Ponte desequilibrada: o direito à nacionalidade como vetor de acesso aos demais direitos fundamentais

Gabrielle Chaves Bock
Youth for Human Rights Brasil
5 min readMar 18, 2019

Gabrielle Chaves Bock

Quando falamos em Direitos Humanos, é comum que pautas como o direito à educação, à saúde básica, à liberdade de ir e vir, dentre outras, sejam mencionadas. Em contrapartida, é um tanto quanto raro ouvirmos sobre o direito à nacionalidade, ainda que esse seja um dos mais importantes suportes para a garantia da quase totalidade do que é citado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Para entender esse aspecto, é necessário que primeiro se conheça o que é, de fato, a nacionalidade e o direito a mesma, sob um viés jurídico:

Parafraseando o autor Yussef Said Cahali (2010, p. 19), podemos entender a nacionalidade como o aspecto jurídico o qual estabelece a ligação entre uma pessoa e uma determinada nação. Desse vínculo, decorrem direitos e deveres, uma vez que o indivíduo torna-se parte de uma comunidade politicamente organizada (o país), ou seja, passa a depender da instituição nacional.

Sendo assim, podemos compreender facilmente que tal direito é, por si só, um pressuposto, para a garantia de outros, seja nos campos do Direito Civil ou Político, uma vez que é ele que garante a conexão legal entre Estado e indivíduo, sendo o primeiro promotor e protetor da lei.

Para que esse entendimento fique mais claro, vejamos: se uma pessoa não possui um vínculo com nenhuma instituição nacional, ela perde o direito ao acesso a educação básica de qualidade, serviços de saúde, e outros, os quais um Estado deve fornecer a seus nacionais, já que, teoricamente, não existirá um país sobre o qual recaia a responsabilidade por esses serviços.

A pessoa apátrida (privada de nacionalidade), além de perder esse acesso, é privada também da proteção jurídica por um governo. No caso de uma pessoa com nacionalidade de um país X que encontra-se em outro território (país Y), cabe a esse cidadão a proteção por seu Estado de origem, o país X. Dessa forma o mesmo está resguardado de sofrer punição por leis locais (do país em que se encontra, o Y) que não são tão familiares a sua cultura de origem. Por exemplo: no país Y pode existir uma lei que proíbe determinada ação. Entretanto, no país X de origem do cidadão, esse tipo de ato faz parte de sua cultura e é até muito comum. Estando ele protegido pelas leis de sua própria nação, está resguardado de sofrer com a legislação que impede aquela ação no território em que se encontra. Por outro lado, um apátrida não recebe essa proteção, e fica vulnerável a, por exemplo, perseguições dos mais variados tipos no país em que estiver transitando.

Autoria da ilustração: Kevin Frank. Texto original das caixas em inglês, tradução livre.

O Artigo XV (décimo quinto) da Declaração Universal dos Direitos Humanos disserta:

“1. Todo ser humano tem direito a uma nacionalidade.

2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade.”

Ainda assim, de acordo com as Nações Unidas (ONU), no mundo há 3,4 milhões de pessoas sem nacionalidade. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) estima que esse número seja três vezes maior, ou seja, que mais de 10 milhões de seres humanos estão privados desse direito tão fundamental.

Atualmente, podemos perceber diversas causas como fatores de aumento dessa população. Dentre elas, está o descaso de muitos Estados com suas legislações a respeito do assunto cidadania e nacionalidade e, por muitas vezes, leis mal formuladas geram limbos legais, os quais impedem uma grande quantidade de habitantes de obter o direito à nacionalidade.

Em uma situação muito comum, grande parte dos Estados adota como requisito para a obtenção de nacionalidade a desistência por opção própria de uma outra anterior. Entretanto, no caso de refugiados, principalmente por questões políticas ou étnicas, esse vínculo frequentemente é encerrado por seu próprio país de origem. Dessa forma, eles perdem a opção de “desistir de sua nacionalidade original”, uma vez que já não a possuem. Assim, ficam impossibilitados de receber a nacionalidade do país onde obtiveram refúgio, mesmo que tenham residido lá por muitos e muitos anos.

Além disso, existe a questão da fragmentação de antigos Estados, fator comum no continente africano e em outras regiões, nas quais muitos países se libertaram da colonização externa apenas recentemente. Nesse tipo de situação, a nacionalidade inicial do indivíduo era a do país que se fragmentou, e a instabilidade política das jovens nações criadas corrobora para que exista um atraso e até mesmo inexistência do reajuste da documentação dessa população.

Em um outro campo ainda mais grave, preconceito étnico e de gênero também são fatores que em demasia obstruem o acesso ao direito à nacionalidade. Um caso muito recente é o da República de Myanmar, onde filhos de famílias muçulmanas não têm a Certidão de Nascimento emitida pelo governo, sob a alegação de que existe uma confusão sobre qual origem aplicar na identificação, um argumento para justificar a discriminação étnica no acesso à cidadania.

No que tange ao preconceito de gênero, de acordo com uma análise recente do Pew Research Center, em vinte e sete países do mundo mulheres ainda sofrem com algum tipo de restrição para transmitir nacionalidade, fato que priva seus filhos de obterem-na, o que não ocorre no caso de pais nacionais. Dentre esses países, estão o Líbano, Arábia Saudita, Nepal, e vários outros.

Conhecendo o conceito de nacionalidade, o desdobramento jurídico que decorre do direito a mesma, e todos os fatores os quais atravancam o acesso ao mesmo, concluímos, então, que é de extrema relevância a resguarda do direito à nacionalidade. Isso se percebe uma vez que estamos em um mundo onde fronteiras estão cada vez mais fluídas e conflitos étnicos e territoriais ocorrem diuturnamente. Dessa forma, esse acesso a nacionalidade é de suma relevância para que um indivíduo possa gozar de seus demais direitos fundamentais em um território, sejam eles civis ou políticos, e consequentemente ter uma vida digna.

Portanto, notamos também que é urgente que a comunidade internacional reserve mais atenção ao tema, e não só ela, que a juventude também o preconize na busca de um mundo mais igualitário no que tange ao acesso aos Direitos Humanos. Para que nenhuma pessoa seja esquecida ainda em vida.

FONTES:

NAÇÕES UNIDAS. Artigo 15: Direito a nacionalidade. [S. l.], 4 dez. 2018. Disponível em: https://nacoesunidas.org/artigo-15-direito-a-nacionalidade/. Acesso em: 2 mar. 2019.

THEODOROU, Angelina E.. 27 countries limit a woman’s ability to pass citizenship to her child or spouse. [S. l.], 5 ago. 2014. Disponível em: http://www.pewresearch.org/fact-tank/2014/08/05/27-countries-limit-a-womans-ability-to-pass-citizenship-to-her-child-or-spouse/. Acesso em: 11 mar. 2019.

MATIAS, Talita Litza Molinet. O direito de nacionalidade e a proteção internacional aos direitos humanos. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.2, n.3, 3º quadrimestre de 2007 p. 121. Disponível em: <www.univali.br/direitoepolitica> — ISSN 1980–7791

CORRÊA, Natália Silva. A garantia do direito fundamental à nacionalidade. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 abr. 2016. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.55721&seo=1>. Acesso em: 03 mar. 2019.

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