No luto, um reencontro

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5 min readDec 22, 2021

22/12/2021 | Crônica por Amanda Saori, com orientação dos professores Valentina Nunes e Ildo Golfetto.

Recentemente fui a uma missa fúnebre de 49 dias. Foi a primeira em quatro anos. No começo, estranhei ver mesas separadas e distribuídas em blocos, mas ao mesmo tempo isso também trouxe algum conforto. De certa forma, as missas eram assim antes mesmo da pandemia — e isso não se perdeu com o novo coronavírus e as medidas de contenção.

Acontece que no Budismo — religião que a minha família materna segue, assim como outros 245 mil brasileiros –, é comum que o período de luto dure sete semanas. Segundo a tradição, esse é o tempo necessário para que o espírito seja avaliado e possa renascer na Terra. Também pelo costume budista, é comum que as missas sejam realizadas na casa da família do falecido semanalmente nos dias múltiplos de sete.

Quando eu era criança, cada uma dessas semanas significava um dia que eu ficava com os meus primos e comia coisas que não eram comuns no dia a dia. Salgadinhos fritos (que, aliás, sempre me deixavam a dúvida se eram risoles de palmito ou de presunto e queijo), bolo de baunilha, missoshiro (sopa tradicional feita com missô e cebolinha), bacon frito, daikon (nabo) e oniguiri (bolinho de arroz cozido). Alguns pratos são tão diferentes da minha realidade que nunca soube o nome ou os ingredientes, só aceito como parte da “comida de missa”.

Lembro-me de chegar nessas cerimônias à noite e acender um senko (incensos) que era colocado no koro (recipiente com areia). Eu não sei reconhecer muitos cheiros, mas o aroma do senko faz parte desse seleto grupo — talvez daí venha o meu apreço por incensos em geral. O quarto com o butsudan (altar de madeira) ficava com a temperatura sempre alguns graus acima do normal por conta dos incensos. Ali, era como ser abraçado pelo calor e ter a dor acariciada pela essência de senko. Era reconfortante, de certa forma, saber que as sete semanas foram acompanhadas desse mesmo processo.

Ao lado do koro, há sempre uma caixinha aberta onde as pessoas (os adultos, na verdade), depositavam envelopes com dinheiro, chamados tradicionalmente de koden. Não é muito, mas é o suficiente para ajudar com os gastos do velório e das missas.

Caixa de senko e koro para homenagear os antepassados. Foto: Amanda Saori

O koro, os senkos e os kodens estavam sempre no butsudan (altar de madeira), junto de uma foto do falecido e seus pertences pessoais. Também é comum que os mesmos alimentos da missa estejam dispostos em pratinhos ou makais (cumbucas) com um par de hashi espetado em pé. Reza a lenda que essas comidas ficam com um gosto diferente quando são retiradas — não sei se por reações químicas naturais ou por terem sido servidas aos antepassados. Aliás, várias vezes na vida ouvi que não se podia servir nada com o talher espetado verticalmente, pois significava oferenda aos antepassados e, portanto, não seria de bom tom oferecer para alguém em vida.

A primeira missa do sétimo dia costuma ser em um templo budista. Em alguns casos, a missa comemorativa de um ano também — ou qualquer outro ano que seja celebrativo, sempre em números primos. Durante essa cerimônia, um monge budista faz a leitura da sutra (escritos canônicos com os ensinamentos de Buda). Para quem nunca participou de uma missa assim ou é criança, essa interpretação pode causar estranhamento ou, em alguns casos, até crise de riso provocada pelo ritmo da sutra.

Nos eventos em templo, ainda mais em cidade grande, os familiares se distribuem nas entradas da construção para evitar assaltos — é de conhecimento geral que as missas budistas costumam envolver dinheiro vivo das doações. A primeira vez que reparei nisso e questionei, essa informação me causou um certo desconforto e choque. Quanta audácia dos assaltantes quererem interromper esse momento de luto e perda para lucrar.

Ainda assim, apesar de todo esse contato com o Budismo desde criança, consigo contar nos dedos os templos que conheci. Considerando que o país possui mais de 240 templos espalhados pelas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, é desconcertante essa falta de relação com o espaço físico sagrado. Além disso, existem templos que são réplicas de centros budistas do Japão.

Uma dessas cópias se encontra em Itapecerica da Serra, município localizado na região metropolitana de São Paulo. O templo Kinkaku-Ji, também chamado de Templo Dourado, foi construído em 1974 e está no meio de uma reserva da Mata Atlântica. Para chegar lá é preciso passar por uma estradinha de terra — para quem seguir o aplicativo Waze pode terminar em duas ruas sem saída antes de finalmente acertar –, todo o trajeto sempre muito cercado de árvores e flores.

Foi só passar pela pequena trilha de pedras para a recepção do prédio administrativo, no piso inferior da construção, que uma leveza já se instala no corpo. Quanto mais eu descia os degraus irregulares, mais parecia que estava num lugar muito isolado e distante do que de fato era. Durante o caminho, algumas lápides ou urnas marcavam os terrenos mais planos da descida. Curioso notar que nem todas as inscrições eram sobrenomes orientais e datavam desde 1985 a 2011. Existe algo transcendental experienciar a energia desse lugar e apreciar a beleza do templo refletida nas águas do lago.

Templo Kinkaku-Ji, replica o templo de mesmo nome da cidade de Kyoto no centro-sul do Japão. Foto: Amanda Saori

Eu não seria capaz de entender e reconhecer a importância de todos esses detalhes há dez anos. Assim como não conseguia definir por que as minhas tradições se diferenciavam tanto das dos meus colegas de sala — em grande parte católicos e brancos. O processo de luto dentro do Budismo envolve a superação e aceitação por meio dessas missas semanais na casa da família.

É possível reparar nisso em cada uma das semanas. De encontro a encontro, as histórias compartilhadas e as lembranças revividas vão amenizando a dor da perda. É bonito acompanhar essa reparação entre familiares e amigos. Se na primeira missa, a de sétimo dia, as conversas são mantidas em voz baixa e o silêncio é reconfortante, na de quadragésimo nono dia o riso já se faz presente no ambiente. Apesar da ausência do falecido jamais ser compensada, ela passa a ser vista por uma lente de nostalgia e não de sofrimento.

É com esse olhar que vejo o processo de produzir essa crônica. Acender incensos para escrever sobre uma saudade de tempos que já se foram, mas que compõem quem sou. Esse texto representa muito de mim que nem sempre é deixado à mostra. Porque essa crônica me despe dos preconceitos que meu contato com o Budismo trouxe com o passado e a tradição que ainda persistem e, sobretudo, comigo mesma.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC