Cristão, pastor e esquizofrênico

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8 min readNov 9, 2022

Dogmas religiosos podem ser obstáculos na busca pelo tratamento correto da doença que atinge mais de 1,6 milhão de brasileiros

Por: Julia Breda

Três silhuetas de homens vestidos com batinas pretas e colarinhos brancos. Não mostra os rostos.
Fonte: Arquivo pessoal.

A relação de André* com a esquizofrenia se manifestou quando ele ainda era muito pequeno. No entanto, ele só descobriu o diagnóstico 30 anos mais tarde — e isso tem tudo a ver com um fator que une milhões de brasileiros: a religião.

Acordar de noite ouvindo vozes dizendo que vão te matar ou vendo alguém desconhecido dentro do próprio quarto é uma experiência assustadora, especialmente quando se é criança. A solução costuma ser correr para o quarto dos pais, que vão dizer que era só um sonho, nada demais. Para André, no entanto, sempre foi muito mais do que pesadelos. “Eu acordo ouvindo vozes, elas me chamam, falam que vão me matar, que eu mereço morrer. Tem um homem que sempre vejo, de chapéu e capa, às vezes a capa é preta, outras é cinza. Eu vejo vultos e criaturas estranhas, que minha cabeça inventa. Quando era criança, morria de medo”, relatou ele.

Tudo pode ficar pior se esses episódios, além de se repetirem quase todas as noites, ocorrerem dentro de uma família fervorosamente evangélica. Para sua mãe, a solução para as crises do filho se resumia a chamar o pastor, já que era “tudo do diabo” e o menino precisava ser curado. Foram diversas estratégias, desde dar dinheiro para a igreja, realizar campanhas, dar sete voltas em torno da casa e tudo mais que o pastor mandava fazer. Mas nada disso adiantou e as alucinações continuaram. Somadas às dores crônicas causadas por uma doença autoimune, que provoca inflamações, André foi ficando cada vez mais deprimido.

Já adulto, teve surtos que o fizeram vagar pela cidade e dormir na rua. André se considera abençoado por Deus, já que esteve seguro nas duas situações, contando com o apoio de uma ex-namorada e de policiais que o encontraram**

Foi quase por um acaso que, aos 34 anos e durante o tratamento para depressão, soube a verdadeira razão das alucinações e dos surtos que o acompanham desde criança: uma doença mental crônica. “A psiquiatra observou que eu tinha um problema sério e perguntou se eu via coisas ou ouvia vozes”, contou André, explicando que estava em busca de um medicamento que o ajudasse com a insônia, sintoma também relacionado à esquizofrenia. “Eu disse que sim, mas que era algo espiritual, que eu tinha minhas crenças. Ela disse ‘respeito suas crenças, mas você tem esquizofrenia’.”

Para ele, não foi nada fácil aceitar o diagnóstico. “Saí revoltado de lá. Eu não sabia o que era. Pra mim, esquizofrenia era quando a pessoa tem múltiplas personalidades”, explicou o pastor, que confundia a doença com o transtorno dissociativo de identidade, “Fiquei transtornado e até catatônico por um tempo”. Foi com o incentivo da esposa, preocupada com seu estado de saúde, que ele buscou outros médicos. E todos confirmaram: André é, sim, uma pessoa com esquizofrenia.

Mais do que o diagnóstico, a confirmação trouxe um fato difícil de aceitar: as coisas que ele via não eram espirituais, mas sintomas de um problema de saúde.

E não foi só ele que negou o diagnóstico. André conta que, ao compartilhar com a mãe a informação, a reação foi ainda pior do que imaginara. Para ela, seu filho precisava mais de Deus, da igreja, da ajuda do pastor, não de psiquiatras e de um tratamento que nunca resolveria — afinal, o problema “era do diabo”. Ele não contou para mais ninguém da família e, vendo a reação que tiveram a partir do mesmo diagnóstico de outros primos, percebeu que fez uma escolha que o preservaria.

Apesar da falta de apoio de familiares, sua companheira deu o suporte que ele precisava na jornada desde o diagnóstico até hoje. Com o início do tratamento, os sintomas diminuíram muito e o menino retraído que ele tinha se tornado voltou a ser mais aberto; as alucinações se tornaram menos frequentes, mais fáceis de lidar; e os surtos, ainda mais raros.

“Hoje acontece mais quando eu tô muito estressado mesmo. Por isso, tenho que evitar ao máximo estresse na vida normal”. André explicou que o efeito é tão intenso que mesmo um corte durante o preparo das refeições pode desencadear alucinações no final do dia. “A última vez que tive um surto foi no final de 2021. Estava muito estressado. Fiquei igual a um cachorro e até comi ração. A minha esposa me ‘zoa’ até hoje por isso” contou, enquanto ria. “É ótimo. A gente dá risada junto e isso traz uma leveza. Não fica tornando tudo uma tragédia. Ela me dá leveza para lidar com algo que aconteceu e não ficar chorando por isso”, completou.

Ela também foi essencial na decisão de se tornar pastor de uma igreja evangélica, após se tornar luterano — caminho com o qual se identifica e que mudou completamente sua vida. Antes disso, André trabalhou como assistente de marketing e administrativo, após terminar a faculdade na área. Apesar de gostar do trabalho, sentia falta de conversar com pessoas e as dores crônicas dificultavam sua rotina. Isso fez com que ele ficasse seis anos como segurado no INSS, até que resolveu “tomar o controle” da sua vida. Apoiado pela esposa, foi então que decidiu largar tudo e ir para o Seminário, onde se preparou para se tornar pastor.

Mesa de igreja coberta com panos brancos e verdes. Em cima da mesa, vê-se uma bíblia aberta, uma garrafa de vinho e um vidro de álcool gel. Ao fundo, observa-se uma parte do tronco de um homem vestido com a batina religiosa.
De terça à domingo, André (ao fundo) se dedica ao seu trabalho na igreja. Na segunda, estuda e pratica outros hobbies relacionados à sua paixão pelo Heavy Metal. Fonte: Arquivo pessoal.

Hoje, acredita ter encontrado sua verdadeira vocação, algo essencial para os luteranos — isso porque Martinho Lutero (1483–1546), teólogo alemão e figura central da Reforma Protestante, acreditava que a vocação é um chamado, a maneira como Deus trabalha através dos humanos, um dom que ele concedeu a cada um.“Eu gosto de lidar com público e, desde sempre, estudei muita teologia. Então uni o útil ao agradável”, relatou ele. “Eu estudo muito, porque acredito que os pastores tem que saber muito bem o que estão falando para não falar besteira. Eu ainda estou no começo, sei pouco comparado a outras pessoas, mas estou caminhando”. André explicou ainda que pode passar até três dias traduzindo textos (do grego ou hebraico) e estudando para criar um sermão de 15 minutos.

Seu diagnóstico de esquizofrenia foi confirmado ainda durante o período como seminarista. André resolveu ser sincero com os responsáveis do local e também com a direção da igreja onde trabalha hoje. Para seu alívio, conseguiu a posição de pastor sem que isso fosse um obstáculo. Dos fiéis que o acompanham, no entanto, ele não sente a mesma abertura para contar sobre sua doença psíquica.

“Hoje estou aqui, trabalhando, consigo viver uma vida normal. Mas eu tenho que tomar cuidado para não deixar transparecer que eu tenho esse problema, por causa do preconceito. Aqui na igreja eu não conto”, afirmou o pastor, com semblante sério. “É uma doença muito estigmatizada, o pessoal acha que [o paciente] é violento. Eu gosto de interagir com as pessoas e gosto de ser verdadeiro. É horrível não poder me abrir realmente com elas. Eu tenho que ser 50%, 60% eu.

A única razão para quebrar essa regra é quando falar sobre sua doença psíquica pode ajudar os fiéis com quem trabalha. “Já teve caso em que uma pessoa estava com depressão, e eu compartilhei com ela que eu tenho esquizofrenia. Para mostrar que doença mental não é o fim do mundo, que tem tratamento e dá pra ter uma vida normal” relatou, deixando claro que são exceções. “Se for uma necessidade para que a pessoa entenda que tem como lutar contra problemas de saúde mental, eu me abro. Se não, eu não falo sobre.”

Grande cruz marrom grudada à parede.
“Aqui na igreja eu não conto, porque o pessoal é muito simples e, infelizmente, é uma doença muito estigmatizada, acham que é violento”, afirmou o pastor. Fonte: Arquivo pessoal.

A estigmatização e o preconceito contra pessoas com transtornos psicossociais é chamada psicofobia, representa uma barreira na busca por diagnóstico e tratamento correto, especialmente de doenças mais graves, como a esquizofrenia.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), menos de 50% das pessoas com esquizofrenia fazem o tratamento adequado. Em países de baixa e média rendas, esse número pode cair para 10%. Além disso, pessoas com esquizofrenia são de duas a três vezes mais propensas a morrer prematuramente do que a população em geral, devido a condições secundárias, causadas ou não pelo transtorno — como doenças cardiovasculares, metabólicas ou infecciosas –, ou por suicídio.

A demora de diagnóstico e de tratamento, no caso de André, estava diretamente relacionada a dogmas e crenças religiosas, que têm um peso importante para a manutenção da psicofobia no Brasil. Mas ele não é o único que passou anos sem saber que tinha a doença e a esconder de outras pessoas quando descobriu.

A esquizofrenia segue sendo uma doença escondida na sociedade, apesar de ser a terceira maior causa de diminuição da qualidade de vida entre os 15 e 44 anos, conforme dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). São cerca de 1,6 milhão de brasileiros que, além da doença, sofrem com o estigma social, discriminação e mesmo a violação de seus direitos humanos e civis.

Buscando conforto para falar sobre quem realmente é, André encontrou refúgio no Twitter — plataforma onde o Zero soube de sua existência. Por trás dos 280 caracteres, o pastor pode opinar sobre heavy metal — estilo musical que ama desde adolescente –, religião, saúde mental e mesmo política — apesar de não apoiar políticos e preferir se afastar dessa área –, sem que pessoas conhecidas façam julgamento de quem ele é por causa disso. “É claro que eu não me exponho, mas tenho essa liberdade de falar de coisas que não posso falar na vida pessoal. É terapêutico”, afirmou o pastor, com um sorriso no rosto. Ele ainda afirmou que o Twitter é sua rede social favorita, mesmo com os “bots automáticos” que aparecem de vez em quando nas suas menções.

Sobre o que gostaria que mais pessoas entendessem sobre a esquizofrenia, André citou as diferenças no tratamento, respeito e compreensão dentro do cristianismo.

“Eu gostaria que as pessoas entendessem que cada caso [de esquizofrenia] é um caso. Existem casos em que a pessoa, infelizmente, exige mais cuidado, atenção, até internação. E tem casos que vive uma vida normal, trabalha e segue sua vida. E os dois merecem respeito. Deixem as pessoas fazerem o tratamento certo”, pediu o pastor. “Ah! E esquizofrenia não é xingamento, e não diminui a religião de ninguém. O cristão está sujeito a ter doenças, como todo mundo. O cristão não vai deixar de ter gripe porque é cristão. É a mesma coisa com esquizofrenia, depressão… Faz parte da nossa fragilidade como seres humanos”, completou.

Atualmente, existem várias opções de tratamento disponíveis para pacientes com esquizofrenia — e dados da OMS apontam que pelo menos uma em cada três pessoas poderá se recuperar completamente da doença e viver uma vida considerada normal.

*André é um nome fictício inventado pelo Zero UFSC. O entrevistado pediu para não ter seu nome verdadeiro revelado.

**É importante ressaltar que André é um homem branco, cis, que estava com uniforme do trabalho durante os episódios. Os relatos de violência policial costumam afetar pacientes com recortes distintos de raça, em especial homens negros.

Glossário:

Esquizofrenia: doença mental crônica caracterizada por alucinações e delírios. Costuma se manifestar na adolescência ou início da idade adulta, iniciando mais cedo em homens.

Doença: qualquer alteração de saúde com uma causa reconhecida, que cause sintomas especificados e alterações no organismo.

Transtorno: alteração na saúde, nem sempre relacionada a uma doença, sem uma causa definida, geralmente de ordem mental ou psicológica.

Distúrbio: uma alteração nas condições físicas ou mentais do indivíduo que afeta o funcionamento de algo em sua rotina. Em geral, tem causa conhecida, mas não necessariamente um diagnóstico fechado.

Deficiência: perda ou anormalidade relacionada à estrutura ou à função psicológica, fisiológica ou anatômica, que causa impedimentos de longo prazo e pode obstruir, em algum nível, a participação plena e efetiva do paciente na sociedade. Pode ser causada ou estar relacionada a alguma doença.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC