Direitos Humanos e povos indígenas no Brasil: do ideal romântico à realidade atual
De Gonçalves Dias a José de Alencar, a literatura brasileira do século 19 é repleta de referências aos seus habitantes tradicionais. Os povos indígenas, na literatura indianista romântica da época, eram retratados de maneira idílica, em obras como O Guarani, Iracema, Ubirajara e Canção do Tamoio, contribuindo para a construção da imagem de “bom selvagem” em torno desses indivíduos. Essa visão distante e, por vezes, equivocada dessas populações tradicionais se prolongou ao longo dos séculos, o que levanta a relevância do estudo de seus efeitos na atualidade.
Como irá se argumentar aqui, esse idealismo romântico que paira sobre a questão indígena no Brasil de nada lembra os sucessivos desrespeitos a seus direitos. Desde a Carta Régia de 1609, em que se menciona pela primeira vez o direito à propriedade da terra indígena (ver CUNHA, 1994), até a Constituição Federal de 1988, em suas expressões mais detalhadas, iremos nos ater ao contraste entre lei e realidade, num retrato que se constrói sob a perspectiva dos Direitos Humanos, com especial apoio da Declaração Universal das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas (2007).
O que diz a lei
Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em seu art., 17°, § 1º. “Toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade” (AGNU, 1948). Apesar de sabermos que a Declaração não menciona grupos étnicos ou sociais de forma direta, a propriedade se destaca enquanto temática aqui, remetendo às questões de posse e demarcação de territórios originais das nações étnicas que já habitavam o continente americano antes da chegada dos europeus. Como veremos mais adiante, a problemática é renitente.
Para o direito brasileiro, conforme a Constituição Federal de 1988, art. 231, § 1º, ao versar sobre o conceito de terras indígenas, diz-se que:
“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (BRASIL, 1988).
De forma complementar, e talvez mais importante, o caput do mesmo artigo (231) prescreve: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (op. cit., 1988). Ao citar o reconhecimento inalienável à organização sociocultural — em alguma medida, ligada à terra –, o texto constitucional brasileiro dialoga amplamente com o que reza o artigo 22º da DUDH, qual seja:
“Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país. ” (op. cit., 1948)
Isso posto, emergem os questionamentos: em que medida têm sido respeitados os direitos das populações tradicionais à terra, no tocante à demarcação, e quais violações podem ser identificadas na busca por sua efetividade? Para verificá-lo, é fundamental que recorramos aos veículos de imprensa e aos portais dos principais observatórios nacionais que se dedicam a estudar, divulgar e fortalecer a opinião pública nessa temática (ver seção A conjuntura atual).
Por hora, iremos nos ater a outro aspecto da preservação e continuidade tradicional indígena, desta vez, de cunho imaterial: a cultura.
Herança imaterial
De acordo com a Declaração Universal das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas (2007), em seu artigo 1º, § 1º, “Os povos e pessoas indígenas têm direito a não sofrer assimilação forçada ou a destruição de sua cultura”, ao que se segue (art. 2º, “a”) o dever dos Estados em estabelecer:
“[…] Mecanismos eficazes para a prevenção e a reparação de: a) todo ato que tenha por objetivo ou consequência privar os povos e as pessoas indígenas de sua integridade como povos distintos, ou de seus valores culturais ou de sua identidade étnica” (AGNU, 2007).
No Brasil, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), segundo Decreto nº 9.010 (23 mar. 2017), tem por finalidade (art. 2º, “a”):
“Formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios: a) reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas”.
A preservação da cultura e perpetuação da memória e das tradições são de fundamental importância aqui. Novamente, é cabível averiguar se a letra da lei se faz valer na prática e quais medidas têm sido implementadas para tal. É importante também considerar as atividades escolares, que visem a transmitir conhecimento, até mesmo em língua vernácula (idioma da aldeia), como um meio de resistência cultural.
Direito à autodeterminação dos povos
O reconhecimento da pluralidade normativa, ao qual se dá o nome de autodeterminação, é também um óbice para a reparação das violações históricas aos povos indígenas. Nem sempre se fazem cumprir mecanismos como a Convenção 169-OIT, que prevê (art. 8.2 e 9.1) a conservação de costumes, instituições e métodos próprios dessas populações. Essa questão se constitui, segundo Souza (2008, p. 6–7), como uma:
“[..] Discussão sobre as possibilidades de reconhecimento dos Direitos indígenas no Estado brasileiro, na tentativa de superar o colonialismo jurídico a que estão submetidos os povos indígenas, permitindo, assim, a construção de um Estado plural”.
Exemplo de desrespeito a essa previsão legal, “em 2003, o líder indígena guarani kaiowá Marcos Veron […] foi atacado e morto quando reivindicava terras ocupadas, no Mato Grosso do Sul”. Transferido o júri para São Paulo, em busca de “imparcialidade dos jurados”, “a juíza não aceitou que os indígenas fossem ouvidos em guarani, por meio de tradutores, ao argumento de que antes haviam falado em português no estado de origem” (BALDI, 2017, p. 258–259).
Não obstante, há precedentes de respeito à autodeterminação. Nesse sentido, o caso de homicídio do índio Macuxi Valdenísio da Silva, em 1986, praticado por Basílio Alves Salomão, também Macuxi, serve de exemplo da efetiva aplicabilidade da autodeterminação dos povos. Levado o caso à Justiça Federal do Estado de Roraima, o MP solicitou laudo antropológico que atestou a aplicabilidade de punição tradicional ao indivíduo. Emitido o laudo em 1995, quase 10 anos após o crime, Basílio ainda encontrava-se cumprindo a pena determinada pelas autoridades de sua aldeia. Assim, o juiz absolveu-o, registrando o reconhecimento de “uma causa supralegal de exclusão de culpabilidade” (SCHREIBER, 2014).
A conjuntura atual
A transferência da Fundação Nacional do Índio (Funai) do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos foi alvo de diversas críticas, desde o próprio Ministério Público Federal — que afirmou a ilegalidade dessa Medida Provisória em função daquilo previsto em convenções internacionais como a OIT-169 -, até de lideranças do movimento indigenista, que chegam a contar com a perspectiva de “catequização” ou assimilação cultural por parte de membros da “bancada evangélica”, da qual faz parte a Min. Damares Alves.
A demarcação de terras indígenas (MP 870/2019), anteriormente sob competência da própria Funai, foi transferida para a responsabilidade do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, atualmente comandado pela Min. Tereza Cristina, ligada à chamada “bancada ruralista” da Câmara dos Deputados. No contexto de tais mudanças, o Governo Federal autorizou o uso de repressão nas manifestações de movimentos na Esplanada dos Ministérios, o que afeta, dentre outros, aqueles que lutam por pautas indigenistas, como a iniciativa “abril indígena”.
Conforme veiculado pelo portal G1 (2019), lideranças indígenas realizaram caminhada em Fortaleza para protestar mudanças:
“De acordo com a liderança indígena do Pitaguary Maracanaú, […] Ceiça Pitaguary, as terras indígenas estão ameaçadas. ‘Seremos prejudicados. […] As terras indígenas estão sendo invadidas em vários locais e ocupadas ilegalmente, após a aprovação da Medida assinada pelo presidente Jair Bolsonaro’”.
O mesmo veículo de imprensa também noticiou que declarações do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, insinuando a extinção da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), motivaram protestos da população indígena em Roraima:
“Participaram do ato, no Centro Cívico, indígenas, suas lideranças, servidores e conveniados à Sesai. Com a extinção do órgão, os manifestantes afirmam que isso acarretaria na municipalização dos serviços de saúde a comunidades. Conveniados e servidores reclamaram de atrasos de salários desde o início da atual gestão de Mandetta”.
Segundo o site Carta Educação (2018), ao se referir à qualidade da educação ofertada às comunidades, “a infraestrutura é apontada como um fator sério que necessita de investimento. Segundo o Censo Escolar (2017), 30,93% das escolas indígenas não dispõem de um espaço físico construído pelo poder público para funcionar”. Ainda de acordo com este, “33% das escolas indígenas não possuem material didático específico para a diversidade sociocultural”.
Por fim, ao trazer o relato do antropólogo e índio Baniwa Gersem José dos Santos, o portal coloca que, no que diz respeito à formação de professores indígenas para as aldeias:
“Nos últimos anos, as universidades ofertaram […] cursos com subsídios suplementares, ou seja, que não fazem parte da política institucional, dependem de recursos especiais disponibilizados pelo MEC. Nenhuma universidade conseguiu incluí-los na matriz orçamentária anual. […] para se ter ideia da gravidade da situação, na minha universidade [Universidade Federal do Amazonas], são 14 turmas, cada uma de 60 estudantes. De 2017 para 2018, os recursos foram cortados em 50%. Então há uma descontinuidade muito grande por conta da precariedade do financiamento”.
Considerações finais
Diante do exposto, é perceptível a relevância da questão indígena para os Direitos Humanos como um todo. Os problemas persistentes, os bons exemplos e a jurisprudência legal são pilares que devemos ter em mente ao sublinhar a temática, referida como “direitos dos povos” e trabalhada por Little (2002, p. 47) como “uma categoria especial dos direitos humanos que se aplica às diferentes sociedades de uma nação e funciona como pano de fundo para quase todas as demais atividades de ação indigenista”. Portanto, são direitos imprescindíveis na construção de uma sociedade plural, inclusiva e que se pretende democrática.
Referências
BALDI, César Augusto. Questão indígena no Brasil: alguns pontos para uma revisão hermenêutica da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. AVRITZER, Leonardo et al (org.). In: O constitucionalismo democrático latino-americano em debate: soberania, separação de poderes e sistema de direitos. Belo Horizonte. 1 ed. Autêntica, 2017. p. 253–286.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
BRASIL. Decreto-lei nº 9.010, de 23 de março de 2017. Aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança da FUNAI.
BRASIL. Medida Provisória N° 870, de 1° de Janeiro de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/Mpv/mpv870.htm>. Acesso em: 04 mai. 2019.
CONVENÇÃO 169-OIT. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 07 abr. 2019.
CUNHA, Manuela Carneiro da. O futuro da questão indígena. Estud. av., São Paulo, v. 8, n. 20, p. 121–136, abr. 1994.. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141994000100016&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 06 abr. 2019.
DECLARAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS. Organização das Nações Unidas, 2007. Disponível em: <https://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 07 abr. 2019.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Organização das Nações Unidas, 1948. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em: 06 abr. 2019.
GOVERNO autoriza Força Nacional na Esplanada por conta de futuras manifestações, O Globo, 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/governo-autoriza-forca-nacional-na-esplanada-por-conta-de-futuras-manifestacoes-23605826>. Acesso em: 04 mai. 2019.
ÍNDIOS fecham BR-174 com pedras durante protesto ao Norte de Roraima. G1, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/04/01/indios-fecham-br-174-com-pedras-durante-protesto-ao-norte-de-roraima.ghtml>. Acesso em: 07 abr. 2019.
INDÍGENAS voltam a protestar contra fim da Sesai e trânsito no Centro de Boa Vista é desviado. G1, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/03/27/indigenas-voltam-a-protestar-contra-fim-da-sesai-e-transito-no-centro-de-boa-vista-e-desviado.ghtml>. Acesso em: 07 abr. 2019.
LITTLE, Paul E. Etnoecologia e direitos dos povos: elementos de uma nova ação indigenista. Etnodesenvolvimento e Políticas Públicas: Bases para Uma Nova Política Indigenista. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria/LACED, 2002.
NO Ceará, índios protestam contra a transferência de demarcação de terras da Funai para a Agricultura. G1, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2019/01/31/no-ceara-indios-protestam-contra-a-transferencia-de-demarcacao-de-terras-da-funai-para-a-agricultura.ghtml>. Acesso em: 07 abr. 2019.
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PARA MPF, transferência da Funai é inconstitucional. IstoÉ, 2019. Disponível em: <https://istoe.com.br/para-mpf-transferencia-da-funai-e-inconstitucional/>. Acesso em: 04 mai. 2019.
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SERVIDORES que atuam na saúde indígena cobram salário atrasado durante protesto em Boa Vista. G1, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/03/18/servidores-que-atuam-na-saude-indigena-cobram-salario-atrasado-durante-protesto-em-boa-vista.ghtml>. Acesso em: 07 abr. 2019.
SOUZA, Estella Libardi de. Povos indígenas e o Direito à diferença: do colonialismo jurídico à pluralidade de Direitos. Núcleo de Estudos e Práticas Emancipatórias, UFSC, 2008. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/33234-42224-1-PB.pdf>. Acesso em: 06 abr. 2019.
TEREZA Cristina (DEM-MS) será Ministra da Agricultura de Bolsonaro. Folha de S. Paulo, 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/11/tereza-cristina-sera-ministra-da-agricultura-de-bolsonaro.shtml>. Acesso em: 07 abr. 2019.