Apadrinhamento afetivo cria vínculos e estimula convivência familiar e experiências sociais
Programa voltado para menores que vivem em abrigos é baseado no ECA e faz parte de um conjunto de medidas protetivas para crianças e adolescentes em vulnerabilidade
Por Ana Carolina Silva
Atualmente, existem em Santa Catarina mais de três mil pessoas interessadas em adotar filhos. Do outro lado, há cerca de 249 crianças e adolescentes aptos para adoção. Esses dados foram divulgados em março deste ano pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Scheila Yoshimura, coordenadora da Casa de Acolhimento Semente Viva, de Florianópolis, explica que as crianças que aguardam em lares de acolhimento e estão aptas à adoção em Santa Catarina têm idade acima de seis anos. Elas são, na maioria, grupos de irmãos ou crianças com deficiências, perfil pouco procurado pelas famílias. Isso explica a disparidade entre os números de interessados em adotar frente aos de crianças e adolescentes para adoção.
A Casa de Acolhimento Semente Viva abriga crianças e adolescentes de um a 15 anos, em situação de risco, encaminhados pela Justiça. Na casa há menores vítimas de violência, abuso sexual, abandono, negligência. “Elas passam a morar conosco e, a partir daí, começa um novo processo de vida e inserção judicial, no banco de dados de adoção.
Acolhemos 10 crianças e adolescentes”, explica Sheila. Às famílias biológicas podem visitá-las — quando há possibilidade de retorno — , e as famílias candidatas para adoção também podem vir ao local.
O que é apadrinhamento
Programas de apadrinhamento afetivo e financeiro são usados por diversas casas de acolhimento como forma de ajudar as crianças e adolescentes a ter uma vivência fora do abrigo. O programa se baseia no artigo 197-C do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 — , que, no caso da criança ou do adolescente em situação de risco, o juiz da Infância e Juventude pode determinar medidas protetivas, como os acolhimentos institucionais e os familiares.
É dessa forma que essas crianças e adolescentes podem formar vínculos com pessoas de fora da instituição, ou da família acolhedora, as quais se dispõem a ser seus “padrinhos”. O apadrinhamento existe em três modalidades: o afetivo, financeiro e prestador de serviços. Cada um funciona de uma forma diferente. No afetivo, a pessoa se inscreve visando criar um vínculo de responsabilidade e afeto com a criança ou adolescente, oferecendo experiências fora do abrigo, como, por exemplo, ir a parques ou levar para realizar alguma atividade física. O apadrinhamento financeiro tem por objetivo fornecer recursos financeiros a uma criança durante sua estadia no abrigo, sem a necessidade de ter um contato direto. Já o prestador de serviços é alguém que se torna voluntário, fazendo algum serviço de forma gratuita. Nessa modalidade, não ocorre envolvimento afetivo e/ou financeiro com os acolhidos, ele é padrinho da instituição.
A Casa de Acolhimento Semente Viva implementou o Programa de Apadrinhamento Afetivo em 2019, com o apoio do Fórum das Instituições de Acolhimento de Florianópolis (FINAF) e do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC). Em novembro do mesmo ano, as entidades realizaram a 1ª Capacitação dos Pretendentes ao Apadrinhamento Afetivo, evento que contou com a pré-inscrição de mais de 200 pessoas interessadas em apadrinhar. O evento foi organizado pela coordenadora do programa na época, a psicóloga da equipe técnica, Sabrina Pfeiffer Busato Leite, e pela coordenadora Scheila Yoshimura. Juntas, elas proporcionaram uma tarde de conversa sobre o acolhimento institucional, explicando detalhadamente as etapas envolvidas no apadrinhamento afetivo.
Quero ser padrinho. Quero ser madrinha.
De acordo com Scheila Yoshimura, no Semente Viva, o processo envolve algumas etapas:
- Primeiramente, o interessado faz a inscrição na Plataforma Colaborativa da Jornada do Apadrinhamento, que dará acesso ao curso virtual para pretendentes.
- Após concluir esta etapa, receberá um questionário para Habilitação. Concluindo este processo, ficará no Banco de Dados, disponível a todas as casas de acolhimento de Florianópolis.
- Assim que iniciar o processo com uma criança ou adolescente, assinará o Termo de Adesão — um documento formalizando o ingresso no programa.
- Quando surgir a oportunidade de iniciar vínculo de uma criança com um padrinho afetivo, a instituição inicia o processo de escuta e acolhimento dos desejos do acolhido. “O objetivo é verificar se há abertura e estrutura emocional para dar os primeiros passos em direção à formação deste novo vínculo. Assim como ocorre com o acolhido, o pretendente é chamado para uma escuta qualificada com a equipe técnica”, explica Scheila.
- Alguns encontros são agendados, para a avaliação das motivações, da personalidade e contexto de vida dos pretendentes e demais envolvidos no processo.
O apadrinhamento é um projeto que surgiu através do Projeto de Lei (PL) do Senado Federal nº 171/2013 e está especificado no Provimento nº 40/2015, com o objetivo de incentivar as pessoas que ainda não sentem segurança em adotar, mas já percebem a necessidade de alguma forma contribuir com esta área tão carente de ajuda.
No ano de 2018, foram definidas orientações para que o Programa de Apadrinhamento fosse estabelecido dentro dos municípios catarinenses. O Termo de Cooperação Técnica n. 020/2018/MP foi assinado entre o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), a Secretaria de Estado da Assistência Social, Trabalho e Habitação (SST), atual Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS), a Federação Catarinense de Municípios (FECAM), a Defensoria Pública do Estado e a OAB Seccional de Santa Catarina. Com esse documento, foram estipulados critérios mínimos para o funcionamento e fiscalização do programa.
Padrinhos & Acolhidos
O casal de padrinhos, Ana e João, ambos na faixa dos 40 anos, se inscreveu no site da instituição Casa Lar Semente Viva e participaram da capacitação de pretendentes ao apadrinhamento. Desde o início, segundo Scheila, eles se mostraram com a intenção de apadrinhar um adolescente. Pais de um menino de 15 anos também adolescente, o casal relatou a vontade de ajudar outra criança da mesma idade a ressignificar a sua história. O casal se surpreendeu que o apadrinhamento afetivo foi muito diferente do que imaginavam, pois “a gente achou que era uma coisa e era outra”, afirma o casal. O curso de capacitação foi importante para que eles esclarecessem alguns pontos. Mas, foi principalmente no dia a dia que entenderam o papel como padrinhos. “Fomos padrinhos para apoiá-lo e orientá-lo. Nem sempre acertamos, tudo é um aprendizado, porém, estamos dispostos a aprender sempre”, completam eles. Com o curso, eles entenderam que apadrinhar alguém não é “salvar”, mas, sim, ajudar a pessoa no que ela precisa.
Outro casal de padrinhos que também se inscreveu no programa da Casa Lar Semente Viva, foi a Maria e o Luiz, ambos na faixa dos 30 anos, um casal sem filhos que recebeu a notícia de que havia um menino de oito anos pronto para apadrinharem. Naquele momento, relataram, ficaram com dúvidas e aflições. “ Quando saiu a decisão, ficamos angustiados, mas sabíamos que havia espaço e vontade da nossa parte em realizar o apadrinhamento. O programa é um ato de responsabilidade e amor, sem dúvidas”, enfatizaram.
Atualmente, os dois casais de padrinhos continuam participando do projeto que completa dois anos e, com o tempo, passaram a construir um vínculo ainda mais forte com os acolhidos, tornando-os membros importantes das duas famílias. Após terem se encontrado na Casa Lar, os padrinhos formaram um ciclo de amizade, no qual trocam principalmente experiências sobre o apadrinhamento que vivenciam.
Nomes fictícios de Ana, João, Maria e Luiz à pedido dos entrevistados