O Atlas da guerra
Um prelúdio dos conflitos do amanhã
Se não estão ao seu lado nesse momento, robôs autônomos logo estarão. Eles podem estar limpando seu chão, lavando suas roupas ou ajudando a Amazon a empacotar o último livro que você comprou. Capazes de tudo isso sem que você explique a ele detalhadamente o quê e como deve fazê-lo. Mas, como não poderia deixar de ser, a mesma busca por autonomia que guiou a criação do inocente Roomba ou dos Kiva Robots também guiou algunas cositas más.
O aparato militar, como não é de se surpreender, entrou nessa onda, desenvolvendo direta ou indiretamente os mais diversos softwares e hardwares para serem utilizados em guerra. Essa mão (quase um braço) do exército em tecnologias tão novas desperta medo e apreensão, afinal, o histórico militar com novas tecnologias não é lá tão positivo. O século XX não nos deixa mentir.
Mas, antes de entrarmos mais a fundo nas razões por trás desse movimento militar, vale a pena dar uma olhada no estado “atual” do desenvolvimento tecnológico. Atual entre aspas, porque tudo que você vai ver é apenas o que já foi documentado pela imprensa de algum lugar, o que quer dizer que o estado realmente atual dessas tecnologias só é conhecido pelos laboratórios que as estão desenvolvendo.
Esse é o prelúdio da guerra do amanhã: no ar, na água ou em terra; em forma animal, de inseto ou humanóide, mas sempre com câmeras de vigilância, metralhadoras ou Hellfires.
Taranis | Influenciados pelos famosos drones norte-americanos, outros países estão desenvolvendo seus próprios UCAS — sigla em inglês para “Sistemas de Combate Aéreo Não-Tripulado”. Um dos mais avançados é o Taranis, da Inglaterra.
Com cara de vilão e nome do deus celta dos trovões, esse avião-robô demandou 1,5 milhões de homens-hora e o envolvimento de 250 empresas inglesas. O que ele faz? Além de ser capaz de voar mais rápido que a velocidade do som, não ter piloto algum e não ser detectado por radares, ele é capaz de identificar seus próprios alvos. A ordem de ataque ainda deve vir de um humano, mas quase todo o resto ele faz sozinho.
O Taranis é apenas um dos vários exemplos atuais de UCAS. Tão assustadores quanto, o X47-B e o Phantom Ray, da Boeing, também valem ser mencionados.
Cheetah | Quem já leu Fahrenheit 451 e se lembra do Mechanical Hound vai se identificar com esse aqui: desenvolvida pela Boston Dynamics (empresa de robótica que pertence ao Google/Alphabet), a Cheetah é uma entre vários exemplares de animal-shaped robots. Capazes de carregar vários quilos durante combate, correr a até 46km/h (mais rápido que o Usain Bolt), se reequilibrar após empurrões, saltar obstáculos e se comportar em grupo — sim, eles podem formar uma espécie de matilha e seguir um líder — esse grupo de robôs é um dos que mais assusta à primeira vista. E não são só os EUA: os chineses também têm um deles, o Da Gou.
Seja pela similaridade de movimentos ou pela força física, vê-los em ação dá aquele frio na espinha: parecem perto demais de um animal real. E ainda vêm em diversos tamanhos, já que a Cheetah tem outros irmãos: Big Dog, Wild Cat e o pequeno Spot.
Cyro | Um robô em formato de água-viva que nasceu na universidade de Virginia Tech, nos Estados Unidos, criado por um grupo de alunos de graduação. Ele é parte de um projeto de US$ 5 milhões financiado pela marinha norte-americana.
Uma água-viva… Por que não um tubarão, peixe ou algo mais comum? Como o Cyro tem a função de se manter em água pelo maior tempo possível para fazer vigilância militar, colher dados sobre o ambiente e mapear o fundo do oceano, ele precisa utilizar o mínimo de energia possível e se manter “carregado” durante longos períodos de tempo. De acordo com o TechHive, o formato de águas-vivas foi utilizado por elas conseguirem flutuar no oceano sem usar muita energia, tornando-se o modelo ideal.
SGR-1 | Saindo quase que diretamente de Deus Ex ou Team Fortress, o SGR-1, da Samsung Techwin, tem um propósito mais claro que os outros robôs citados acima: detectar inimigos e atirar. Simples assim. Utilizado na fronteira entre as Coréias do Norte e Sul, não é difícil imaginar ele sendo usado também em qualquer outra fronteira, seja ela nacional ou local.
Ainda que as imagens choquem (ou maravilhem, dependendo da sua visão de mundo), o que mais nos perturbou é a maneira como a própria Samsung Techwin vende a si mesma e seus produtos:
Ok, não era provável que eles fossem dizer ”We’ll help you shoot everyone you don’t want nearby”, mas assegurar que as pessoas tenham vidas felizes e seguras não parece algo que uma sentinela com metralhadoras faça.
Iron Dome | Continuando com o “We’ll help you shoot everyone you don’t want nearby”, está o Iron Dome, de Israel, desenvolvido pela Rafael Advanced Defense Systems e pela Israel Aircraft Industries, com financiamento norte-americano. Mais que uma arma, é um sistema de vigilância capaz de tomar decisões sozinho quando o espaço aéreo israelense é invadido por mísseis e outros projéteis. Estima-se que o Dome já tenha interceptado 90% dos mísseis destinados ao seu território, mas sua efetividade ainda não é aceita completamente. Alguns defendem que seu uso é sim efetivo, por diversas razões estratégicas e políticas. Porém, outro grupo faz críticas à sua real capacidade de proteção, do ponto de vista técnico, e às intenções por trás de seu desenvolvimento — tanto que ela já foi chamada de “uma arma de relações públicas”.
Os “pais” do Iron Dome foram desenvolvidos pelos EUA — US Phalanx e o C-RAM — e o “filho”, David’s Sling, já está sendo criado. E, como todo mundo quer se proteger de todo mundo, Israel já possui planos claros de vender esse sistema para países aliados — cada uma das “baterias”, como da imagem acima, custa cerca de US$ 50 milhões e cada um dos mísseis utilizados custa US$ 100 mil.
CARACAS | Control Architecture for Robotic Agent Command And Sensing. Esse não é um exemplo específico de hardware, mas sim um software que permite que robôs compartilhem dados e hajam em conjunto, sincronizados. Um dos seus usos é em barcos autônomos (veja a partir do 3:17). Mais uma vez, é financiado pela marinha dos EUA.
Para quê? Ajudar a proteger navios multibilionários de guerra, sem precisar arriscar a vida de marinheiros. Ainda que tenha uma função primariamente de defesa, não é difícil imaginá-los sendo usados para ataques furtivos. Armas não faltam: “Os barcos de patrulha não-tripulados podem ser armados com armas não-letais, como lanternas, alto-falantes e microondas high-power; e com armas ofensivas, como metralhadoras de calibre .50”.
Atlas | Por último, Atlas. Talvez o protótipo que mais se aproxima do imaginário coletivo de um humanóide autônomo. Ele foi construído pela Boston Dynamics para ajudar em missões humanitárias e de resgate em zonas de desastre. É tão avançado (mesmo que não pareça) que se tornou o modelo básico da principal competição de robótica do exército americano: o DARPA Robotic Challenge.
Tem um propósito “bonito” por trás, como dito reiteradas vezes, mas o financiamento militar que possibilitou sua criação não deixa muitas dúvidas sobre seu possível futuro. Jody Williams, ganhadora do Nobel da Paz, já deixou clara sua opinião: “Você tem um robô de 2,5m de altura em que cientistas trabalham dia e noite para tornar mais móvel e estável, e você quer me convencer de que eles [militares] não vão colocar metralhadoras nele e mandá-lo para zonas de guerra?”.
Tanto é verdade que, após a aquisição da Boston Dynamics pelo Google, os laços com a DARPA e com o próprio exército foram cortados, já que a empresa quer se distanciar de qualquer envolvimento militar e focar sua energia no desenvolvimento de robôs exclusivamente para consumo. Mas haverá substitutos, certamente.
O que isso tudo representa? Pode ser o céu na terra ou o inferno em casa, dependendo da sua visão de mundo e do país onde você mora. Mas, conceitualmente, essas coisas são sistemas militares parcialmente autônomos, isto é, realizam certas tarefas sem interferência humana. Alguns, com explícita capacidade letal; outros, ainda não.
É exatamente esta ligação entre autonomia e capacidade letal que pega. Se um robô pode salvar alguém, decidir sobre sua própria rota ou nadar sozinho, ótimo, é disso que precisamos. O grande receio mora na utilização deles como armas, com capacidade de atirar em e matar alguém; no fato de “terceirizarmos” a decisão de escolher entre vida ou morte para um algoritmo. Permitir ou não que sistemas autônomos tenham capacidade letal é o centro do debate. Ligado a questões militares, científicas, de soberania nacional, de direitos humanos e de governabilidade global.
Neste momento, nós estamos quase cruzando essa linha, sem sabermos muito bem o porquê ou os riscos. Não há como enfatizar suficientemente a importância do momento: se dermos o passo em direção à letalidade autônoma, não estaremos apenas criando um novo tipo de arma. O uso desses sistemas representaria os primeiros passos de uma nova revolução militar. Revolução, porque têm o potencial de mudar a lógica de uma guerra — a forma como encaramos e percebemos um conflito, como pesamos consequências, como vemos o inimigo e como enxergamos humanidade no outro; os movimentos geopolíticos envolvidos, como imperialismo, expansão e terrorismo; e a magnitude e tipo dos impactos gerados.
Entender o que nos trouxe até aqui é essencial para termos clareza do momento presente e das forças em questão, e é sobre isso que falaremos no próximo artigo.
Este texto é o primeiro da série “Quando deixamos a guerra para robôs”.
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