Cerca de 70% dos usuários do Restaurante Popular não têm renda, diz diretor geral

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7 min readDec 21, 2022

Refeições no local são hoje a base alimentar de moradores em situação de vulnerabilidade. Preços variam de R$ 1,5 a R$ 6,00; para descontos e isenção é preciso cadastro

Por Luana Santos, Luiza Pereira e Isabela Braga
Fotos: Anthony Cervinski

Nestor João Vicente, de 89 anos, costuma sair todos os dias de Capoeiras, bairro localizado na parte continental de Florianópolis, para almoçar no Restaurante Popular, que fica na Avenida Mauro Ramos, no centro da capital. João, que antes dependia da ajuda dos filhos para ter o que comer no almoço, e ainda assim a comida era pouca e racionada, começou a frequentar o restaurante um dia após a abertura do estabelecimento, em 16 de julho de 2022. Desde então, tem o hábito de almoçar no local.

O primeiro Restaurante Popular de Florianópolis foi inaugurado pela Prefeitura, por meio da Secretaria de Assistência Social, sob gestão da Associação da Assistência Social e Educacional Amor Incondicional (Aminc), e tem como objetivo oferecer alimentação balanceada para o público em geral, sobretudo pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade e insegurança alimentar.

Marcos Ramos, diretor geral do Aminc, afirma que a maioria das pessoas que se alimentam no restaurante tem renda de até meio salário mínimo ou não possuem renda mensal. “Digamos que de 100%, 70% é renda zero, 15% tem renda de cinquenta por cento e 15% são pagantes”, diz ele. O restaurante oferece três refeições diárias — café da manhã, almoço e jantar –, e funciona de segunda a domingo, inclusive nos feriados.

Existem três meios de acessar o restaurante popular. Aqueles que têm renda mensal maior do que meio salário mínimo pagam o valor integral das refeições: R$3,00 no café da manhã e R$6,00 no almoço e no jantar. Já aqueles que recebem até meio salário mínimo por mês são subsidiados em 50% do valor: pagam R$1,50 no café da manhã e R$3,00 no almoço e no jantar. As pessoas que não possuem renda mensal são isentas de pagamento. É necessário que o indivíduo realize cadastro no CadÚnico, para integrar os grupos prioritários. Os demais não necessitam de cadastro.

Nestor conta que possui renda mensal de R$ 450, então paga o valor de R$ 3,00 no almoço. “Com três reais não se faz comida em casa”, diz ele. Ele realizou o cadastro no CADÚnico dentro do próprio restaurante. Assistentes sociais realizam o procedimento para verificar se a pessoa possui renda zero ou não. Devido à alta demanda, o indivíduo pode se deparar com longa fila de espera para realizar seu cadastro.

Após um cadastro inicial, a população de baixa renda ou sem renda tem acesso a uma alimentação balanceada todos os dias

O time de nutricionistas contratado pelo restaurante organiza o cardápio no início de cada mês, segundo as diretrizes do edital. “Quantas vezes devemos servir frango com osso, frango sem osso, carne bovina com osso, carne bovina sem osso, embutidos, feijoada. Nos finais de semana, a gente tem que servir algo proteico — entra feijoada, dobradinha, escondidinho”, explica a nutricionista Angélica Brandão, que faz parte da equipe de planejamento estratégico do Restaurante Popular desde abril deste ano. O objetivo é oferecer alimentos que atendam às necessidades nutricionais diárias do cidadão comum.

Objetivo: seguridade alimentar

De acordo com o segundo Inquérito Nacional sobre insegurança alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), mais da metade da população brasileira convive com a insegurança alimentar (IA) em algum nível. O mesmo inquérito define segurança alimentar (SA) da seguinte forma: acesso a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, sem que isso comprometa o acesso a outras necessidades básicas. A partir disso, são definidos os graus de IA: leve, quando há incerteza sobre o acesso à alimentação no futuro e comprometimento da qualidade dos alimentos como estratégia para preservar sua quantidade; moderado, quando há redução quantitativa dos alimentos e/ou na frequência de refeições por dia; e grave, quando há fome, caracterizada pela falta de dinheiro para comprar alimentos e a disponibilidade de não mais do que uma refeição ao dia.

Em Santa Catarina, o II Vigisan identificou que mais de 2 milhões de habitantes (28,4% da população) se encontram no grau leve, quase 500 mil pessoas (7,6%) no grau moderado e cerca de 330 mil catarinenses (4,6%) no grau grave. Além disso, constatou a correlação entre renda familiar per capita e a quantidade de domicílios presentes nos graus moderado e grave: quando há pelo menos meio salário mínimo disponível por pessoa de cada domicílio, a insegurança alimentar nesses graus tende a cair pela metade.

O Restaurante Popular de Florianópolis possui limite de 2.000 refeições diárias. Marcos estima que hoje o local serve em média de 1.700 a 1.800 refeições por dia. “Nós estamos em uma média de 400 cafés da manhã, 900 almoços e 400 jantares”, calcula o diretor geral. O edital seguido pelo restaurante estabelece um limite diário de 500 cafés da manhã, 1.000 almoços e 500 jantares. Marcos também conta que desde a abertura do local a demanda aumentou e diz que o número de refeições servidas praticamente dobrou.

Nestor João Vicente é, desde a inauguração do restaurante, um dos frequentadores assíduos. “Se perdi um ou dois dias foi muito”. Ele volta em busca principalmente de frango, sua comida favorita dentre as servidas, e de feijão. “Às vezes, eu até peço para botar menos arroz, que eles colocam duas conchas. Eu quero mais é feijão. Porque eu tive anemia, e a médica mandou comer bastante feijão”. Outro frequentador, Jeremias Pereira do Nascimento, destaca outros tipos de segurança, não só a alimentar, que o restaurante pode oferecer. “A gente tem onde comer, usar o banheiro, almoçar e jantar. Não precisa estar na porta dos outros pedindo uma marmita de comida. Porque não dá pra saber quem tá fazendo, se tem gente doente naquela casa”.

Jeremias Pereira do Nascimento é um dos frequentadores do Restaurante Popular

Em meio à luta contra a insegurança alimentar, entra o obstáculo dos preços crescentes do grupo de alimentação e bebidas. Em novembro de 2022, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), registrou inflação nacional para este grupo de 0,53%. Em Florianópolis, o Índice de Custo de Vida (ICV), calculado pelo Centro de Ciências da Administração e Socioeconômicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc Esag), registrou inflação de 0,44% no mesmo mês, e um acumulado de 9,92% nos últimos doze meses. Para se desviar dos custos elevados, o Restaurante Popular procura principalmente fornecedores locais, a fim de economizar com logísticas de transporte e armazenamento, explica Angélica Brandão. “Fazemos uma seleção de fornecedores de acordo com o nosso edital e vamos fazendo a cotação de preços entre os fornecedores”.

Além do time de quatro nutricionistas, responsáveis pelos cardápios mensais, há em média 32 funcionários trabalhando em turnos alternados. A equipe se divide entre cozinheiros, ajudantes, auxiliares de cozinha, agentes administrativos e assistentes sociais. Como este é o primeiro Restaurante Popular da cidade, a localização era uma escolha importante. Muitos dos frequentadores se deslocam do Norte e do Sul da Ilha, ou até do continente, como Nestor João, apenas para comer. “Precisa ser um lugar cêntrico”, explica Marcos Ramos.

“Existe uma negociação da Secretaria de Assistência Social para implementarmos mais um restaurante no Norte da Ilha. Estamos vendo qual vai ser a proposta do prefeito”. A localização do restaurante atual precisou ser negociada, pois o prédio abandonado pertencia ao governo federal. “Foi feita uma cessão de uso, e a prefeitura abriu um chamamento público para entidades privadas poderem fazer a gestão do restaurante”.

Diariamente, o Restaurante serve cerca de 2.000 alimentações entre café-da-manhã, almoço e jantar

Todo o esforço valeu a pena. Apesar de Santa Catarina figurar entre os estados com menor índice de insegurança alimentar segundo o II Vigisan, os números ainda são expressivos. “A gente pensa, ‘Ah! Ninguém passa fome em Florianópolis’. Tem muita gente, sim”, afirma Marcos. Além das refeições diárias, o restaurante também abriga oficinas profissionalizantes de culinária e nutrição, que têm o objetivo de estimular hábitos saudáveis e gerar possibilidade de renda aos beneficiários. São, em média, 10 a 12 oficinas por mês, cujos calendários são divulgados mensalmente. As inscrições são coletadas pelas assistentes sociais no próprio local.

Sobre os impactos e as oportunidades geradas pelo Restaurante Popular, Marcos fala principalmente sobre levar alimento de qualidade para a população que precisa, com os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento. “A importância disso tudo se resume em uma história que eu ouvi de uma senhora quando ela entrou aqui na primeira noite que nós inauguramos. Ela entrou com os três filhos pequenos e chorava muito. Eu sentei do lado dela e perguntei se estava bem. Ela respondeu ‘estou chorando de emoção, porque se não fosse isso aqui, eu estaria fazendo dois miojos para dividir para os meus filhos. Nós estamos há um ano toda noite comendo miojo para eles poderem dormir sem a barriga doendo’”.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC