“Meu diagnóstico virou álibi para ser vítima de todo tipo de agressão”

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7 min readDec 21, 2022

Mais da metade das pessoas com transtornos psicológicos, como a esquizofrenia, já sofreu agressões físicas, verbais e intelectuais, segundo estudo da UFMG

Por: Julia Breda

Imagem de Freepik

“Eu já pisei na bola, já queimei o filme, já chutei o balde, mas nunca chutei ninguém, nunca pisei ninguém e nunca queimei ninguém”. É assim que Cristian Korny, aos 52 anos, se refere à sua experiência de vida até aqui. Diagnosticado com esquizofrenia há quase três décadas, o compositor musical, que é formado em Comunicação Social, conta que a doença — e a visão das outras pessoas sobre ela — o privou de viver como gostaria.

“Meu diagnóstico virou álibi para todo tipo de agressão, desde os plágios, até calúnias e difamações”, enfatiza. Segundo ele, são agressões que vêm de onde menos se espera: de dentro de casa, dos amigos e dos responsáveis pelo seu tratamento psicológico.

Para sobreviver, Cristian depende da família, composta por mãe e irmão, com quem não tem uma relação saudável. Durante a vida, nunca namorou, teve carteira assinada por apenas três anos, além de alguns ‘bicos’ como revisor textual, redator e ator. Ele afirma que tem muita dificuldade para buscar emprego**, pela discriminação imposta por ser diagnosticado com esquizofrenia.

“Quando me conhecem, ninguém pergunta, julgam logo que há algo errado, pensam no pior, raramente me dão a chance de mostrar que um esquizofrênico não é um psicopata”, ressaltou. Enquanto a maioria das portas se fecham por completo para ele, algumas pessoas ainda tentam se aproveitar da sua condição para oferecer trabalhos sem remuneração nem reconhecimento. “Eles acham que podem me fazer ‘pegar no tranco’ para trabalhar, porque me julgam como preguiçoso, ou coisa do tipo. É muito desagradável o trabalho forçado”.

Dentro de casa, ele não pode realizar o que hoje considera seu trabalho (não remunerado) — a composição musical –, porque é proibido de tocar instrumentos musicais ou mesmo cantar. A voz de Cristian ainda é calada de muitas outras formas pela própria família. Ele conta que ali a relação de poder é desequilibrada: “minha mãe entra com o dinheiro, eu faço tudo [em casa] e o ‘valentão’ [como chama o irmão] não entra com dinheiro nem faz nada, mas manda na casa com ameaças e agressão”.

Os dados de um estudo de revisão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apontaram que mais de 57% das mulheres e 58% dos homens com transtornos psicossociais já sofreram com a violência verbal por causa do seu diagnóstico — como ameaça, humilhação, xingamento, ofensa ou constrangimento. “Os dados utilizados provieram de estudo transversal multicêntrico nacional (Projeto PESSOAS — Pesquisa em Soroprevalência de Aids na Saúde Mental), realizado entre usuários de serviços de saúde mental no Brasil” em 2006, segundo Helian Nunes de Oliveira, Carla Jorge Machado e Mark Drew Crosland Guimarães, autores do texto.

As principais fontes de violência verbal contra mulheres e homens apontadas no estudo foram os pais, parentes, parceiros — mais comumente contra mulheres –, funcionários, profissionais de saúde ou outros pacientes. Em mais da metade dos casos, a violência ocorreu em casa e, em cerca de 10%, dentro das instituições de saúde.

Tânia Grigolo, Doutora em Psicologia Clínica, pela Universidade de Brasília (UnB), e ex-Coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial (CAPs Ponta do Coral), de Florianópolis, ouve com frequência relatos de violência contra pessoas com transtornos psicológicos. “Na minha experiência clínica, [a violência] acontece na vida em geral das pessoas com algum transtorno mental, mas também nos próprios locais de tratamento”, afirmou.

Ela acredita que isso esteja diretamente ligado ao preconceito e a suposições criadas sobre esses pacientes. “Isso se deve muito pela concepção de que essas pessoas não podem falar sobre si mesmas. Que elas não entendem o que está acontecendo com elas, que estão loucas e nada do que elas falarem será considerado”.

Quando o diagnóstico é de esquizofrenia, classificado como um dos mais graves dentre os transtornos psicológicos, o quadro pode ser ainda pior. “Existem muitos mitos em relação às pessoas com esquizofrenia e por isso elas sofrem mais estigma, mais discriminação e podem sofrer mais violência”, declarou a psicóloga.

A descredibilização da violência é uma realidade comum para Cristian, que há muito tempo desistiu de denunciar as agressões que já sofreu ao longo da vida. “Certa vez, o ‘valentão’, ao me espancar, me ameaçou dizendo que eu era louco e que ninguém iria acreditar em mim, caso eu o denunciasse”, relata o compositor, que, além da violência física e verbal, ainda sofre com ‘agressões’ intelectuais de amigos muito próximos.

“Eles me arrancaram muitos bens simbólicos e artísticos [por plágio] e alegaram que eram alucinações minhas todas as denúncias que fiz. Um deles até disse que eu não era ninguém e eu não poderia fazer nada. Ninguém acredita num esquizofrênico”.

Segundo Tânia, a crença de que pessoas com esquizofrenia ‘inventam coisas’ é infundada e muito prejudicial. “As pessoas não inventam coisas. Elas estão sentindo mesmo e tendo experiências. Nem toda esquizofrenia é paranoide [quando o paciente passa por alucinações], mas todos nós, seres humanos, podemos ter delírios e alucinações. Isso é uma condição humana e não invalida a nossa experiência”, explicou ela.

Luta antimanicomial

Por muito tempo, pacientes com transtornos psicossociais não eram considerados cidadãos. Ao serem julgados incapazes, eram encaminhados e internados compulsoriamente em hospitais psiquiátricos, onde acabavam submetidos a tratamentos forçados e até mesmo torturados por anos a fio.

Esse cenário começou a mudar na década de 1970, a partir do movimento antimanicomial, que luta pela Reforma Psiquiátrica, pela garantia dos direitos dos pacientes com transtornos psicológicos e contra sua internação forçada em instituições de tratamento. Tânia é membro ativo da luta antimanicomial desde sua graduação, no final da década de 1980. “Essas pessoas devem ser defendidas no seu direito e não podem sofrer violências por terem uma condição de saúde mental. Nós lutamos por uma lei para que essas pessoas fossem ouvidas, respeitadas, tratadas com humanidade”.

Conhecida como Lei Antimanicomial, a Lei N° 10.216, de 6 de abril de 2001, protege os direitos das pessoas com transtornos mentais e modifica o modelo de assistência. No texto da lei, afirma-se que é direito da pessoa portadora de transtorno mental, entre outros, “ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração”.

A principal diretriz da lei foi a de que a internação deve ser o último recurso, utilizado somente se o tratamento fora do hospital for ineficaz. Dessa forma, em 2002, foram criados os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), como substitutos aos hospitais psiquiátricos. Os CAPs surgiram para ser parte na rede de apoio psicossocial, prestando assistência psicológica e médica para os pacientes e suas famílias. De acordo com o Ministério da Saúde, os CAPs buscam “preservar a cidadania da pessoa, o tratamento no território e seus vínculos sociais”.

No entanto, esse nem sempre é um espaço em que os pacientes dizem se sentir seguros. Paciente dos CAPs (assim como sua mãe), Cristian relata ter tido experiências negativas durante seu tratamento. “Eu perdi a confiança nos psicólogos de lá”, conta afirmando ter sentido preconceito em relação a sua doença. Quando se sentem descredibilizados ou violentados de alguma forma no lugar onde esperavam encontrar apoio para denunciar e se curar de outras agressões, os pacientes sofrem o que a doutora em Psicologia Clínica chama de “re-vitimização”, uma dupla violência, que torna mais difícil lidar e compreender a gravidade das situações pelas quais passam.

Tânia defende a luta por uma rede de escuta e atenção que seja cada vez mais acessível para todos. “Os CAPs e a rede de atenção psicossocial são essenciais, desde a rede básica nos Centros de Saúde até os hospitais gerais, que ainda estão muito fechados a acolher as pessoas com transtornos mentais”, enfatiza. Para ela, os pacientes devem ter suporte adequado e não violento no momento em que mais precisam.

Em um esforço pela inclusão de pessoas com transtornos psicossociais, há um Projeto de Lei nº 4918/19, que busca equiparar os transtornos mentais às deficiências. Um dos principais argumentos a favor do projeto é de que ele pode ajudar a garantir mais oportunidades de emprego, a exemplo das vagas prioritárias e/ou exclusivas para pessoas com deficiência (PcD), que já fazem parte da realidade brasileira. Sua aprovação depende da revisão pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, além da análise pelo Plenário.

“O estigma é pior do que a doença”

Depoimento por Christian Korny

“É muito comum que as pessoas interpretem a minha ‘esquisitice’ como algo demoníaco, criminoso. Preferem pensar o pior. Não sou violento. Eu coloco a mim mesmo em perigo, mas não aos outros.

O estigma é pior do que a doença. Parece que o mundo lhe interdita sem que você tenha passado pelo processo jurídico da interdição psiquiátrica, e o mundo lhe cassa os direitos civis por conta, sem nada concreto, sem sentença e sem chance de defesa. Você se torna naturalmente suspeito. O estigma impede, mais do que a doença, de fazer muitas coisas.

Depois de fazer da esquizofrenia ‘minha velha amiga’ e ter o hábito de ‘tomar um chá com ela’ por alguns anos, a gente percebe que ela não é um monstro, e que esse discurso é uma construção dos perversos de verdade, aqueles que almejam uma coisa: calar as vítimas das violências por eles praticadas”.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC