O conflito na busca pela própria identidade da pessoa com dislexia no Brasil

Introdução

Direito e liberdade, princípios mais do que básicos, são essenciais quando falamos de Direitos Humanos, ainda descritos no 2° artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que completa 71 anos em 2019.

Como marco na história da Humanidade, ainda lutamos pelo o que está escrito ali, são diversos grupos que enfrentam a vulnerabilidade social: população negra, mulheres, comunidades tradicionais, crianças e adolescentes, LGBT, pessoas idosas, com deficiência, em situação de rua, em restrição de liberdade. Ainda podemos acrescentar aqui as pessoas com dislexia que com certeza estão em todos os grupos descritos anteriormente.

Artigo II da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimentos, ou qualquer outra condição.

Onde me encontro

Sou parte de uma associação de mães e tenho amplo convívio com outras famílias de pessoas com dislexia, já são 4 anos transitando nesse território humano rico em vivências. Para ilustrar e fomentar as discussões sobre os direitos humanos pensei numa fórmula não acadêmica, mas bastante expressiva de dividir as experiências de luta dessas pessoas e inspirar a sociedade. Começo com um texto contando sobre a vida de um jovem, acaba sendo uma junção de muitos jovens que já conheci durante o trabalho na Associação Dislexia MT. São dezenas de jovens se fazendo ouvir através dessa história. São pessoas que vivem à margem da sociedade como fantasmas urbanos, fantasmas no sentido de se sentirem invisíveis diante dos outros. São pessoas extremamente inteligentes, com coeficiente intelectual na maioria das vezes acima da média, porém por terem uma condição neurológica diferente que as leva ter um funcionamento do seu processamento de linguagem ou fonológico, seja qual conceito os cientistas queiram dar, o fato é que são diferentes da maioria, assim acabam se isolando de uma tal forma que passam a ser invisíveis. Por mais que eu busque uma palavra eu não consigo encontrar nada melhor para definir isso, invisíveis.

Aqui é onde me encontro — parte dos membros da Associação Dislexia MT

Relato de V.M., 16 anos

“Sou um jovem de 16 anos que diariamente vou para a escola enfrentar um universo de coisas e informações e temas e teorias e conceitos que me são jogados, são jogados no ar e eu fico ali sentado observando tudo como se aquilo não me pertencesse como se não fizesse parte de mim. Olho do lado meus colegas estão participando, entendo, lendo e eu me sinto dentro de uma bolha que me isola dos outros, não vejo bem, não ouço bem, não entendo bem, eu não consigo entrar nesse mundo ou talvez eu não consiga sair do meu mundo, isso me afasta cada vez mais deles. Aí chego em casa cansado porque tenho aula o dia todo e ainda vou fazer minhas tarefas, quando abro aquele livro … aquelas letras dançam e se confundem de uma tal forma que me angustia e uma sombra cresce dentro de mim. Meu pai pensa que sou preguiçoso, que nunca tenho vontade de nada da escola, vive falando coisas que eu deveria fazer e de um futuro que eu nem alcanço. Com tudo isso cresce me sinto fora do mundo, me sinto incapaz, isso me afasta de todos de novo. Fico muito confuso porque não sei direito o que é, será que sou burro? Será que tenho algum problema mental? O que será que sou? Sou um monstro?

Não sei o que eu sou… ninguém sabe….

As pessoas me olham e não me veem, cada um mergulhado na sua rotina, enxergam apenas o que eu não consigo fazer. E só me resta esperar o tempo passar e essa escola acabar. E eu finalmente ir para o mundo buscar meu lugar.

Estou tão cansado que não quero mais tentar fazer as coisas da escola, o fato de eu pensar numa folha de papel e num lápis já começo a tremer, as marcas são tão profundas que parecem ser eternas.

Volto a me perguntar quem eu sou nisso tudo? Só me resta esperar o tempo passar. Sou um jovem que também já foi uma criança que também não sabia ler e escrever direito e que passou pelos anos da escola e que ninguém viu, ficaram apenas com cobranças vazias, e no fundo ninguém sabe quem sou.

Isso me afastou do mundo, isso me afastou de mim. E aquele adulto que eu sonho em ser ou que eu sonhava em ser vai ficando tão longe que eu me perco de mim. Que futuro terei? Como fazer minhas escolhas?”

Esse jovem brasileiro tem dislexia e infelizmente recebeu seu diagnóstico tardiamente, há poucos dias, ele já é quase um adulto. O que fica evidente é a tristeza dele dos anos que perdeu, momentos de isolamento, a importância de se ter a identificação da dislexia, ter um diagnóstico diferencial realizado por uma equipe multidisciplinar ou transdisciplinar, enfim não importa novamente conceituar ou discutir questão acadêmicas, que são importantes com certeza, mas o essencial é dizer à essa pessoa : “Você é brilhante tem um cérebro que funciona de um jeito diferente e por isso precisa estudar e aprender de um jeito diferente”, “você consegue, você é capaz, é possível”.

Assim essa pessoa passa a se entender e se ver no mundo, criando sua própria identidade e encontra seu lugar.

Já ouvi de vários jovens que no momento que sabem que tem dislexia sentem um alívio, já ouvi: “nossa então é isso que eu tenho? Não sou burro? Então é isso que eu sou. Ah agora eu entendi.”

Quando se começa o entendimento de quem você é, isso te permite se aproximar de si mesmo e se aproximar das pessoas, porque você consegue desenvolver todo seu potencial de ser humano, seja através de qualquer forma de expressão, falada, escrita, interpretada.

A meu ver o grande nó de tudo isso, desse mundo de conceitos e de discussões, muitas vezes ideológicas e teóricas, a meu ver como mãe e ativista pelos direitos das pessoas com dislexia, o nó é exatamente esse, quando essa criança ou esse jovem ou esse adulto não sabe sequer quem é.

A falta de esclarecimento rouba isso dos disléxicos, rouba sua identidade. Concordo com os estudiosos que rotular ou categorizar as pessoas não é a solução da educação no Brasil, aliás em nenhum lugar do mundo, porém a dislexia é uma condição humana, então a culpabilidade de todo esse sofrimento não é da dislexia e sim da falta de esclarecimento da sociedade como um todo sobre os distúrbios de aprendizagem. Por isso o esclarecimento, a identificação, o diagnóstico e a intervenção são tão importantes, seja em qualquer fase da vida. Porque ele os liberta de serem fantasmas.

A urgência da inclusão da dislexia nas políticas públicas no Brasil é incontestável, muitos jovens estão abandonando a escola e perdendo a identidade e muitas vezes podem ter dislexia e não sabem.

A dislexia é um assunto de toda a sociedade.

III Simpósio sobre Dislexia em Mato Grosso — 2018 (Assembleia Legislativa de Mato Grosso)

Segundo a Associação Portuguesa de Dislexia

A dislexia é uma disfunção neurológica, que se manifesta ao nível da dificuldade de aprendizagem da leitura, em pessoas com inteligência normal ou acima da média. Esta dificuldade crônica não está relacionada com a qualidade do ensino, o nível intelectual, as oportunidades socioculturais, ou as alterações sensoriais. Tem uma base neurobiológica, com alterações na estrutura e funcionamento neurológico, e pode apresentar uma influência genética. Quem sofre de dislexia apresenta um esforço acrescido para distinguir letras, formar palavras e compreender o seu significado. Os alunos que têm estas dificuldades não são preguiçosos, pouco inteligentes imaturos, nem têm necessariamente problemas visuais ou de postura. Requerem um tratamento terapêutico intensivo e apoio no processo de ensino-aprendizagem, para que consigam ter sucesso.

Segundo a Associação Galega de Dislexia (Espanha)

A dislexia é uma dificuldade congênita, hereditária, com uma base neurológica e que frequentemente faz parte de um problema de linguagem mais profundo. Não pode ser explicada por deficiências visuais ou auditivas, por transtornos emocionais, atraso mental e nem situações educacionais inadequadas. Também as dificuldades encontradas na linguagem escrita podem ser acompanhadas de dificuldades de seguir instruções, confusão de vocabulário, orientação espacial e temporal, dislcalculia e em geral lentidão no processamento da informação. Com tudo isso a criança com dislexia pode apresentar problemas de confiança, depressão, frustração, distúrbios do sono e outros.

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Gabrielle Maria Coury de Andrade
Youth for Human Rights Brasil

Mulher, bióloga, mãe, idealizadora e uma das fundadoras da Associação Mato-Grossense de Dislexia. Seu maior trabalho é falar sobre solidariedade.