Portais LGBTQIAP+ ocupam espaço deixado pela mídia tradicional

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6 min readNov 3, 2023

Na Grande Florianópolis, membros da comunidade dizem não ter representação suficiente nos noticiários

Por Yasmin Mior (yasminangelamior@gmail.com)

Finalizada a 16° edição da Parada LGBTQIAP+ na Capital catarinense, em 10 de setembro, cujo tema “políticas públicas por inteiro e não pela metade” atraiu mais de 100 mil pessoas na Avenida Beira-Mar Continental, de acordo com a Prefeitura de Municipal de Florianópolis (PMF), a imprensa tradicional voltou a se calar sobre as pautas do movimento. Notícias que circularam limitaram-se apenas aos acontecimentos do evento: os veículos da cidade trataram dos preparativos do desfile, dias antes, e da sua repercussão, como o recorde de público deste ano, no dia seguinte. Foi dado destaque para o colorido das bandeiras do movimento, a festa que tomou as ruas da cidade, fotos e aspas dos participantes. Temas sobre saúde e direitos das pessoas LGBTQIAP+, por exemplo, continuaram a ser ignorados.

O evento foi realizado através da Coordenadoria de Políticas Públicas para a Pessoa LGBTI+ e da Secretaria de Turismo, Cultura e Esporte do município de Florianópolis. Foto: Pedro Perez/PMF

Para Amanda*, 25 anos, mulher trans, esse comportamento está dentro dos estereótipos e dos problemas reproduzidos pela imprensa tradicional da Grande Florianópolis em relação à comunidade LGBTQIAP+. Ela critica os dois contextos em que a mídia costuma dar atenção às pessoas LGBTs: quando há a Parada do Orgulho LGBT, ou para falar de violência. “A gente passa a existir no momento em que a gente morre e isso é especialmente comum entre a população trans, apesar de que não só”. A mesma visão é compartilhada pela professora de Inglês, Lilian Ribeiro, 41 anos, mulher bissexual. “Há uma lacuna gigante, um vão sem notícias”, diz ela, sobre a escassez de informações relacionada à comunidade nos veículos de mídia da cidade e municípios vizinhos. Para Lilian, os assuntos que mais sente falta são relacionados à saúde pública, justiça e eventos. “Eu não vejo esse tipo de notícia em lugar nenhum. Existe vida nos grupos LGBTs que eu não fico sabendo. Não vejo nos jornais, não vejo na grande imprensa e nem em veículos municipais”, enfatiza.

Essa é a mesma queixa de André Schvitzki, 21 anos, homem gay, estudante de licenciatura em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). “Quando busco algo sobre a comunidade LGBTQIAP+ [na imprensa], vão aparecer milhares de notícias sobre homofobia e assassinatos, mas eu não vejo nenhuma notícia sobre o movimento em si. Os maiores veículos de notícia não dão matérias boas sobre nós”, ressalta. O sentimento geral é de que a imprensa local é excludente quando o assunto envolve pessoas LGBTQIAP+. “Nós estamos em Santa Catarina. Apesar de termos cabeças abertas em Florianópolis, ainda têm muitas pessoas conservadoras. Eu não fico assustada que a imprensa não tenha interesse em cobrir pautas LGBTs”, pondera Lilian.

Amanda vai além, frisando que “não há interesse socioeconômico [dos veículos de mídia da Grande Florianópolis] em produzir pautas diferentes”. E enfatiza: “não é porque não há recursos ou público de interesse, mas porque as empresas vão preferir não arriscar. Porque quando você se arrisca, você perde dinheiro, e eles não querem perder dinheiro”.

Fernanda Nascimento, 35 anos, jornalista, mestre em Comunicação e doutora em Ciências Humanas na área de gênero, explica que as pautas relacionadas à comunidade LGBT sempre foram publicadas. “A pergunta é quais e de que forma”, questiona. Para ela, apesar da resistência de muitos veículos tradicionais, houve avanços. “A gente tem hoje uma visibilidade diferente de algumas décadas atrás, mas que não deixa de ter problemas. Nós sempre tivemos a presença de matérias falando de LGBTs de uma maneira jocosa, associada a patologias. Dá pra pensar o que foram os anos 1980, com a epidemia de HIV e Aids”, exemplifica. “Temos pautas mais voltadas para a inclusão de alguns direitos, como, por exemplo, o casamento igualitário, a questão de adoção [de crianças], a parentalidade. Essas são as pautas que aparecem, e também as de crimes”.

Lilian pensa que uma mudança de cultura se faz necessária neste sentido. Para ela, quando as pessoas passarem a não discriminar algo natural, como a homoafetividade, por exemplo, será possível abrir portas para o acolhimento de pessoas LGBTQIAP+ em todas as esferas da sociedade. “A partir do momento que você transforma a parada em algo ‘normal’, eu acho que abriria muitas portas para uma vida cível menos díspar, limitada”, pondera.

“Nós podemos mudar esse panorama nos apropriando de pautas que as pessoas estão reivindicando no movimento”, sugere Fernanda. A pesquisadora ressalta que é fundamental, no trabalho dos jornalistas, “pensar em quem são as nossas fontes, para quem estamos recorrendo. Por exemplo, a gente fala com pessoas LGBTs quando? Quando é significativo para uma pauta LGBT ou a gente fala com eles como profissionais?”.

Sobre a importância da imprensa e do jornalismo, Fernanda ressalta ainda o papel que a atividade representa para a construção da realidade. “O jornalismo não é um espelho, ele não é um lugar que só mostra o que está presente, ele também constrói. A gente aprende com o que lê e é noticiado sobre outras culturas, pessoas, sobre a nossa própria experiência”, ressalta. Para a pesquisadora, é muito significativo pensar na responsabilidade do jornalista na construção de uma sociedade na qual a diferença é algo que faz parte da vida.

Portais LGBTQIAP+

Em decorrência da pouca visibilidade de notícias para a comunidade LGBTQIAP+ nos veículos de mídia tradicional na Grande Florianópolis, a imprensa independente é uma opção para buscar por informações. O portal Floripa.LGBT é uma dessas iniciativas, sendo criado em 28 de junho pelo casal Danilo Duarte, jornalista, e João Pereira, turismólogo.

Danilo e João, respectivamente, se propõem a dar visibilidade a temas, pautas e empreendimentos que se conectam com a comunidade LGBT de Florianópolis e região. Foto: Larissa Silva.

“Nós começamos a maturar a ideia de que se não existe, vamos então criar esse espaço em que a minha comunidade se sinta representada, que eu possa prestar serviço para ela”, enfatiza. Danilo destaca também que “nós [LGBTQIAP+] somos muito mais do que costumamos ser vistos. E somos muito mais do que as páginas policiais. Somos mais do que a violência e do que a cultura. Somos pessoas que estão na área da saúde, na política, e a gente quer mostrar tudo isso”.

A linha editorial do portal é voltada para conteúdos noticiosos, com serviços e espaços para a comunidade LGBTQIAP+ se encontrar. “É produzir conteúdo local para a comunidade LGBT. A gente quer que as pessoas se vejam ali”, salienta. Para Lilian, eles já estão cumprindo um bom papel. “Eu vi bastante coisa interessante ali. Só na página inicial — que remete ao dia 23 de agosto –, fala da parada LGBT, o que é ótimo, fala do STF [Supremo Tribunal Federal], fala do Plano Nacional da Juventude Negra. Ou seja, não cobre só LGBT, cobre racismo também, fala coisa à beça. É muita coisa legal. Onde você descobriria tudo isso que está acontecendo e a gente não sabe?”, indaga. André compartilha da mesma opinião.“Eles estão cumprindo bem este lugar de informar”. “A gente sabe que ainda tem um caminho grande para construir, mas sabemos que estamos conseguindo trilhar”, completa Danilo.

Outra possibilidade para quem busca por notícias sobre a comunidade LGBTQIAP+ na Grande Florianópolis é o Guia Gay Floripa, um site de notícias fundado a partir da iniciativa da Guiya Editora. Em seu editorial, o portal diz ter como missão “elevar o nível no Brasil no que diz respeito às informações sobre roteiros LGBTs para quem vive nas principais cidades brasileiras e/ou visitam-nas”. Em 2016, o Guia Gay lançou a última versão (em PDF) dos principais pontos turísticos da Capital catarinense para serem visitados. Neles estão incluídos bares, festas, praias e até mesmo os estádios da Grande Florianópolis. Há também um guia publicado pelo portal Estrangeiras, de 2022. O site funciona como um blog para as suas fundadoras, Fabia Fuzeti e Gabi Torrezani. “Como somos um casal de mulheres viajando, trazemos uma visão feminina e achamos importante inserir discussões e conteúdo LGBT, artístico e cultural”, escrevem.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC