Liberdade ou criminalização?

Danielle Moraes
Youth for Human Rights Brasil
6 min readJul 25, 2019

Artigo 20

  1. Todos os seres humanos têm direito à liberdade de reunião e associação pacífica.

2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte duma associação.

Como sempre, este não é um texto de amor. E duvido muito que, alguma vez, neste espaço, o seja. É um texto de revolta, indignação e inquietação com a forma que temos nos comportado coletivamente frente aos absurdos que vivenciamos e com a suposta “liberdade” que a Declaração Universal dos Direitos Humanos nos garante.

A liberdade política, segundo a DUDH e a constituição de diversos países, é um direito, e isso vai muito além de exercermos essa liberdade através do voto, mas da organização política em associativismos, da simples reunião de pessoas, das mais variadas formas.

A história brasileira nos traz diversas passagens onde a organização, associação e reunião de determinados grupos foi considerada ilegal, subversiva e perigosa, desde o samba até os temíveis comunistas na ditadura militar. Não apenas no Brasil, mas também internacionalmente: macartismo, Panteras Negras nos EUA, perseguição ao Partido Comunista Alemão (KDP), revolta Zapatista no México, bolivarianismo na Venezuela e por aí vai.

Quando observamos a grande maioria dos grupos perseguidos, exceto àqueles que pregam ódio e tentam ressuscitar nazismo, fascismo, o Estado Islâmico, dentre outros, percebemos algo em comum. A maioria deles lutava, utilizando-se de diversas estratégias, por questões que giravam em torno da melhoria da qualidade da vida, da sociedade ou, ainda, da superação de uma ordem econômica que promove a ideologia do lucro acima de todas as coisas, inclusive da vida. Dentro destas estratégias estava o uso — organizado e sistemático — da violência, já que nem sempre o diálogo garante as melhores condições de embate.

E mais, ao observarmos o contexto em que estes grupos estavam inseridos, ou ainda nós estamos na atualidade, percebemos uma série de violências perpetradas contra a dignidade de existência, acesso a direitos, seja pela ação direta ou pela ausência do Estado. Poderia ficar aqui falando de violência simbólica, direta, econômica, extra-econômica, mas não é essa a intenção porque cada um sabe onde o calo aperta, e, ultimamente, o “sapato” tem apertado todos aqueles que não fazem parte de uma elite que se sustenta violentando outros, e ainda com mais força àqueles que resistem a esse aperto.

Ainda, se olharmos para a DUDH e pensarmos o contexto que esta foi criada, por quem e como, chegaremos à uma triste conclusão: esta foi criada para proteger, de fato, alguns, já que a própria realidade não cria condições para que esta seja posta em prática. O respeito à humanidade é um privilégio e alguns, até hoje, não alcançaram a condição de humanos.

Assim chegamos ao ponto chave deste artigo: que liberdade de reunião é esta que encontra limitações no corpo da pacificidade e não reconhece o direito humano de reagir contra as violências que sofremos? Vejam, eu não estou aqui fazendo apelo contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou fazendo apologia ao “olho por olho, dente por dente”, pelo contrário. O ponto é que, num contexto capitalista, de base escravista, imperialista que vivemos, o direito à humanidade é, na verdade, um privilégio. Mais ainda, qual a condição que determinados grupos têm de se reunir, seja lá com que finalidade? Mesmo num contexto capitalista, para que isso existisse, de fato, seria necessário um Estado Democrático de Direito que ouvisse os anseios da população.

O que temos visto, já há muito tempo, é a criminalização de quaisquer movimentos sociais que ousem lutar pelo acesso a direitos, pela redistribuição de renda, pelo fim do genocídio da população negra, pelo direito à moradia, pela vida, mantendo seus princípios e não silenciando. Corpos negros, LGBTQIA e femininos vivenciam historicamente essa criminalização num complexo de opressões que marginalizam suas existências, se correlacionam e interseccionam em um emaranhado de violências no cotidiano.

A última prova do lado que o Estado se encontra foi a prisão das lideranças políticas do movimento de ocupação 9 de julho, em São Paulo, dentre eles a ativista Preta Ferreira (MSTC — Movimento Sem Teto do Centro). Segundo postagem dos advogados do caso nas redes sociais — e informações através de contatos pessoais -, houve muita dificuldade de ter acesso ao processo, risco de prisão sem direito a audiência de custódia e pagamento de fiança no festival da ilegalidade e da violação dos Direitos Humanos quando se trata de populações vulneráveis.

O advogado da Comissão de Direitos Humanos/OAB — RJ que há muito atua na proteção dos direitos humanos, Rodrigo Mondego, do Rio de Janeiro, diz que “Não se precisa de instrumentos para a repressão de todo e qualquer movimento social que questione o status quo, apenas a interpretação enviesada e tendenciosa da lei por parte dos operadores da justiça criminal já dão conta disso”. E os perigos não param por aí, já que assistimos à escalada de atitudes antidemocráticas, violentas e genocidas (o excelentíssimo Governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel desejoso por jogar bomba na Cidade de Deus, favela do Rio de Janeiro), as manobras de Moro ou o fascismo do atual presidente.

Mondego avalia que o contexto ainda pode piorar caso a lei antiterrorismo de 2016 seja alterada. Temos, por exemplo, o PL 272/2016, que solicita a tipificação como terrorismo

incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado, além dos atos de interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou bancos de dados. A pena estipulada para todas essas condutas será de 12 a 30 anos de reclusão, bem como sanções correspondentes à prática de ameaça ou violência.¹, dentre outras tipificações que incidem diretamente sobre a liberdade de atuação dos movimentos sociais, motivo pelo qual diversos artigos da lei original (13.260/2016) foram vetados pela então presidenta Dilma Rousseff em 2016.

Ainda, segundo o advogado, “isso não é suficiente na ascensão do fascismo brasileiro, o Governo quer ainda mais, para não dar margem de absolutamente nenhum questionamento institucional aos seus desmandos e ataques, quer criar instrumentos legais contra os movimentos sociais e a mudança da lei antiterrorismo é um deles”. Isso porque o judiciário atua sob interesses próprios, as leis são feitas pelos detentores do poder e a igualdade (inclusive jurídica) é uma ilusão. Neste sentido, a mídia hegemônica, por sua vez, também não cumpre o papel da informação, mas da manobra de opiniões de acordo com seus interesses próprios.

Quando aqueles que deveriam nos proteger silenciam ou são os agentes da nossa violência, a pacificidade deixa ser humanizante e se torna subserviência, opressão, morte. Será que já morremos todos por dentro a ponto de não conseguirmos mais reagir?

Em tempo, mas não menos importante:

1 — Liberdade pro Renan da Penha, que ousou fazer uma reunião cultural e pacífica de corpos pretos e pobres, num território sitiado, que só é lembrado pelo Estado na base da bala. Pra esses, a humanidade ainda está bem distante. Liberdade pra Janice “Preta” Ferreira da Silva, Sidney Ferreira da Silva, do Movimento Sem Teto do Centro, Edinalva Silva Pereira e Angélica dos Santos Lima, do Movimento Moradia Para Todos e todas as lideranças de movimentos sociais democráticos arbitrariamente presas essa semana em São Paulo e todos aqueles que ousaram levantar a voz contra as violências que nossos corpos experimentam.

2– 495 dias sem resposta. O mesmo Estado que criminaliza movimentos sociais não consegue responder quem mandou matar Marielle e Anderson.

¹ BRASIL, SENADO FEDERAL, PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 272, DE 2016. Autoria: Lasier Martins (PDT — RS). Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/126364 Acessado em: 30/06/2019.

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Danielle Moraes
Youth for Human Rights Brasil

Escrevo, componho e dou uns rolé po aí. Bacharel em Serviço Social, Mestra em Migrações, Inter-Etnicidades e Transnacionalismo pela Universidade Nova de Lisboa.