“Jornalismo é ponte para o coração do outro”, diz a jornalista Daniela Arbex sobre Arrastados
Autora de premiados livros-reportagem, ela apresentou seu método de trabalho em Aula Magna na UFSC, revelando a imersão que fez nas histórias e memórias afetivas das vítimas da barragem de Brumadinho-MG
Por Erika Artmann
“Um trabalho de artesão”. É assim que a jornalista Daniela Arbex define o ato de contar histórias baseadas em investigações: juntando uma ponta a outra, amarrando os fios soltos e conversando com pessoas, sem saber ao certo aonde vai chegar. E, apesar de toda a incerteza ao longo da apuração, uma coisa é garantida para a autora de premiados livros-reportagem: “temos que escrever para todo mundo”. Essa foi uma das lições que ela transmitiu durante apresentação da Aula Magna do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no dia 3 de setembro de 2022, no Auditório da Reitoria lotado. Dezenas de futuros repórteres assistiam atentos ao seu relato sobre seu trabalho mais recente, o livro Arrastados, em que narra a tragédia do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, de Brumadinho (MG), administrada pela mineradora Vale. O auditório da reitoria, com capacidade para 200 pessoas, recebia também fãs e profissionais de outras áreas.
Com 49 anos, Daniela Arbex passou por redações de jornais diários em Minas Gerais ao longo de sua carreira, local em que vive e de onde se propõe a narrar as histórias. Com o tempo, passou a se dedicar exclusivamente aos livros-reportagem. Sua carreira de 23 anos foi construída aos poucos, o que ela comemora, pois assim pode se preparar para as responsabilidades que vieram com a repercussão de seu trabalho. A jornalista é conhecida por enfocar tragédias, como as contadas em Holocausto Brasileiro (2013), sobre maus-tratos no hospital colônia de Barbacena (MG), e Todo Dia a Mesma Noite (2018), sobre o incêndio na boate Kiss, de Santa Maria (RS), mas suas escolhas temáticas não ficam restritas a isso. Os Dois Mundos de Isabel (2020), por exemplo, é uma biografia jornalística sobre as contribuições de Isabel Salomão de Campos para o espiritismo, a educação e sua comunidade.
A escritora mineira se propõe a zelar pela memória coletiva do Brasil, contando histórias de pessoas e momentos que, sem o jornalismo e a literatura, tendem a ser esquecidos “Quando o jornalismo consegue atravessar saberes e chegar em várias áreas, percebemos que o trabalho está bem feito e é como podemos contribuir. Precisamos escrever para todo mundo e tocar o maior número possível de pessoas”, enfatizou durante a entrevista coletiva concedida na UFSC, após a Aula Magna. Daniela relatou que costuma apresentar palestras para juízes, advogados, engenheiros, professores, entre outros profissionais.
“Tudo na minha carreira foi acontecendo aos poucos. Que bom por ser assim. A gente nunca está preparado para essas responsabilidades. Mas eu percebi muito cedo que a palavra, a potência da palavra, tinha um efeito de transformação e de intervenção nas histórias”, afirma Daniela. A importância do trabalho jornalístico está em descobrir o que nem sempre está evidente, ouvir quem nem sempre se pronuncia, mostrar vários ângulos dos acontecimentos e, assim, ajudar a construir a memória coletiva do Brasil. Em tempos de informações rápidas e abundantes, só mesmo através de apurações aprofundadas é possível descobrir os detalhes das histórias. Não só o que aconteceu, mas quem estava no local, quais eram seus sonhos, suas dores, famílias, rotinas e quais foram seus destinos. É o que ela faz em Arrastados.
Sobre Arrastados
O trabalho de apuração e escrita do livro foi solitário, revelou Daniela. Mas, ao organizar a história de Brumadinho, ela pode contar com a ajuda do jornalista de dados, Marcelo Soares. “Eu disse o que queria e ele me ajudou, por exemplo, com a questão das ações da Vale. No ano da tragédia, as ações terminaram mais altas do que no começo, mesmo com 272 mortes. Me ajudou a entender que o mercado não se importa com a empresa violadora desde que ela dê lucro”, ressaltou. Ainda na produção do livro, fotógrafos, revisores e editores acompanharam a autora. “O que é importante, porque o autor está próximo da fonte e do texto. Um olhar de fora é muito bem-vindo, desde que não mude ou altere o texto de uma forma que eu não o reconheça mais”.
Para aprofundar detalhes ao compor seu relato, Daniela “pegou emprestado” o conhecimento de diversos especialistas durante a apuração da tragédia de Brumadinho — bombeiros, geólogos, médicos legistas etc. -, mas as histórias são das pessoas impactadas diretamente pelo rompimento da barragem do Córrego do Feijão, que aconteceu em 25 de janeiro de 2019. A jornalista estava então a caminho do Rio Grande do Sul, onde encontraria com familiares das vítimas do incêndio na boate Kiss, que aconteceu em 2013, com quem mantém contatos frequentes. A barragem que estourou em Minas Gerais guardava rejeitos de minério, com metais pesados em sua composição, e, em poucos minutos, avançou sobre a cidade em uma velocidade de 108 Km/h. A família de uma das vítimas pediu a ajuda de Daniela, por telefone, para procurar a filha desaparecida na tragédia, e contar sua história. Depois de cumprir com seu compromisso de viagem, ao voltar a Minas Gerais pediu apoio do jornal Tribuna de Minas, onde trabalhava, para a cobertura, mas não conseguiu. O jeito foi encarar sozinha a apuração.
Boa parte do trabalho aconteceu ao longo da pandemia da Covid-19. Daniela foi atravessada pelas histórias das vítimas enquanto encarava seus próprios desafios. Uma confidência dela em entrevista ao jornalista Pedro Bial, que escreveu o prefácio de Arrastados, resume esse sentimento. “Arrastados talvez seja a obra que eu tenha parido com mais dor. Além do horror da história, perdi meu irmão para a Covid-19 durante o processo de escrita. Um menino lindo de 49 anos, produtor de cinema e TV, pai de três filhos. Enfim, 2021 foi um ano muito difícil para o mundo.” Ainda assim, o livro nasceu como um alerta sobre os riscos das barragens para o país.
Antes mesmo da barragem do Córrego do Feijão estourar sobre Brumadinho, a Vale sabia dos riscos em manter pessoas trabalhando no local. Segundo Daniela, um documento a que teve acesso especificava, inclusive, o possível número de mortes: cerca de 200 pessoas. No Brasil, havia 122 barragens consideradas críticas em 23 estados brasileiros, segundo o Relatório de Segurança de Barragens de 2020. “Brumadinho nunca mais?”, questionou em alusão ao slogan usado no rompimento da barragem de Mariana (MG), em 2015, administrada pela Samarco Mineração, empreendimento conjunto da Vale e da anglo-australiana BHP Billiton. Para ela, não há como saber, mas a jornalista garantiu que persistirá com seu trabalho de alertar pessoas com seus livros-reportagem, entrevistas e palestras.
O trabalho de repórter em Arrastados
Assim que decidiu cobrir por conta própria a tragédia de Brumadinho, diante da falta de recursos do jornal Tribuna de Minas, Daniela encontrou ali uma cidade arrasada, traumatizada. A Vale decidia quem podia entrar ou sair da localidade. O contato com as pessoas, fossem familiares, bombeiros ou mesmo as vítimas da tragédia, exigiu sensibilidade e paciência. Nos primeiros contatos, as portas eram fechadas e as fontes não estavam prontas para falar. “Eu precisava achar o caminho para o coração das pessoas”, conta. Decidiu, então, se afastar e continuar a apuração a partir de quem tinha a confiança dessas pessoas: os bombeiros.
Em uma cidade arrastada pelos rejeitos, na qual tudo estava tomado de barro, os bombeiros sabiam que, passado dias do rompimento, não havia mais pessoas para salvar. Foi quando Daniela começou a se perguntar o que motivava aqueles profissionais a seguir com as buscas. Nos locais atingidos pelo rompimento da barragem, tudo estava perdido e passou a ter uma coloração avermelhada. Mesmo os mortos do acidente: fossem negros ou brancos, em um país tão desigual como o Brasil, passaram a ter a cor vermelha na pele, corroída pelos metais pesados do rejeito da mineração.
Depois dos bombeiros, ela relata que foi hora de procurar o IML (Instituto Médico Legal). No início, a visita para buscar informações deveria durar apenas um dia, mas levou um ano. Os corpos — ou parte deles — que eram encontrados, seguiam para Belo Horizonte, onde eram analisados. Os médicos descobriram que nem mesmo o Raio-X era capaz de ajudar na identificação, por causa da densidade do minério. A solução encontrada: eles vestiam nas próprias mãos a pele das vítimas encontradas para, deste modo, possibilitar a leitura das digitais. Cerca de 950 segmentos corpóreos foram encontrados no local do acidente.
Durante a Aula Magna, Daniela Arbex reforçou que Arrastados foi o livro mais desafiador, pelo tamanho da história. Para humanizar a história, dar nome e memória às pessoas, foi necessário um intenso trabalho de apuração ao conversar com muitas pessoas. Os efeitos sobre a saúde mental dela também aconteceram: a repórter engordou 10 Kg e precisou de dois anos de terapia. Mas, depois de muito atravessar a dor do outro, entendeu o privilégio que é receber essa confiança das fontes. “Quando a pessoa oferece sua memória afetiva, eu demonstro que vou cuidar dessa memória”, enfatiza. Sempre que pode, ela revela que volta para manter os laços criados durante a apuração. “Jornalismo é isso: uma ponte para o coração do outro”, finaliza.