O Atlas da guerra

Um prelúdio dos conflitos do amanhã

Bruno Kunzler
ZERO42
8 min readDec 11, 2015

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Se não estão ao seu lado nesse momento, robôs autônomos logo estarão. Eles podem estar limpando seu chão, lavando suas roupas ou ajudando a Amazon a empacotar o último livro que você comprou. Capazes de tudo isso sem que você explique a ele detalhadamente o quê e como deve fazê-lo. Mas, como não poderia deixar de ser, a mesma busca por autonomia que guiou a criação do inocente Roomba ou dos Kiva Robots também guiou algunas cositas más.

O aparato militar, como não é de se surpreender, entrou nessa onda, desenvolvendo direta ou indiretamente os mais diversos softwares e hardwares para serem utilizados em guerra. Essa mão (quase um braço) do exército em tecnologias tão novas desperta medo e apreensão, afinal, o histórico militar com novas tecnologias não é lá tão positivo. O século XX não nos deixa mentir.

Mas, antes de entrarmos mais a fundo nas razões por trás desse movimento militar, vale a pena dar uma olhada no estado “atual” do desenvolvimento tecnológico. Atual entre aspas, porque tudo que você vai ver é apenas o que já foi documentado pela imprensa de algum lugar, o que quer dizer que o estado realmente atual dessas tecnologias só é conhecido pelos laboratórios que as estão desenvolvendo.

Esse é o prelúdio da guerra do amanhã: no ar, na água ou em terra; em forma animal, de inseto ou humanóide, mas sempre com câmeras de vigilância, metralhadoras ou Hellfires.

Taranis | Influenciados pelos famosos drones norte-americanos, outros países estão desenvolvendo seus próprios UCAS — sigla em inglês para “Sistemas de Combate Aéreo Não-Tripulado”. Um dos mais avançados é o Taranis, da Inglaterra.

Com cara de vilão e nome do deus celta dos trovões, esse avião-robô demandou 1,5 milhões de homens-hora e o envolvimento de 250 empresas inglesas. O que ele faz? Além de ser capaz de voar mais rápido que a velocidade do som, não ter piloto algum e não ser detectado por radares, ele é capaz de identificar seus próprios alvos. A ordem de ataque ainda deve vir de um humano, mas quase todo o resto ele faz sozinho.

O Taranis é apenas um dos vários exemplos atuais de UCAS. Tão assustadores quanto, o X47-B e o Phantom Ray, da Boeing, também valem ser mencionados.

Cheetah | Quem já leu Fahrenheit 451 e se lembra do Mechanical Hound vai se identificar com esse aqui: desenvolvida pela Boston Dynamics (empresa de robótica que pertence ao Google/Alphabet), a Cheetah é uma entre vários exemplares de animal-shaped robots. Capazes de carregar vários quilos durante combate, correr a até 46km/h (mais rápido que o Usain Bolt), se reequilibrar após empurrões, saltar obstáculos e se comportar em grupo — sim, eles podem formar uma espécie de matilha e seguir um líder — esse grupo de robôs é um dos que mais assusta à primeira vista. E não são só os EUA: os chineses também têm um deles, o Da Gou.

Seja pela similaridade de movimentos ou pela força física, vê-los em ação dá aquele frio na espinha: parecem perto demais de um animal real. E ainda vêm em diversos tamanhos, já que a Cheetah tem outros irmãos: Big Dog, Wild Cat e o pequeno Spot.

Cyro | Um robô em formato de água-viva que nasceu na universidade de Virginia Tech, nos Estados Unidos, criado por um grupo de alunos de graduação. Ele é parte de um projeto de US$ 5 milhões financiado pela marinha norte-americana.

Uma água-viva… Por que não um tubarão, peixe ou algo mais comum? Como o Cyro tem a função de se manter em água pelo maior tempo possível para fazer vigilância militar, colher dados sobre o ambiente e mapear o fundo do oceano, ele precisa utilizar o mínimo de energia possível e se manter “carregado” durante longos períodos de tempo. De acordo com o TechHive, o formato de águas-vivas foi utilizado por elas conseguirem flutuar no oceano sem usar muita energia, tornando-se o modelo ideal.

SGR-1 | Saindo quase que diretamente de Deus Ex ou Team Fortress, o SGR-1, da Samsung Techwin, tem um propósito mais claro que os outros robôs citados acima: detectar inimigos e atirar. Simples assim. Utilizado na fronteira entre as Coréias do Norte e Sul, não é difícil imaginar ele sendo usado também em qualquer outra fronteira, seja ela nacional ou local.

Ainda que as imagens choquem (ou maravilhem, dependendo da sua visão de mundo), o que mais nos perturbou é a maneira como a própria Samsung Techwin vende a si mesma e seus produtos:

Ok, não era provável que eles fossem dizer ”We’ll help you shoot everyone you don’t want nearby”, mas assegurar que as pessoas tenham vidas felizes e seguras não parece algo que uma sentinela com metralhadoras faça.

Iron Dome | Continuando com o “We’ll help you shoot everyone you don’t want nearby”, está o Iron Dome, de Israel, desenvolvido pela Rafael Advanced Defense Systems e pela Israel Aircraft Industries, com financiamento norte-americano. Mais que uma arma, é um sistema de vigilância capaz de tomar decisões sozinho quando o espaço aéreo israelense é invadido por mísseis e outros projéteis. Estima-se que o Dome já tenha interceptado 90% dos mísseis destinados ao seu território, mas sua efetividade ainda não é aceita completamente. Alguns defendem que seu uso é sim efetivo, por diversas razões estratégicas e políticas. Porém, outro grupo faz críticas à sua real capacidade de proteção, do ponto de vista técnico, e às intenções por trás de seu desenvolvimento — tanto que ela já foi chamada de “uma arma de relações públicas”.

Os “pais” do Iron Dome foram desenvolvidos pelos EUA — US Phalanx e o C-RAM — e o “filho”, David’s Sling, já está sendo criado. E, como todo mundo quer se proteger de todo mundo, Israel já possui planos claros de vender esse sistema para países aliados — cada uma das “baterias”, como da imagem acima, custa cerca de US$ 50 milhões e cada um dos mísseis utilizados custa US$ 100 mil.

CARACAS | Control Architecture for Robotic Agent Command And Sensing. Esse não é um exemplo específico de hardware, mas sim um software que permite que robôs compartilhem dados e hajam em conjunto, sincronizados. Um dos seus usos é em barcos autônomos (veja a partir do 3:17). Mais uma vez, é financiado pela marinha dos EUA.

Para quê? Ajudar a proteger navios multibilionários de guerra, sem precisar arriscar a vida de marinheiros. Ainda que tenha uma função primariamente de defesa, não é difícil imaginá-los sendo usados para ataques furtivos. Armas não faltam: “Os barcos de patrulha não-tripulados podem ser armados com armas não-letais, como lanternas, alto-falantes e microondas high-power; e com armas ofensivas, como metralhadoras de calibre .50”.

Atlas | Por último, Atlas. Talvez o protótipo que mais se aproxima do imaginário coletivo de um humanóide autônomo. Ele foi construído pela Boston Dynamics para ajudar em missões humanitárias e de resgate em zonas de desastre. É tão avançado (mesmo que não pareça) que se tornou o modelo básico da principal competição de robótica do exército americano: o DARPA Robotic Challenge.

Tem um propósito “bonito” por trás, como dito reiteradas vezes, mas o financiamento militar que possibilitou sua criação não deixa muitas dúvidas sobre seu possível futuro. Jody Williams, ganhadora do Nobel da Paz, já deixou clara sua opinião: “Você tem um robô de 2,5m de altura em que cientistas trabalham dia e noite para tornar mais móvel e estável, e você quer me convencer de que eles [militares] não vão colocar metralhadoras nele e mandá-lo para zonas de guerra?”.

Tanto é verdade que, após a aquisição da Boston Dynamics pelo Google, os laços com a DARPA e com o próprio exército foram cortados, já que a empresa quer se distanciar de qualquer envolvimento militar e focar sua energia no desenvolvimento de robôs exclusivamente para consumo. Mas haverá substitutos, certamente.

O que isso tudo representa? Pode ser o céu na terra ou o inferno em casa, dependendo da sua visão de mundo e do país onde você mora. Mas, conceitualmente, essas coisas são sistemas militares parcialmente autônomos, isto é, realizam certas tarefas sem interferência humana. Alguns, com explícita capacidade letal; outros, ainda não.

É exatamente esta ligação entre autonomia e capacidade letal que pega. Se um robô pode salvar alguém, decidir sobre sua própria rota ou nadar sozinho, ótimo, é disso que precisamos. O grande receio mora na utilização deles como armas, com capacidade de atirar em e matar alguém; no fato de “terceirizarmos” a decisão de escolher entre vida ou morte para um algoritmo. Permitir ou não que sistemas autônomos tenham capacidade letal é o centro do debate. Ligado a questões militares, científicas, de soberania nacional, de direitos humanos e de governabilidade global.

Neste momento, nós estamos quase cruzando essa linha, sem sabermos muito bem o porquê ou os riscos. Não há como enfatizar suficientemente a importância do momento: se dermos o passo em direção à letalidade autônoma, não estaremos apenas criando um novo tipo de arma. O uso desses sistemas representaria os primeiros passos de uma nova revolução militar. Revolução, porque têm o potencial de mudar a lógica de uma guerra — a forma como encaramos e percebemos um conflito, como pesamos consequências, como vemos o inimigo e como enxergamos humanidade no outro; os movimentos geopolíticos envolvidos, como imperialismo, expansão e terrorismo; e a magnitude e tipo dos impactos gerados.

Entender o que nos trouxe até aqui é essencial para termos clareza do momento presente e das forças em questão, e é sobre isso que falaremos no próximo artigo.

Este texto é o primeiro da série “Quando deixamos a guerra para robôs.

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