Mulheres fisiculturistas convivem com fascínio, exaustão e preconceito

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8 min readNov 20, 2023

Por meio de dietas e treinos intensos, competidoras enfrentam extremos da modalidade de alta performance em busca da perfeição

Por Giovanna Goin (giovannagoin19@gmail.com)

Em novembro de 2019, a educadora física e fisiculturista, Mayara de Moura, de 25 anos, compartilhou um vídeo de biquíni em seu perfil do Instagram. Alguns colegas encaminharam a postagem para sua chefe, no cartório em que trabalhava na época, e a reação foi agressiva. “Ela me comparou a uma atriz pornô. Disse que era ‘melhor eu deletar o meu story’”, desabafa Mayara. Na verdade, a jovem se preparava para uma competição de fisiculturismo. As imagens do shape final se tratavam de um acordo com seu treinador em busca de patrocinadores, devido ao alto custo do esporte. Nos meses de campeonato, o investimento pode chegar a mais de R$ 2.000,00 para pagar pintura corporal, maquiagem, inscrições em concursos e deslocamento. Depois de sua estreia em Blumenau (SC) naquele fim de semana, a atleta amadora foi demitida do cartório em que trabalhava — mesmo tendo excluído a publicação.

Superação: a atleta conquistou o troféu da World Fitness Federation Brasil, depois de três anos de preparação. Com o título, Mayara conseguiu parceria com uma empresa de produtos para performance.
(Foto: Reprodução / Arquivo pessoal de Mayara de Moura)

Segundo a mestre em Educação Física e treinadora de poses, Iasmin Santos, de 33 anos, o fisiculturista carrega o esporte em seu corpo e, por isso, está mais vulnerável ao julgamento de não atletas. “Os músculos causavam repulsa nas mulheres por ‘bater de frente’ com a feminilidade. Mas, sinto que o estranhamento está se transformando em um olhar de curiosidade.” Em 2014, a sua boa performance na vida fitness tornou o mundo competitivo do fisiculturismo uma possibilidade a ser explorada. “Sempre gostei de ser a melhor, independente da área. Vi uma oportunidade de conhecer o ápice da carreira na área estética, com muita resiliência”, explica. Moradora de Florianópolis (SC), a treinadora compartilha seu dia a dia de treinos e alimentação com 12 mil seguidores no Instagram, que repercutem o conteúdo de maneira positiva e inspiradora. “É muito bom ter a presença feminina nesses espaços [de redes sociais], para que o público não enxergue o fisiculturismo como só um monte de músculos ou só praticado por homens.” Mayara também via a musculação como um hobby, mas em 2018 a academia virou seu espaço de trabalho. “No começo, eu não imaginava que teria um corpo parecido com o das competidoras. Percebi que minha disciplina era muito maior do que as dificuldades quando minha rotina era treinar às cinco da manhã, ir pro trabalho, estudar, ter mais uma sessão de treino e voltar para casa só de madrugada.”

Constância é o segredo: para a treinadora Iasmin, o fisiculturista passa uma mensagem de disciplina pelo seu corpo.
(Foto: Reprodução / Arquivo pessoal de Iasmin Santos)

Durante os anos 1990, a educadora física e nutricionista, Larissa Cunha, de 47 anos, foi uma das competidoras pioneiras deste grupo. Sua admiração por fisiculturistas teve início aos 13 anos, depois de uma aula de ginástica de sua mãe. “Achei uma revista Flex Magazine e fiquei impressionada com os corpos sarados. Lembro de dizer: — ‘Mãe, eu quero ser musculosa!’” Em uma época sem internet e sem tantas referências femininas, Larissa conseguiu evoluir na profissão a partir de longas visitas à biblioteca, para encontrar mais informações sobre o esporte, e à base da tentativa e erro nos treinos e nas dietas. Larissa conquistou títulos, como o Miss Physique Universe 2009 no Reino Unido, ao desafiar diariamente seu corpo com ensaios de poses em frente ao espelho e com exercícios de leg press com 450 kg, supino com 140 kg e agachamento com 160 kg. “Você era grande ou não era nada”, explica.

Pioneirismo: a biomédica Larissa auxilia outras mulheres na busca de emagrecimento, definição e hipertrofia corporal. (Foto: Reprodução/Site Larissa Cunha)

Os critérios de avaliação da musculação de alta performance são volume, definição, proporção, simetria e desempenho e, até 2015, o único meio de uma mulher competir era pela categoria Women’s Physique (tradução de Físico Feminino) — similar à masculina que exige mais músculos. Para conquistar maior adesão de participantes femininas na Confederação Brasileira de Musculação, Fisiculturismo e Fitness (CBMFF), outras categorias de competição foram criadas: Fitness Coreográfico, com movimentos da ginástica artística; Body Fitness, em que as praticantes têm os ombros mais largos e a silhueta semelhante ao formato da letra “Y”; Bikini Fitness, com físicos de silhueta delicada e pernas longas; e Wellness, que valoriza coxas e glúteos volumosos. Esta categoria — exclusiva do Brasil –, é atualmente a que mais tem adesão de participantes que buscam um formato de corpo mais curvilíneo.

Sinais de alerta

Na categoria de competição Wellness (Bem-Estar em tradução livre), o trabalho corporal passa por fases distintas tanto no cronograma de treinos, como na dieta alimentar, para atingir uma porcentagem de gordura entre 5% até 12% — em geral, a maior parte das mulheres têm entre 18% e 22%. O período mais longo é o off season (fora do campeonato) em que se prioriza uma dieta hipercalórica de proteínas e carboidratos e usa a estratégia de bulking (avolumar), para aumento de massa muscular, e evolução de carga. Depois ocorre uma transição para o pre contest (pré campeonato): inicia-se o cutting (cortar), para a redução de calorias, e é mais focado em exercícios aeróbicos para manter a massa muscular. A semana do campeonato, chamada de peak week (semana de definição), é a mais recheada de manipulações alimentares específicas.

Segundo a nutricionista esportiva Luise Gaio, de 24 anos, uma fisiculturista deve quase zerar o consumo de carboidratos — massas, arroz, doces, etc. –, no início da preparação. Durante os três dias anteriores à apresentação, é necessário fazer o inverso para que os músculos fiquem inchados e mais aparentes. Outra ação bastante comum na tentativa de uma boa nota de condicionamento físico é consumir muito líquido anteriormente e parar de beber água na data do campeonato, chamado de dia D. Para ser campeã Overall Wellness 2023 da World Fitness Federation Brasil, Mayara precisou tomar entre oito e 11 litros de água por dia. “Você acorda totalmente diferente de como foi dormir!”

A psicóloga que atende pacientes com transtornos alimentares, Nicole Gouldman, de 26 anos, indica que esta variação drástica entre os hábitos de alimentação é perigosa, porque a percepção corporal dessas mulheres se torna confusa. Tais mudanças fazem as mulheres esquecerem de como realmente são. “Quando o off season chega, percebem que aquele corpo era perfeito apenas naquele momento da apresentação.”

Distúrbios como o efeito sanfona, com episódios de compulsão alimentar; de sensação de dismorfia corporal, quando a pessoa tem visões distorcidas sobre o próprio corpo; e de amenorréia, que é a ausência da menstruação em fases da vida da mulher em que ela deveria acontecer; podem se tornar recorrentes aos atletas desse esporte. “O fisiculturismo não deve ser tomado como referência de saúde. Funciona quase como um ímã para esses desequilíbrios”, explica Iasmin, ganhadora do Overall Wellness no Campeonato Gaúcho da Federação de Bodybuilding e Fitness do Rio Grande do Sul (IFBB-RS) 2022. Ao retornar do campeonato Sulamericano, Mayara passou pelo efeito sanfona. “Tudo vira desculpa para comer, porque você tira de si a pressão da dieta”, desabafa. O mesmo aconteceu com Iasmin pela terceira vez em 2022, que agora está passando por treinos e dietas voltadas para eliminar mais de 10 kg durante 120 dias, para atingir o peso que tinha em 2021. Em razão disso, ela sente que precisa “lidar com minha flacidez e mudança corporal. Antes de pensar em competir, tenho que estar estabilizada mentalmente”. A psicóloga Nicole diz que a comida desempenha vários papéis em nossa vida e não deve ser usada apenas contabilizando as calorias. “É preciso que ocorra não só a nutrição alimentar, mas também uma nutrição psicológica.”

Usar ou não usar “bomba”

Fora das competições, Larissa convive com a perda de cabelo por conta do uso durante 25 anos de esteróides anabolizantes e similares (EAS) — as chamadas “bombas”, que contêm testosterona, um hormônio masculino. Altas doses são utilizadas para ganho de massa muscular e redução do sobrepeso em princípio com fins estéticos. Mas seus efeitos anabólicos e androgênicos — que estimulam características comumente presentes em corpos masculinos –, comprometem a saúde das atletas a médio e a longo prazo. Os corpos destas mulheres podem passar por complicações hepáticas, renais e cardíacas, ter aumento do hematócrito e do colesterol, além de um possível quadro de depressão. Sintomas relacionados à masculinização são mais perceptíveis, como a hipertrofia das cordas vocais, que provoca a rouquidão, alterações no formato do rosto e o aumento de pêlos corporais.

Off season: mesmo longe dos palcos, Larissa mantém a prática de treinos diários voltados à sua saúde. (Foto: Reprodução / Site Larissa Cunha)

Embora o Conselho Federal de Medicina (CFM) tenha proibido a prescrição médica de EAS para fins estéticos em abril de 2023, existem campeonatos fisiculturistas desvinculados da IFBB em que os testes antidoping não são realizados. “O campeonato natural impressiona menos, já que nem todos os limites físicos são ultrapassados. Por que limitar a modelação do corpo? Na Fórmula 1, os organizadores colocam semáforo?”, compara a atleta Iasmin. A mestra em Química, Amanda Costa, de 43 anos, explica que os anabolizantes geralmente fazem parte da vida das atletas de alta performance, porém os resultados corporais extremos não são atingidos somente pelo uso exagerado. “Minha mãe jogou fora todos os meus suplementos quando percebeu o meu shape. Muita gente resume todo o seu esforço à ‘bomba’ [anabolizante]”, desabafa Mayara.

Por não ter uma dose mínima considerada segura para uso estético, a leitura de marcadores de saúde e o acompanhamento médico são essenciais para acompanhar as reações do organismo. Para a nutricionista Luise, o principal problema dentro do esporte é centralizar as profissões na figura do coach (treinador/a), que não possui todas as habilidades para lidar com os desequilíbrios hormonais, psicológicos e nutricionais. Segundo Amanda, a tomada de escolha consciente em busca de tratamento é afetada pela falta de um olhar acolhedor e não julgador por parte dos profissionais da saúde. “A proibição e o tabu diminuem o diálogo, e não o uso”, explica a química.

Apesar dos atos discriminatórios e misóginos sofridos, as fisiculturistas encontram um espaço de pertencimento e de apoio nas salas de academia. “Sinto que o olhar sobre os nossos corpos lá dentro é de admiração, e não erotizado. A presença de mulheres é aceita, mas precisamos nos esforçar muito para sermos reconhecidas nesse meio”, confessa Iasmin durante seu treino em uma academia especial para bodybuilders em Florianópolis. Vários quadros de atletas brasileiros estão expostos nas paredes do centro de treinamento, porém apenas três deles representam personalidades femininas. Antes de cada subida ao palco de competição, Mayara utiliza suas dores passadas, como o constrangimento vivenciado em seu antigo local de trabalho, como motivação para enfrentar os desafios de um esporte de alta performance. “Lembro que levantei o troféu do Sulamericano e pensei ´tá aqui a atriz pornô, ó´.”

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC