Direitos Humanos sem Sociedade Civil: uma equação que não fecha e que jamais fechará

Nathan Chagas Simões
Youth for Human Rights Brasil
6 min readJun 17, 2019
Imagem dos protestos de 15 de maio de 2019, em todos os estados brasileiros, face aos contingenciamentos orçamentários anunciados pelo governo federal em ataque às Instituições Públicas de Ensino Superior.

Direitos Humanos são um processo.

Um resultado.

Um conjunto de lutas e desdobramentos.

Uma categoria jurídica.

Um somatório de trajetórias históricas.

Um longo percurso de cidadania.

E o que isso tudo significa?

Significa que os Direitos Humanos não são um simples emaranhado de normativas domésticas e tratados internacionais que tratam da dignidade humana e de um mínimo ético para nossas garantias e liberdades fundamentais. Eles são um processo histórico, atravessado por retaliações e lutas, que emanam de séculos — e, talvez, milênios — de luta e resistência de indivíduos e coletivos em prol de agendas de temas sociais.

É comum que os textos clássicos e a Teoria Geral de Direitos Humanos apontem que, por sermos seres humanos, somos intrínseca, inerente e inalienavelmente sujeitos de direitos. Logo, somos destinatários de uma série de direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos, difusos, ambientais etc. enumerados em textos constitucionais e outros códigos jurídicos. Sim, isso tudo constitui esse grande corpo jurídico, que nos é pertencente desde o nascimento, com direitos na infância, até o pós-morte, a partir dos resguardos de seguridade social e pensão para nossos entes.

Entretanto, não sejamos ingênuos e ingênuas de pensar que os Direitos Humanos surgiram como uma boa vontade de legisladores, constituintes e governantes para suprir as necessidades humanas mais básicas. Ou que chefes de Estado concordaram, consensual e pacificamente, sem nenhum sangue derramado, que os países precisavam acordar 30 artigos em uma Declaração Universal — sem efeitos juridicamente vinculantes — para que a humanidade evitasse guerras e pudesse viver em harmonia. Ou mesmo que Princesa Isabel resolveu, do dia para a noite, sancionar a Lei Áurea, concedendo magicamente a liberdade para os povos pretos, de origem afrodiaspórica, que agora se tornariam tão dignos quanto os colonos brancos.

Não.

Antes do reconhecimento da ancestralidade da terra, da fundação de instituições públicas com atuação indigenista e do reconhecimento constitucional de direitos mínimos às relações com a cultura e o ambiente, os povos indígenas têm enfrentado séculos de genocídio, limpeza étnica, apagamento histórico e violação grave e generalizada de seus tão ditos direitos humanos. Não obstante, o histórico de luta das comunidades nativas e tradicionais persiste até hoje, com organizações como a Terra de Direitos e a Comissão Pastoral da Terra, que têm por pilar e objetivo a ação pela supressão das violações de direitos em disputas fundiárias.

Somos resultado dos movimentos sociais. Somos resultado da articulação de grupos historicamente espoliados e invisibilizados.

Se hoje somos defensores e defensoras dos direitos humanos, é porque a trajetória foi construída à base de muito sangue preto em prol da luta abolicionista, de várias mulheres perseguidas por defenderem o sufrágio universal já no século XX, de muitas pessoas LGBTI expulsas dos espaços públicos e privados que cansaram da posição de margem, de inúmeras pessoas com deficiência reivindicando seu papel de sujeitos de sua história e não mais de corpos patologizados ou debilitados. Somos múltiplos, uma potência de interseccionalidades, como já nos ensinariam as feministas negras, de corpos que têm sido violentados e estigmatizados há eras.

Direitos Humanos são um processo.

Um processo histórico de interpelação, grito e manifestação de uma sociedade civil, com uma consciência cívica e cidadã bastante tímida no Ocidente e deveras incompreendida no tão esquecido Oriente.

Segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA, 2019), sociedade civil é “constituída por diversos componentes, como as instituições cívicas, sociais e organizações que formam os alicerces de uma sociedade em funcionamento”. Seria o que a legislação brasileira concebe por Terceiro Setor.

Tá. Mas, quem é de fato a sociedade civil?

Em suma, a sociedade civil, organizada e não organizada, consiste em uma rede de instituições privadas sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e Organizações Não Governamentais (ONGs), redes de voluntariado, movimentos sociais e demais formas de mobilização e participação democrática — a exemplo de protestos, assembleias, conselhos, grupos de trabalho etc. -, que se articula em prol de determinadas agendas do debate público, suprindo lacunas do Estado e de atores privados e, certamente, contribuindo com o respeito, a proteção e a promoção dos direitos humanos. Para nós, a sociedade civil, esteja organizada institucionalmente ou não, é o exemplar de defensor dos direitos humanos.

São as inúmeras representações indígenas e feministas que atuam como consultoras e delegações em foros multilaterais, nos quais são debatidos temas fulcrais para acesso à educação, saúde, empregabilidade, cultura etc.

São as entidades que engajam litigância estratégica e resistência nas instituições nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos, como os Comitês que acionaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) no Caso Maria da Penha vs. Estado brasileiro (2006).

São as instituições que promovem proteção e acolhimento de defensores e defensoras de direitos humanos em situação de risco e vulnerabilidade, muitas vezes transportando-os/as para localidades nas quais estarão mais seguros/as de perseguição, tortura e assassinato por ódio.

São associações, alianças e grupos que constroem redes de afeto e cuidado entre ativistas LGBTI, os quais vivenciam um momento de desmonte em todas as políticas públicas que contornam nossa comunidade — seja na retirada do Plano Nacional de Turismo (2019–2022), no desmonte das Secretarias de Diversidade do Ministério da Educação, no conservadorismo face às políticas de prevenção e combate ao HIV/AIDS no Ministério da Saúde, no veto a comerciais que visibilizam a cultura drag e os corpos trans.

São o Movimento Negro Brasileiro, que tem um histórico de pressão e interpelação ao Estado, às repartições públicas e ao empresariado para o reconhecimento, a justiça e o desenvolvimento da população afrodescendente, seja nas políticas de cotas e ações afirmativas no ingresso ao serviço público e às instituições de ensino superior, seja no combate ao racismo, à discriminação racial e à intolerância religiosa nos mais distintos espaços sociais.

São as feministas, que consagraram legislação de enfrentamento ao feminicídio, que lutam pela concretização dos seus direitos sexuais e reprodutivos — mesmo perante instituições retrógradas que insistem em dizer que métodos contraceptivos implicam promoção do aborto -, que buscam aumento da participação e representatividade nos espaços de poder e decisão.

São ONGs internacionalmente reconhecidas por seu trabalho sério e exitoso na proteção do meio ambiente, de comunidades ribeirinhas, de espécies ameaçadas de extinção e de promoção do desenvolvimento sustentável, face aos desafios impostos pelas mudanças climáticas e pelas catástrofes ambientais motivadas por ação antrópica.

A sociedade civil é a variável-chave na defesa pelos direitos humanos.

E estamos vivendo um momento muito delicado e peculiar na história suada e sofrida pela conquista de políticas nacionais de participação social. O Decreto 9.759/2019 revoga o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), responsável por criar e fortalecer mecanismos e instâncias democráticas de diálogo e atuação conjunta entre administração pública federal e sociedade civil. O SNPS toma como princípio a função dos colegiados — Conselhos, Comitês, Comissões, Grupos, Juntas, Equipes, Mesas, Fóruns, Salas, Ambientes Virtuais etc. — de integrar a sociedade civil às discussões do Estado e aos processos de formulação das políticas públicas.

Dentre os inúmeros colegiados extintos, podemos citar o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) — que, curiosamente, representava uma das principais bandeiras em direitos humanos do atual governo -, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT (CNCD/LGBT). E o que pensar de um governo que desmonta a participação da sociedade civil em uma só canetada? Com certeza não é um governo que prima pelos direitos humanos, muito menos que compreende a tímida expressão de diálogo e trabalho conjunto entre Estado e sociedade.

Com certeza precisamos espalhar a mensagem de que direitos humanos sem a sociedade civil são uma equação impossível de resolver. E isso não será tarefa fácil em tempos de fake news em grupos de mensagens instantâneas e de contingenciamento orçamentário na educação básica e no ensino superior público, este último responsável por mais de 90% da pesquisa e do desenvolvimento científico-tecnológico no Brasil.

E como fazer a equação fechar? Fica aí nosso grande desafio por ora.

Referências

HERRERA, Joaquín. La reinvención de los derechos humanos. Ed. Atrapasueños, 2008.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS [OEA]. Sociedade Civil. 2019. Disponível em: <https://www.oas.org/pt/topicos/sociedade_civil.asp>. Acesso em: 22 mai. 2019.

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