A Violência Contra a Mulher Velada no Mundo do Futebol
O que Cristiano Ronaldo, Diego Maradona e o goleiro Bruno têm em comum?
A violência contra a mulher é a violação de direitos humanos mais tolerada do mundo, segundo a ONU. Essa tolerância ganha ainda mais força quando se trata de grandes astros do futebol e agressões praticadas durante eventos esportivos.
Um exemplo que ilustra esse argumento é o caso de Eliza Samúdio, modelo assassinada pelo goleiro Bruno Fernandes, tendo repercussão no mundo inteiro. As investigações constam que a jovem tenha sido morta por estrangulamento e que, em seguida, o corpo teria sido esquartejado e enterrado sob uma camada de concreto. No entanto, esse crime brutal contra mulher poderia ter sido evitado de forma simples: ouvindo a vítima.
Um ano antes de sua morte, a modelo havia prestado queixa à polícia sobre a violência que já vinha sofrendo do jogador. Ela denunciava ter sido obrigada a tomar substâncias abortivas, sofrer espancamentos e ser mantida so cárcere privado pelo goleiro e seus amigos, Macarrão e Russo. Na época, Bruno divulgou a imprensa uma nota negando a agressão:
“Não é a primeira fez que ela inventa esse monte de mentiras para tentar me prejudicar. Da outra vez não provou nada e não vai provar nada novamente, porque inventou essa história toda. (…) Por isso tudo, decidi que só vou me manifestar através do meu advogado, que irá tomar todas as medidas cabíveis para impedir que ela continue tentando me prejudicar. Ela não se conforma porque já deixei claro que não quero nenhum tipo de relacionamento com ela. Não vou dar a essa moça os 15 minutos de fama que ela tanto deseja.”
Depois da queixa, a única medida imposta ao goleiro foi de manter distância de pelo menos 300 metros de Eliza, provando que, ainda nos dias atuais, a palavra de uma mulher não vale nada contra um homem. O Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro só comprovou as agressões quando concluiu os exames periciais, depois que Eliza já havia sido assassinada. Bruno foi condenado a 22 anos e três meses de cadeia.No entanto, em fevereiro de 2017 teve uma breve permissão para voltar sua carreira no futebol, como goleiro do time Boa Esporte Clube.
No seu primeiro dia de volta ao campo, foi recebido com muita adoração pelos torcedores e tirou diversas fotos com crianças, inclusive um dos meninos chorou ao ver o ídolo de perto. “Como pode colocar o seu filho de menor ao lado de um assassino?”, questiona Sônia de Fátima Moura, mãe de Eliza Samúdio, lembrando que muitas crianças que hoje idolatram Bruno têm a idade de seu neto, Bruninho, filho do jogador, que foi sequestrado e mantido em cárcere privado pelo próprio.
A partir desse evento, podemos observar que as atrocidades cometidas pelo jogador foram logo toleradas, ou até mesmo esquecidas pelos torcedores, que ignoraram seus crimes bárbaros frente a uma habilidade nos campos.
E o Cristiano Ronaldo?
Infelizmente, esse não é um caso específico de violência contra a mulher no mundo do futebol. Grande parte das agressões nem chega ao público, porque são rapidamente abafados por acordos milionários. Um exemplo nítido é o caso de violência sexual cometida pelo craque Cristiano Ronaldo contra a alemã Kathryn Mayorga em 2009.
As acusações só vieram à tona em 2017, publicadas pelo jornal Der Spiegel. Diante disso, o jogador se pronunciou pelas redes sociais: “O que foi publicado é uma ‘fake news’, eles querem se promover usando meu nome.Não vou alimentar o espectáculo mediático montado por quem se quer promover à minha custa.”
No entanto, segundo o jornal The Sun, que teve acesso aos documentos legais da investigação, o ídolo português admitiu à sua equipe jurídica que a mulher disse ‘’não” e ‘’pare’’ durante o ato sexual, o que logo caracteriza a ação como estupro. Foi constatado que Cristiano Ronaldo promoveu um acordo extrajudicial em 2010 no valor de US$ 375 mil para que Mayorga retirasse todas as acusações. A mulher afirmou só ter aceitado porque temia por sua própria vida e de seus familiares.
Já faz quase um ano desde a publicação, e o que foi feito desde então? Nada. CR7 continua sendo idolatrado no futebol, jogando pelo Juventus e com um humilde salário de 30 milhões de euros. Assim, é arquivado mais um depoimento de uma mulher, vítima de um crime hediondo, tolerado porque, afinal, é ‘’só mais uma querendo seus 15 minutos de fama’’. A palavra de uma mulher não vale nada comparada a de um ídolo do futebol.
A lista de casos parecidos é grande, possuindo vários personagens famosos que saíram ilesos, como ídolo argentino Maradona, o jogador Carlos Alberto, do Figueirense, e Dudu, do Palmeiras. Um que se destacou recentemente, por exemplo, foi o do colombiano Pablo Armero. A esposa do jogador, María Bázan, foi encontrada chorando no chão de um hotel em Miami, com suas extensões de cabelo cortadas.
María disse à polícia que foi agredida pelo marido ao recusar fazer sexo com ele. “Não, estou muito cansada”, disse ela segundo o relatório. Armero foi levado à delegacia, acusado por violência física contra sua mulher, pagando a fiança de US$1,5 mil por sua liberdade. O jogador costumava ser amado por seu carisma e celebrações excêntricas, e o incidente por suposto colocaria fim a toda sua boa reputação. Porém, não foi bem assim. O crime, como o feminicídio cometido pelo goleiro Bruno e o estupro pelo Cristiano Ronaldo, caiu rapidamente no esquecimento, fazendo com que em março do ano seguinte Pablo Armero fosse convocado para jogar pela Colômbia na Copa do Mundo.
“Como mulher, quero lhe dizer que me sinto agredida por sua convocação. Eu não compartilho isso na minha seleção, onde estão meus ídolos, há um homem que maltratou sua esposa” , disse a jornalista Andrea Guerrero, da RCN. As instituições colombianas de futebol, assim como os telespectadores, estavam dispostas a ignorar o incidente, a tolerar o abuso doméstico praticado pelo jogador. A jornalista ainda informou a ONU Mulheres que, desde que seu comentário se tornou viral, estava recebendo ´´ameaças constantes``.
As relações entre o abuso doméstico e o futebol não se limitam somente às grandes personalidades. Números obtidos pelo The Nation e a Universidade Central de Lancashire registraram que há um grande aumento da violência contra as mulheres no período de Copa do Mundo.
Na Colômbia, os casos aumentam em média de 25 a 38% nos dias de jogos da Seleção Nacional Colombiana, e quase 50% durante a Copa América. Na Inglaterra, o fenômeno foi semelhante, sendo um aumento das agressões em até 30% quando sua seleção é derrotada em campeonato mundial, segundo uma pesquisa realizada pelo estatístico Allan Brimicombe e pela jornalista da BBC Rebecca Café.
Portanto, o culpado pelo aumento da violência contra mulher durante esses períodos não é o futebol em si, mas sim os homens agressivos e a cultura do machismo. A sensação de identidade exagerada, combinada com um ambiente emocionalmente carregado e o consumo incontrolado do álcool — muito estimulado pelos patrocinadores dos eventos esportivos — são fatores que agravam as estatísticas. Tais festividades tendem a relaxar as normas sociais e a tolerância. Os jogos proporcionam uma fuga da rotina diária, um ambiente no qual a bebida é idolatrada e as grosserias acompanhadas de gritos são comuns, até mesmo esperados.
Juliana Ospitia Rozo, psicóloga da Sisma Mujer, uma organização que trabalha com mulheres vítimas de violência doméstica, afirma que ´´os homens não sabem o que fazer com essas emoções. Socialmente eles não são informados sobre o que fazer ou são instruídos a reprimi-los; Então, quando eles estão imersos em um mar de emoções, eles não sabem como processá-las nem como elaborá-las``
Os grandes clubes de futebol, assim como a Fifa, continuam sendo instituições dominadas por homens, fazendo pouco provável que concedam visibilidade ao fim da violência doméstica. Diante desse fato, nasceram incríveis movimentos com objetivo de promover a igualdade de gênero no meio do futebol e o fim das agressões. Dentre eles, o No Es Hora de Callar, criado pela jornalista Jineth Bedoya na Colômbia, sobrevivente de sequestro e estupro; o movimento #unrossoallaviolenza (“um cartão vermelho para violência”), promovido pela WeWorld Onlus, na Itália; e o Stand Up World Cup, pelo Tender Education and Arts Organization, na Inglaterra.
A mobilização pelo fim da violência de gênero no futebol também aconteceu no Brasil. A jogadora Marta, escolhida melhor do mundo por seis vezes, se juntou a ONG streetfootballworld e o Fundo Elas ao lançar em 2014a campanha “16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, que contou com diversas atividades para debater, dar visibilidade e disseminar informação a respeito da luta das mulheres.
“A ideia é unir as boas práticas do futebol para a inclusão de gênero e dar visibilidade à luta pelo fim da violência contra as mulheres. O esporte tem um poder de trabalhar diversos aspectos da vida, da sociedade; por isso, é tão importante disseminar essa mensagem utilizando a paixão das pessoas” — afirma Mirella Domenich, gerente geral da streetfootballworld Brasil.
“A violência contra as mulheres ocorre em todos os continentes e em todos os países, fazendo desta uma das mais disseminadas violações dos direitos humanos por todo o mundo”, destacou Helen Clark, A administradora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Ela ainda ressalta que a eliminação das práticas prejudiciais contra mulheres e meninas é parte da Agenda 2030, e estão incluídas em metas específicas nos recentemente adotados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Apesar das enormes dificuldades para alcançar essas metas, através dos meios de mídia há uma mobilização cada vez maior e essas campanhas conquistam, gradualmente, maior espaço de voz. Diante desses movimentos, é possível observar um avanço, mesmo que lento, para que os danos causados às mulheres por monstros como Bruno, Pablo Armero e Cristiano Ronaldo sejam devidamente reconhecidos e penalizados. A violência contra a mulher é inadmissível, seja o agressor um grande nome do futebol ou um mero telespectador, tanto em tempos de copa do mundo ou de rotina comum.
Referências:
NAÇÕES UNIDAS, 2016 : A Violência Contra a Mulher e a Violação de Direitos Humanos (Disponível em: nacoesunidas.org/violencia-contra-a-mulher-e-a-violacao-de-direitos-humanos-mais-tolerada-no-mundo-afirma-onu/)
EL TIEMPO, 2018 : La Violência Contra la Mujer en Colombia se Dispara Durante los Mundiales (Disponível em: eltiempo.com/justicia/delitos/la-violencia-contra-la-mujer-en-colombia-se-dispara-durante-los-mundiales-289490)
BBC : Estudo liga Futebol a Aumento da Violência Doméstica (Disponível em: bbc.com/portuguese/noticias/2012/10/121015_futebol_violencia_domestica_mv)
DIBRADORAS, 2018 : Itália Combate Violência Doméstica no Futebol e dá Exemplo ao Brasil (Disponível em: dibradoras.blogosfera.uol.com.br/2018/11/23/italia-combate-violencia-domestica-no-futebol-e-da-exemplo-ao-brasil/?cmpid=copiaecola)
O TEMPO, 2017 : Selfies Com Crianças e Oração: As Imagens do Primeiro Dia de Bruno no Boa (Disponível em: otempo.com.br/superfc/futebol/selfies-com-crian%C3%A7as-e-ora%C3%A7%C3%A3o-as-imagens-do-1%C2%BA-dia-de-bruno-no-boa-1.1447318)
THE SUN, 2018 : Cristiano Ronaldo Admitted Lawyers Kathryn Mayorga Rape (Disponível em: https://www.thesun.co.uk/sport/7405344/cristiano-ronaldo-admitted-lawyers-kathryn-mayorga-rape/)
OGLOBO, 2014 : Marta Lança Campanha Pelo Fim da Violência Contra as Mulheres (Disponível em: oglobo.globo.com/esportes/marta-lanca-campanha-pelo-fim-da-violencia-contra-as-mulheres-14654000)