R2P, RwP e a não indiferença: a via diplomática para a solução de crises humanitárias

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Não raro, o mundo se vê diante de uma nova crise humanitária — seja um conflito armado, denúncias de crimes contra a humanidade cometidos por um governo ditatorial ou desastres naturais de toda sorte. Assim, com o passar do tempo, os mecanismos de resolução de crises e conflitos foram progredindo, indo ao encontro das demandas por ajuda em casos de graves violações de direitos humanos. A diplomacia e seus dispositivos despontam em sua importância e oferecem caminhos possíveis e eficientes para se chegar à paz.

Sophia Paris/MINUSTAH/Getty

Em sua vasta amplitude, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) nos prescreve, logo em seu art. 1º, que “Todos os seres humanos […] devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. Em face disso, iremos discutir a importância, os precedentes e a prospecção de avanços futuros para a solução de crises humanitárias por vias diplomáticas convencionais, conferindo especial destaque aos conceitos de R2P e RwP — dois dos pilares que vêm norteando operações de paz e esforços contra crises humanitárias ao redor do mundo — e ao conceito de não indiferença, no caso brasileiro. .

O que se entende por “crise”

Para Saraiva (2011), a conceituação de crise na atualidade é vaga, e segue duas frentes principais. A primeira seria a referência genérica às “novas crises” — financeiras, humanitárias, alimentares, energéticas etc. — e está muito associada a um acontecimento, nacional ou internacional, que chegue às primeiras páginas dos jornais e ocupe os noticiários; em segundo lugar, existe a dimensão adotada pelas organizações internacionais, que, além de vislumbrarem as consequências midiáticas de uma crise, se ocupam de questões como segurança e defesa de populações.

A conceituação pressupõe que haja abordagens e meios para se lidar com esses eventos. Assim, o conceito de “gestão de crises” passou a englobar a prevenção, a gestão efetiva e a reconstrução pós-conflito, o que fez com que as respostas às crises fossem revistas e ampliadas no sentido de incluir mobilizações civis e militares. Daí surge o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas (1998), intencionado para mobilizar atores operacionais da própria ONU e de ONGs em operações realizadas durante tragédias humanitárias, fornecendo água, alimentos, saúde e outros bens de primeira necessidade (SARAIVA, 2011).

A Carta da ONU não faz menção direta à “crise”. Contudo, interpretações de alguns capítulos permitem à comunidade internacional gerir as crises internacionais (ver capítulos V, VII e VIII). Denúncias que chegam ao conhecimento das Nações Unidas, motivando resoluções do Conselho de Segurança, abrem brecha para invocar o artigo 41.º (sanções não militares) e eventualmente uma ação sob a forma de uma missão de paz inspirada por razões humanitárias (SARAIVA, 2011).

Responsibility to Protect (R2P)

A Responsabilidade de Proteger (ou R2P, na sigla em inglês) foi adotada pela ONU em 2005 como uma medida de esforço preventivo, visando a proteção de populações vulneráveis e estimulando a busca por consenso da comunidade internacional para ação durante crises humanitárias. A R2P apela para a aceitação dos governos da responsabilidade internacional coletiva de proteger populações contra genocídios, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade. Com efeito, o Conselho de Segurança poderia autorizar uma operação ao se constatar o fracasso das autoridades de um certo Estado na proteção dos seus nacionais (ONU, 2005 apud BRAGA, 2013).

Em seus pilares constitutivos, a R2P compreende a responsabilidade da comunidade internacional de agir caso as autoridades nacionais fracassem de forma evidente na proteção de sua população — daí emergem as questões relativas ao uso da força.

A aplicação do princípio da R2P na Líbia (2011), por exemplo, demonstrou que o conceito não impediria intervenções politizadas, e a operação acabou por criar uma situação humanitária ainda mais complexa, com milhares de refugiados e abusos de direitos humanos por ambos os lados (BRAGA, 2013). Assim, a intervenção ocidental na Líbia é reportada como um episódio de desgaste da Responsabilidade de Proteger.

RwP: a força como último recurso

Ciente da situação humanitária na Líbia e em outros países afetados pela Primavera Árabe, o Brasil introduziu o conceito da Responsabilidade ao Proteger (RwP) durante Assembleia Geral das Nações Unidas (2011). De forma complementar à R2P, a RwP visa maior transparência durante as intervenções, prezando pela proteção das populações e levando em conta os riscos de degradação ainda maior da situação humanitária. Dessa forma, os avanços da Responsabilidade ao Proteger vão no sentido de impedir a proliferação indiscriminada e politizada de intervenções humanitárias, tomando o uso da força como último recurso (BRAGA, 2013).

A não indiferença e os Direitos Humanos

Quando a intervenção de uma coalizão internacional se faz necessária para proteção de populações de um Estado que não está mais apto as mesmas, a comunidade internacional se vê diante de um dilema: prezar pelas sua soberania e o dever de não intervenção nos assuntos internos de um outro Estado ou responder à urgência demandada por crises humanitárias. Nesse sentido,

“[…] A ‘não indiferença’ […] nada mais é que o slogan da disposição brasileira em prestar solidariedade a um país que está atravessando grave situação humanitária ou seja egresso de conflito armado. Trata-se do enunciado retórico formulado pela diplomacia brasileira para organizar conceitualmente — e também para ajudar a legitimar — o envolvimento do país em OPs [operações de paz] da ONU e outros esforços de prestação de auxílio humanitário” (NASSER, 2012, p. 226–227).

O termo “não indiferença” busca excluir suspeitas de ingerência nos assuntos domésticos de um Estado por parte de outro(s) Estado(s) (em consonância com o princípio da não intervenção). Dada a mancha impressa na opinião pública após a invasão norte-americana no Iraque (2003), procurou-se criar um rótulo que contivesse o anseio por prestar amparo através de ação multilateral e o já citado princípio da não intervenção (NASSER, 2012).

Ricardo Stuckert/PR — Agência Brasil (ABr)

Na prática, esse princípio, cunhado pelo então chanceler Celso Amorim, ajudou a respaldar a participação brasileira no esforço humanitário em torno do Haiti (LIMA, 2005 apud HAMANN, 2012). Nas palavras do ex-chanceler, “a omissão tem um custo. E, cedo ou tarde, teremos de pagá-lo” (AMORIM, 2011, p. 275), o que inspira a postura proativa do Brasil nas grandes questões globais em que os direitos humanos, em seu conjunto, se veem ameaçados.

Conclusão

Em última análise, é possível considerar as intervenções como formas legítimas de proceder diante de calamidades humanitárias. Posto que seu objetivo é resguardar os direitos humanos, devem ser entendidas como uma questão supra-estatal e que, portanto, não configura uma violação à soberania (TEIXEIRA, 2015). No entanto, iniciativas de aprimoramento, como a RwP, precisam ser levadas em conta para o maior aproveitamento do objetivo principal por trás das ações humanitárias, que é a tentativa de preservação da integridade de direitos da pessoa humana, aos quais todos precisam ter acesso, independentemente de onde nasceram.

Referências

AMORIM, Celso. Conversas com jovens diplomatas. São Paulo: Benvirá, 2011.

BRAGA, Carlos Chagas Vianna. A Manutenção da Paz, a R2P/RwP e a Questão do Uso da Força, p. 33–42. In: HAMANN, Eduarda Passarelli; MUGGAH, Robert (Org.). A Implementação da Responsabilidade de Proteger: novos rumos para a paz e a segurança internacional. Brasília: Instituto Igarapé, 2013.

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. ONU, 1948. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em: 17 maio 2019.

HAMANN, Eduarda Passarelli. O envolvimento de civis em contextos pós-conflito: oportunidade para a inserção internacional do Brasil, p. 299–323. In: KENKEL, Kai Michael; MORAES, Rodrigo Fracalossi de (org.). O Brasil e as operações de paz em um mundo globalizado: entre a tradição e a inovação. Brasília: Ipea, 2012.

NASSER, Filipe. Pax Brasiliensis: projeção de poder e solidariedade na estratégia diplomática de participação brasileira em operações de paz da Organização das Nações Unidas, p 213–242. In: ________; _________. O Brasil e as operações de paz em um mundo globalizado: entre a tradição e a inovação. Brasília: Ipea, 2012.

LIMA, M. R. S. Autonomia, não indiferença e pragmatismo: vetores conceituais da política exterior. Revista Brasileira de Comércio Exterior, n. 83, p. 16–20, 2005.

SARAIVA, Francisca. A definição de crise das Nações Unidas, União Europeia e NATO. Revista Nação e Defesa, n. º 129, 5.ª série, p. 11–30, 2011. Disponível em: <https://comum.rcaap.pt/handle/10400.26/7601>. Acesso em: 15 maio 2019

SILVA, Daniele Dionisio da. Operações de paz à brasileira — uma reflexão teórica, contextual e historiográfica: um estudo de caso da Minustah.. In: 3° ENCONTRO NACIONAL ABRI, 2001, 3., 2011, São Paulo.

TEIXEIRA, Sílvia Gabriel. Combate à pobreza: a responsabilidade de proteger da comunidade internacional. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE), v. 3, n. 1, 2015.

WORLD SUMMIT OUTCOME FACTSHEET. ONU, 2005. Disponível em: <https://www.un.org/summit2005/presskit/fact_sheet.pdf>. Acesso em: 15 maio 2019.

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Gustavo Soares Felix Lima
Youth for Human Rights Brasil

International Relations student at the Federal University of Paraíba