, no governo de Getúlio Vargas, que se conquistou o voto feminino no Brasil. No entanto, ainda havia muito para se lutar: o preconceito a respeito da inserção da mulher no mercado de trabalho, a violência de gênero e a desigualdade salarial, por exemplo, permaneceram.

A resistência contra as ditaduras

As ditaduras militares marcaram violentamente a história latino-americana, inclusive a luta das mulheres. Tais países latinos compartilham em comum um passado colonial, característicos pela exploração europeia, escravidão e genocídios étnicos. Mesmo depois de conquistadas suas independências, a desigualdade social e exclusão econômica ainda eram realidades no período pós Segunda Guerra Mundial. Vendo sua hegemonia política, econômica e ideológica ameaçada pelo avanço socialista, os Estados Unidos, representante do bloco capitalista durante a Guerra Fria, passou a financiar governos autoritários na América Latina.

Brasil, Argentina, Chile, Peru, República Dominicana e a Nicarágua foram palcos da perseguição política, tortura e censura às ideias opostas ao regime. Dessa forma, a insatisfação popular e clamores por justiça social aumentavam, assim como a manipulação e ocultação dos fatos por parte do governo. Nesse contexto, as Irmãs Mirabal se consagraram como exemplo de luta e resistência.

Fonte da imagem: http://elcoyote.org/as-irmas-mirabal/

´´Se me matam, levantarei os braços do túmulo e serei mais forte``.

Minerva Mirabal era consciente a respeito da repressão exercida pelo ditador Rafael Trujillo, que se concretizou pouco depois de sua ilustre proclamação. O período de 1930 a 1961 foi caracterizado na República Dominicana pela corrupção, concentração de riquezas nacionais e perseguições à oposição. Indignadas com a situação do país, Las Mariposas, como eram conhecidas as irmãs, de família rica e formação universitária, se tornaram figuras conhecidas do ativismo político. Tiveram atuação no meio por dez anos, brutalmente interrompidos pelo assassinato das mesmas.

Em 25 de novembro de 1960, os corpos de Patria, Maria Teresa e Minerva foram encontrados no fundo de um barranco, no interior de um jipe. A morte das irmãs nas mãos da polícia secreta dominicana, ordenado pelo próprio ditador Rafael Trujillo, impactou toda a população, sendo considerado um dos fatores principais para o fim do regime ditatorial.

´´Essa história foi o ´basta` para os dominicanos, que disseram: quando nossas irmãs, nossas filhas, nossas esposas, nossas namoradas não estão seguras, para que serve tudo isso?`` afirma a autora do romance El tiempo de las mariposas, Julia Álvarez. A história das irmãs se converteu em um símbolo mundial de luta da mulher, reconhecida até mesmo pelas Nações Unidas, que declarou o 25 de novembro como Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher.

Outros ícones que não podem ser esquecidos quando se trata de resistência feminina contra as ditaduras latino-americanas são as Mães da Praça de Maio.

A marcha da Madres na Praça de Maio em 1981. Fonte: Carlos Villoldo / NOTICIAC.

Todas as quintas-feiras, às 15:30, mães que tiveram seus filhos desaparecidos ou mortos pela violenta ditadura argentina marchavam em frente a Casa Rosada em busca de respostas. Milhares de famílias, trabalhadores, estudantes, professores e ativistas foram absolvidas por denunciar as violações de direitos humanos que eram cometidas pelos militares. Inúmeras foram as tentativas de conseguir informações do governo sobre o paradeiro dessas pessoas, porém até os dias atuais, as respostas devolvidas foram em forma de silêncio, negação da responsabilidade estatal e repressão.

Os elementos que marcavam suas lutas eram, além do lenço branco na cabeça, a exibição dos protestos frente às câmeras nacionais e internacionais, alertando o mundo sobre a situação que a Argentina se encontrava e fazendo um apelo emocional em busca de respostas sobre os desaparecidos. Essas mulheres enfrentaram a perseguição do governo e as diversas ameaças ao movimento a fim de terem suas vozes ouvidas, seus filhos, amigos e cônjuges de volta, a favor de um regime onde houvesse liberdade de expressão.

O legado deixado pelas mulheres do século XX

Após muitos avanços e retrocessos, as reivindicações das mulheres latinas hoje são outras. No entanto, a herança deixada pelos movimentos passados se torna inspiração e força para as lutas recentes.

Mulheres participam de manifestação a favor do aborto em frente ao Congresso argentino Foto: RAUL FERRARI / AFP/19–2–2018

O lenço das Madres da Praça de Maio voltou a ter visibilidade a partir de 2015 na luta pela legalização do aborto seguro, o fim da violência contra as mulheres e a igualdade salarial.

´´As mães da Praça de Maio são um orgulho e símbolo de luta para muitas pessoas, inclusive eu`` relata Camila Morant, jovem argentina ativista pelo movimento da igualdade de gênero. ´´São vozes de uma juventude feminista que está crescendo a cada dia na Argentina e em toda a América Latina. Acredito que somos nós que mantemos vivo o espírito da luta, já que predominamos nas lutas sociopolíticas e não hesitamos em defender nossas companheiras. ``

O feminismo contemporâneo, que conquista cada vez mais espaço na América Latina, visa ser universal, abrangendo de fato todas as mulheres, independente da etnia e origem socioeconômicas.

Esse se estende também aos povos Indígenas, através de líderes feministas como a mexicana Elvia Carrillo Puerto — primeira deputada eleita, responsável pela primeira Liga Feminista Campesina, onde lutou pelo fim do trabalho indígena escravo e a ampliação da educação feminina — e a guatemalense Rigoberta Menchú — detentora de um Prêmio Nobel da Paz pela sua luta a favor dos territórios indígenas. Ambas as mulheres foram amplamente reconhecidas por seus trabalhos na área de Direitos Humanos, recebendo diversos prêmios por justiça social e étnico-cultural.

O feminismo negro também é de incrível representatividade e fortes reivindicações. No Peru, a ativista afrodescendente Victoria Santa Cruz mobilizou multidões ao declamar seu poema ´´Gritaram-me negra``, em referência ao preconceito que vive desde sua infância. Victoria luta pela construção da identidade negra através da valorização das tradições musicais e culturais. No Brasil, o movimento tem a ilustre presença de mulheres como Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional, Kenya Mara, atriz defensora dos Direitos das Mulheres Negras pela ONU Mulheres Brasil, e Ana Maria Gonçalves, escritora do romance ´´Um defeito de cor``.

A luta das mulheres latinas por seus próprios direitos e das minorias alcança a cada dia mais adeptos e resultados. Por esse mesmo motivo, suas histórias devem ser reconhecidas, preservadas e amplamente divulgadas para toda a sociedade, para que assim, as reivindicações de líderes à frente de seu tempo, como Leolinda Daltro, as Irmãs Mirabal e Roberta Menchú, sejam de fato ouvidas.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Lorena. A Tragédia das Irmãs Mirabal: O Assassinato que deu origem ao Dia Mundial da Não Violência Contra a Mulher. BBC Mundo. 25 nov. 2014. Disponível em: <www.bbc.com/portuguese/internacional-42125587> Acesso em 25 abr. 2019.

SOUSA, Rainer Gonçalves. “Ditaduras latino-americanas”; Brasil Escola. Disponível em <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/militar.htm>. Acesso em 27 de abril de 2019.

ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.

ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jacqueline. O Que é Feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil, 1850–1940. Tradução de Eliane Lisboa. Florianópolis: Ed. Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

TOSI, Marcela. Conquista do Direito ao Voto Feminino. Politize. 18 ago. 2016. Disponpível em <https://politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/> Acesso em 25 abr. 2019.

MARTINELLI, Andréa. Quem foi Leonida Figueredo Daltro, que há 108 anos fundou o Partido Republicano da Mulher. Huffpost Brasil. 24 fev. 2018. Disponível em <https:// huffpostbrasil.com/2018/02/24/quem-foi-leolinda-figueiredo-daltro-que-ha-108-anos-fundou-o-partido-republicano-da-mulher_a_23370082/> Acesso em 27 de abril de 2019.

Bertha Lut. Senado Federal. Outubro 2015. Disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/bertha-lutz> Acesso em 27 de abril de 2019.

Feminismo Atual É Herança Das Avós da Praça de Maio. Folha de São Paulo. 5 fev. 2019. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/feminismo-atual-e-heranca-das-avos-da-praca-de-maio-diz-presidente-do-grupo.shtml> Acesso em 25 abr. 2019.

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Juliana Müller
Youth for Human Rights Brasil

17 anos e um sonho de viajar o mundo dando voz a pessoas incríveis e levantando questões sociais de pouca visibilidade.