América Latina, Democracia e Direitos Humanos: 3 conceitos inseparáveis

Bianca P. de Andrade
Youth for Human Rights Brasil
7 min readMar 20, 2019

Soy América Latina, un pueblo sin piernas pero que camina!
…Aquí se respira lucha
(Calle 13)

Mural “Por la hermandad entre los pueblos latinoamericanos” -Potosí, Bolívia

A América Latina é uma região que compreende 20 países do continente americano: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

A autoria e origem da nomenclatura “América Latina” divide opiniões e não há consenso exato sobre quem o tenha inaugurado (Souza, 2011). Se foi um poeta-jornalista, um intelectual-socialista ou um sociólogo-diplomata, não se sabe, mas podemos nos debruçar a compreender o conceito. Afinal, o que faz destes países, latinos?

Traços culturais e geográficos certamente nos unem, mas o compartilhamento mais marcante entre nós é o passado colonial. Todos estes países passaram por um processo de colonização protagonizado por Espanha e/ou Portugal, países que têm idiomas de raízes comuns no latim. E por sermos antigas colônias, todos estes territórios foram estigmatizados pelos europeus e suas missões “civilizatórias”.

Espanhóis e Portugueses escreveram por muito tempo nossa história através de práticas violentas de exploração e desumanização. As independências e lutas pela descolonização foram intensas e muitos Estados latinos contemporâneos seguem reproduzindo práticas herdadas do passado colonial.A negação da dignidade e o sacrifício contínuo da democracia são algumas delas.

É impossível falar de América Latina sem destacar os processos conturbados e instáveis nas suas democracias. Com isso, percebe-se que ao longo da história latino-americana, democracia e direitos humanos são termos indissociáveis. Mas afinal, como se dá essa relação? Por que América Latina, Democracia e Direitos Humanos estão tão ligados? Vamos descobrir!

Para Kathryn Sikkink (2015), a América Latina pode ser considerada uma região protagonista na luta em defesa dos Direitos Humanos. A autora nos lembra que a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (conhecida também como “Declaração Americana”) foi a primeira declaração intergovernamental de direitos, que precede, inclusive, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) da assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU).

A Declaração Americana foi instituída oito meses antes da DUDH, em abril de 1948. Sikkink menciona que a construção da Declaração Americana foi forte influência para a elaboração e produção da DUDH, portanto, a contribuição e os esforços latino-americanos para o regime dos Direitos Humanos no mundo é merecedora de destaque.

Para ela, a mobilização da região em torno desses temas não é produto da liderança de grandes potências, e sim uma continuação de uma tradição de ativismo e proteção a tais direitos. Vale mencionar que diversos fatos históricos puseram as democracias e os direitos dos cidadãos e cidadãs latino-americanas em risco.

Além de todo o passado colonial de exploração e genocídio dos povos tradicionais, a história moderna e contemporânea da América Latina coleciona momentos de tensão política, violência e forte reação e mobilização de movimentos sociais em favor do reconhecimento, formalização e garantia de direitos.

A região viveu décadas de ditaduras militares entre os anos 60, 70 e 80. Milhares de pessoas foram mortas e torturadas, outras milhares ficaram desaparecidas e suas famílias seguem sem respostas, por resistirem a regimes extremamente autoritários e antidemocráticos, que forjaram um inimigo comum a combater, com influência direta dos Estados Unidos em meio à Guerra Fria.

Com o discurso de “combate ao comunismo”, militares ceifaram vidas e deixaram sequelas e heranças sombrias para inúmeros países da região. Guatemala (1954), Paraguai (1954), Argentina (1962), Brasil (1964), Peru (1968), Uruguai (1973), Chile (1973), República Dominicana (1978), Nicarágua (1979) e Bolívia (1982) sofreram golpes em suas democracias e tiveram que viver sob a sombra de regimes ditatoriais por longos anos.

Após a “redemocratização”, os governos restabeleceram direitos ao voto, à expressão, à livre associação e à livre manifestação, por exemplo, que ficaram suspensos durante as ditaduras. Só a partir deste momento temos condições de considerar, em alguma medida, a plenitude das democracias na região, pois antes os países já vinham sido marcados por governos oligárquicos, regimes de representação indireta, de baixa participação e representação, e bastante excludentes.

Diferentes caminhos foram tomados para os processos de transição rumo à democracia. Argentina e Chile, em seus períodos pós-ditatoriais desenvolveram fortes políticas, denominadas “justiça de transição”, que visavam estabilizar a ordem democrática através dos pilares de Memória, Verdade e Justiça, em que autoridades militares foram responsabilizadas e punidas pelos crimes cometidos. Além dos esforços para a criação de espaços e movimentos que preservam a memória e a inadmissibilidade de novos regimes semelhantes.

Por outro lado, o Brasil assinou uma Lei de Anistia, que perdoaria todos os crimes e violações cometidas, por agentes de Estado e militantes resistentes ao regime. Tal medida foi extremamente prejudicial para a preservação da memória daquele período e para a prevenção de novos acontecimentos como aquele. Os altos índices de abuso de poder e violência por parte da Polícia Militar ainda existente no país, a posição de destaque no ranking de países que mais matam defensores de direitos humanos e a ode à volta do militarismo e aos torturadores do regime como heróis, na atualidade, são sinais graves de como as políticas de justiça de transição fizeram falta por aqui.

Já durante os anos 2000, a América Latina viveu uma realidade que pode ser analisada como resultado de um processo de reação progressista frente aos anos de ditadura e redemocratização. A chamada “onda rosa” foi um período em que houve uma guinada à esquerda nos países latinos, que elegeram em sua maioria presidentes provenientes de partidos reformistas. Muitos avanços foram alcançados em termos sociais, de redução da pobreza, acesso a direitos e políticas voltadas à redução de desigualdades. Entretanto, as jovens democracias latinas seguiram sofrendo com suas vulnerabilidades e fragilidades.

Os últimos 10 anos marcaram a região como um período de novos e diversos ataques às democracias latino-americanas, acompanhado de uma nova onda de ascensão de líderes de direita e extrema-direita. Em 2009, um golpe tirou o presidente Manuel Zelaya do poder em Honduras. Em 2012, Fernando Lugo foi deposto da presidência do Paraguai. Em 2015 foi instaurado o processo de impeachment à presidenta Dilma Rousseff no Brasil, que se concluiu em 2016 com a retirada da mesma do poder Executivo brasileiro. Em 2019, o presidente da Assembleia Nacional da Venezuela se autoproclama Presidente da República e passa a liderar o movimento para deposição do Presidente Nicolás Maduro, no momento em que o país enfrenta o pior momento de sua crise, sob eminente risco de uma intervenção militar estadunidense.

Todos os golpes recentes tiveram uma roupagem legislativa/judiciária, com forte influência e manipulação das massas, protagonizadas por uma oposição de direita que acaba por assumir os poderes desses países logo na sequência. Polarizações políticas e sérias crises de representatividade são uma realidade em toda a região e muitos dos direitos humanos conquistados ou resgatados durante a onda rosa estão sob sérias ameaças.

Diante de todas as reflexões aqui trazidas, conclui-se de maneira sintética que:

1. A América Latina só é lida como um grande conjunto de países por seu passado colonial comum.

2. Tal passado não foi totalmente deixado para trás, visto que a democracia e os modelos institucionais aqui desenvolvidos são inspirados nos moldes coloniais.

3. Essas democracias, além de jovens, ainda são frágeis e têm vivido vários períodos de instabilidade e ameaças.

4. Regimes democráticos sob ameaça, suspensos e/ou vulneráveis e Estados negligentes às questões sociais, e coniventes com a manutenção das desigualdades existentes, acabam se tornando os maiores violadores de Direitos Humanos na prática.

Apesar de o conceito moderno e liberal de Direitos Humanos não contemplar todas as necessidades latino-americanas, de não ler todos os níveis e facetas da desigualdade e pobreza peculiares à região e à sua realidade pós-colonial, os movimentos sociais e de ativismo na região latino-americana seguem resistindo, usando suas próprias ferramentas e metodologias de luta e resistência, em meio a contextos repressores, conservadores e fascistas. Os Estados não farão pelo povo, se o povo não reivindicar suas pautas, necessidades e direitos. Portanto, é necessário que cada vez mais as pessoas se preocupem com a manutenção e a garantia dos mesmos. A educação e o acesso à informação de qualidade podem ser um caminho possível.

Precisamos de reforços! Vamos juntos(as)?

Aqui vão algumas dicas de obras interessantes para pensar a América Latina:

Música: Latinoamérica — Calle 13
De donde vengo yo — ChocQuibTown
Antipatriarca — Ana Tijoux

Poesia: Las dos Américas — José María Torres Caicedo (1857)
Canto Geral — Pablo Neruda (1950)

Livro: As Veias Abertas da América Latina — Eduardo Galeano

Filme: Uma noite de 12 anos — Álvaro Brechner (disponível na Netflix)

Documentário: Condor — Roberto Mader (disponível no Youtube)

Stand-up: América Latina para Imbecis — John Leguizamo (disponível na Netflix)

Museus/Memoriais:
Espacio Memoria y Derechos Humanos — Buenos Aires, Argentina
Memorial da América Latina — São Paulo, Brasil
Museo de la Memoria y los Derechos Humanos — Santiago, Chile
Memorial da Resistência — São Paulo, Brasil
Monumento a las Victimas del Terrorismo de Estado — Buenos Aires, Argentina
Museo de la Memoria — Montevidéu, Uruguai

Referências:
ANISTIA INTERNACIONAL. Informe 2017/18. O estado dos direitos humanos
no mundo.
Pol10/6700/2018. ISBN: 978–0–86210–499–3. 2018.

DINIZ. Dilma C. B. O conceito de América Latina: uma visão francesa. CALlGRAMA. Belo Horizonte, 12: 129–148. Dezembro de 2007.

LAGOS, Marta. El fin de La Tercera Ola de democracias. Latinobarómetro. Diciembre de 2008

PETRY, Almiro. A Democracia e os Direitos Humanos na América Latina. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Formação Humanística. Eixo: América Latina. 2008.

SIKKINK, Kathryn. Protagonismo da América Latina em Direitos Humanos. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos. SUR 22 — v.12 n.22, p. 215–227, ano 2015.

SOUZA, Ailton. América Latina, conceito e identidade. PRACS: Revista de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, Macapá, n. 4, p. 29–39, Dezembro de 2011.

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Bianca P. de Andrade
Youth for Human Rights Brasil

Feminista, internacionalista, pesquisadora e mestranda em Integração Contemporânea da América Latina pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana