Jornal amanhecido (upm #8)
Era uma quinta-feira terrível. O relógio cravava 8h47. Estava tão irritadiço a ponto de me esforçar ao máximo para não socializar minhas frustrações. Todo mundo acorda com o pé esquerdo de vez em quando… Mas isso não era desculpa para deixar o dia dos outros começar tão ruim quanto o meu.
O ônibus parou no semáforo na quadra da rua Antônio Alves com a Praça Rui Barbosa. Com o movimento típico da região central, mal dava para avistar a esquina. O veículo estava enfileirado juntamente com outros ônibus, cada um vindo de uma parte distinta da cidade. Da janela podia-se ver um senhor que passou da meia idade, em situação de rua. Usava um par de chinelos azuis velhos. A cor viva do calçado simplório contrastava com os pés sujos e calejados.
Vestia um agasalho cinza com mesclas verdes e rosadas. Mas o que me chamou a atenção naquele senhor era o que ele segurava em mãos: um exemplar do jornal do dia anterior. Amanhecido pelos acontecimentos, o impresso era lido de forma vigorosa. Seu semblante austero mudava quando terminava de ler uma página e começava a outra, transitando entre a surpresa e o espanto.
O semáforo estava prestes a abrir quando vi aquele senhor pela última vez. Não era possível mais ver seu rosto. Estava imerso no meio dos textos, das fotos e dos gráficos. Assim que cheguei na redação tratei logo de caçar aquele jornal velho.
Desejava descobrir quais matérias interessaram aquele leitor, nitidamente fora do público-alvo dito desejável pelos veículos de comunicação de massa. Estampado na capa daquela edição do Jornal da Cidade, do dia 10 de agosto de 2016, estava a seguinte manchete: “Bauru tem potencial de consumo de R$ 9 bilhões no ano, diz estudo”. O morador em situação de rua estava fora dessa.
Ah, sim. O jornal também destacava a cobertura olímpica. “Torcida dá força e Brasil bate Espanha”, dizia o título da matéria. Infelizmente, a campanha da seleção brasileira de basquete não foi para frente. No mesmo box tinha uma chamada sobre os nove bauruenses que estavam na Rio 2016… Tudo aquilo não parecia mais relevante.
Afinal, diferentemente daquele senhor, estava com todas as informações sobre os jogos olímpicos constantemente atualizadas ao alcance da minha mão. Não parava de pensar como isso era injusto. Mas aquele senhor parecia pouco se importar com a obsolescência das notícias. Mesmo com um dia de atraso, ele havia acabado de adquirir um repertório que o incluía nas discussões cotidianas.
Nunca mais me deparei com aquele senhor. Um mês depois do ocorrido, um único questionamento martela na minha cabeça. Será que ele teve acesso ao jornal do dia seguinte? Independentemente de qualquer resposta, um jornal amanhecido sempre será uma ação paliativa para um problema muito maior: a exclusão social.
