Programa Universidade Gratuita enfrenta oposição e resistência

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9 min readOct 4, 2023

Críticos do projeto apontam inconstitucionalidade e falta de diálogo durante a sua tramitação

Por: Jota Monteiro (jotavcmonteiro@gmail.com) e Lucas da Hora (lucasdahora10@yahoo.com.br)

Em meio a protestos de profissionais e estudantes da educação básica, o governo do Estado de Santa Catarina transformou em lei o Programa Universidade Gratuita - iniciativa que prioriza o acesso ao Ensino Superior em instituições comunitárias fundacionais credenciadas à Associação Catarinense das Fundações Educacionais (Acafe). A medida foi aprovada na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc) no dia 11 de julho, passando por cima de pareceres contrários, como aqueles emitidos pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-SC) que indicam a importância do investimento do Estado no ensino básico e profissionalizante, bem como a necessidade de mais explicações para a origem dos recursos destinados ao projeto - estão previstos investimentos de mais de R$2,9 bilhões entre 2023 e 2026 – ano de eleição para governadores. No dia 18 de setembro, o órgão solicitou explicações às Secretarias de Estado da Educação e Fazenda sobre a proposta. Após a notificação, as entidades possuem um prazo de 30 dias para a resposta.

A concepção do projeto sancionado em lei recentemente tem gerado debates entre representações docentes e estudantis acerca de critérios estabelecidos e da condição de prioridade da iniciativa, tendo em vista reivindicações de profissionais da educação. Para professores de escolas estaduais e servidores técnico-administrativos da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), que já oferece cursos superiores gratuitos, a sobrecarga de trabalho e a remuneração são pautas que desagradam - há carência de profissionais como técnicos universitários, enquanto professores efetivos acumulam funções, muitas vezes ultrapassando horário limite de trabalho. No ensino básico, também há necessidade de concursos para professores efetivos - a contratação de profissionais em caráter temporário (ACTs), já somam cerca de 65,8% dos professores da rede estadual, como apurado pelo jornal Zero.

Protestos marcam a aprovação do projeto Universidade Gratuita. Foto: Agecom/UNESC

O argumento de que o governo estadual deveria investir prioritariamente no Ensino Básico e Profissionalizante é o ponto principal das críticas do TCE-SC ao projeto. O órgão emitiu um relatório técnico, antes da medida ser aprovada, que destaca a obrigação constitucional do Estado em priorizar tal segmento, com base no inciso 3 do artigo 211 da Constituição Federal de 1988. Uma contradição sinalizada pelo TCE é o corte de 83% nas vagas do Bolsa Estudante — programa criado em 2022 e com duração garantida por lei até 2024, que visa atenuar a evasão de estudantes da rede estadual de ensino. A justificativa dada pelo governo de SC para tal mudança foi a baixa efetividade do programa, além do aumento do custo do gasto com alimentação e transporte dos estudantes, inflacionado pela implementação do Novo Ensino Médio. No relatório citado, o TCE é enfático ao mencionar que “ao mesmo tempo em que o estado reduz R$ 125 milhões do orçamento destinado ao bolsa estudante para custear despesas com alimentação e transporte escolar dos alunos dos ensinos fundamental e médio, prevê gastar, neste ano, R$228,4 milhões com o Programa Universidade Gratuita e 84 milhões com bolsas para estudantes de instituições de ensino superior”.

Além disso, para embasar a falta de comprometimento do executivo estadual com a pauta nos últimos anos, o TCE tem acompanhado o descaso com alguns objetivos do Plano Estadual de Educação. A entidade destaca o descumprimento de 5 das 19 metas estabelecidas pelo documento. As metas em questão são 2 (ensino fundamental), 3 (ensino médio), 6 (educação em tempo integral), 7 (qualidade da educação) e 11 (ensino profissionalizante)

Ao solicitar esclarecimentos ao governo, a entidade cita um risco sobre o “desvirtuamento da prioridade constitucionalmente estabelecida para a implementação da política pública educacional pelos entes estaduais, evidenciada pelo descumprimento das metas relacionadas à educação básica no Plano Estadual de Educação, em contraste com o aumento do investimento no ensino superior”.

A justificativa divulgada pelo governo do Estado para focar seus esforços em um projeto para o ensino superior em universidades comunitárias, ponto central na plataforma eleitoral do governador Jorginho Mello (PL), é a “democratização do Ensino Superior” — gerar mais oportunidades para os estudantes conseguirem bolsas nas universidades privadas, resultando em uma “revolução da educação catarinense”. A norma pretende também atender às demandas do mercado de trabalho, através da capacitação de profissionais especializados.

O Plano Estadual de Educação de Santa Catarina estabelece 19 metas para a educação do estado até 2024. No box, estão as metas não cumpridas ressaltadas pelo TCE. Infográfico: Luana Pillmann

De acordo com o projeto, o financiamento deve contemplar 28,5 mil vagas em 2023. A cada quatro vagas subsidiadas pelo Estado, a universidade credenciada deverá ofertar uma vaga como contrapartida. A estimativa do executivo estadual é que até 2026, 89 mil estudantes sejam beneficiados pelo programa. As Instituições de Ensino Superior (IES) (públicas ou privadas) também estão habilitadas para receberem recursos do Universidade Gratuita — destas instituições, aquelas que estão filiadas ao sistema Acafe são as mais beneficiadas com o aporte financeiro que se inicia no segundo semestre de 2023 — um financiamento estudantil inicial de quase R$217 milhões. A título de comparação, no ano de 2022 inteiro foi gasto um valor total de aproximadamente R$544 milhões de recursos destinados diretamente à universidade pública (Udesc), segundo Portal da Transparência do Estado. Isso significa que o valor previsto para as universidades privadas e comunitárias que fazem parte do projeto Universidade Gratuita, apenas para o segundo semestre de 2023, equivale a cerca de 40% do que foi investido na Udesc em todo o ano passado.

Deputados contrários

Na Alesc, o projeto teve apenas dois parlamentares opositores: Marquito (PSOL) e Matheus Cadorin (Novo). Embora sejam de partidos com espectros políticos opostos, ambos fazem parte da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Alesc e trabalharam juntos durante a tramitação do projeto para que todas as inconsistências fossem sanadas. Ao total, a proposta recebeu 153 emendas apresentadas pelos deputados estaduais, o que não impediu que a grande maioria fosse favorável à aprovação e a proposta avançasse rapidamente no legislativo.

Os pontos de oposição ao projeto foram distintos na opinião de Marquito e de Cadorin. O deputado do PSOL dividiu sua argumentação em cinco principais pontos. Entre eles, estão a negligência da pesquisa e da extensão no projeto, bem como a ausência de políticas de permanência estudantil e a falta de detalhes sobre a contrapartida social do estudante contemplado pelo programa — 20h de trabalho voluntário a cada mês de benefício recebido. O principal ponto de crítica do parlamentar é a permissão do pedido de exame toxicológico aos bolsistas pelas entidades contempladas pelo programa.

“A gota d’água foi quando veio a emenda da obrigatoriedade do exame toxicológico. Isso foi somado àqueles outros elementos, então decidimos, vamos votar contra mesmo”, explica o parlamentar. Marquito ressalta que tal exigência é inconstitucional e que foi não debatida durante a tramitação do projeto, sendo um item aprovado de última hora — “Essa emenda apareceu de último momento, durante a última tramitação, como algo que faz parte de uma agenda ideológica, de radicais ideológicos”, destaca. O jurídico do partido (PSOL) está construindo uma ação de inconstitucionalidade que vai ingressar no Tribunal de Justiça para a anulação dessa emenda”, completa.

Já Matheus Cadorin pontua sua argumentação em torno de três principais justificativas. Para ele, os alunos com maior vulnerabilidade social deveriam ser priorizados e poder escolher onde estudar, em vez do incentivo ao ingresso em universidades do sistema Acafe. O deputado também defende que existem áreas mais urgentes que poderiam receber os recursos do Estado — como infraestrutura, saúde e segurança. Por fim, Cadorin aponta que, por lei, a responsabilidade do Estado é o investimento em Ensino Básico, e não no Superior. “A lei é, obviamente, das questões pontuais, de não ser responsabilidade de Estado o investimento em ensino superior e também o desequilíbrio mercadológico que a injeção de recursos em um pequeno grupo de entidades geraria no restante de todo o mercado de entidades de ensino já estabelecidos há décadas em Santa Catarina”, explica o deputado.

O coordenador do Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (Sinte-SC), Evandro Accadrolli, faz coro ao apelo do TCE e de Cadorin ao pontuar que faltam investimentos no ensino básico — ele expõe sua perspectiva sobre a situação das escolas catarinenses atualmente. “Falta toda uma estrutura pedagógica para atender às necessidades, crescentes na área da educação. E os trabalhadores contratados para dar aula, grande parte são contratados de forma precária, sendo temporários, ficando de dois a três meses sem emprego. A estrutura de organização da escola do Estado de Santa Catarina vive um dos piores momentos de sua história”, enfatiza.

Udesc resiste

Outra frente que também se mostra contrária ao Programa são os estudantes e trabalhadores da Udesc. Em ano de eleição para a reitoria, as exigências da comunidade universitária são muitas. Douglas Antunes, presidente da Associação dos Professores da Udesc (Aprudesc), comenta que as condições de trabalho estão cada vez mais precárias — “Acho que a gente precisa ter mais recursos para investimento, principalmente face aos novos centros que estão vindo, como, por exemplo, o Cesmo (Centro de Educação Superior do Meio-Oeste). O Universidade Gratuita vem para agravar essa situação, porque vai ter um direcionamento de recursos para um programa que, de fato, não se caracteriza como um acesso democrático ao ensino público”.

Ana Paula Kanzaki, estudante de história e integrante do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Udesc, sinaliza que a principal demanda dos alunos da instituição é relacionada à subsistência. Para ela, um exemplo disso é o valor de uma refeição no Restaurante Universitário, que custa R$10,89 — enquanto que em outras universidades, como a UFSC, o preço é de R$1,50. Ela observa que grande parte da comunidade universitária se uniu para protestar contra o projeto e lutar por um olhar mais atento às carências da Udesc — “As movimentações em volta do Universidade Gratuita fizeram reacender uma ação unitária das três partes: técnicos, professores e estudantes. Foi a bandeira do Universidade Gratuita que fez os três setores atuarem em unidade”, avalia.

No projeto inicial do Universidade Gratuita, havia previsão de retirada dos recursos disponíveis para a Udesc para custear as bolsas. Isto porque, estava calculado que a totalidade dos recursos do Fundo de Apoio à Manutenção e ao Desenvolvimento da Educação Superior (Fumdes) fossem repassados ao programa. A Udesc recebe, atualmente, 10% do total desses recursos, valores destinados a implantar ou ampliar os campi no interior do estado. Porém, após protestos e pressão de entidades e dos parlamentares, o Governo recuou e fez alterações na proposta, decidindo que os valores que antes sairiam dos 10% da Udesc, agora serão oriundos da chamada Fonte Tesouro, também chamada de “Fonte 100” — que é a arrecadação de impostos e transferências constitucionais, cuja destinação, salvo as vinculações constitucionais, é o repasse de recursos financeiros do poder executivo a outros poderes e órgãos, por meio de duodécimos. O restante do valor a ser utilizado para sustentar o programa virá dos recursos já existentes para o Ensino Superior oriundos dos artigos 170 e 171 da constituição estadual.

Sem conversa

A falta de diálogo do governo do Estado com parlamentares, estudantes e demais profissionais da educação para a construção do projeto durante a sua tramitação foi uma crítica em comum citada pelos entrevistados, que atribuíram ao programa um “papel eleitoreiro” — “Esse projeto foi uma das primeiras medidas implementadas pelo atual governador. Não houve diálogo com o sindicato dos trabalhadores em educação durante a tramitação da matéria. Ao destinar recursos para uma área em detrimento daquela que deveria ser compromisso prioritário do Estado, a Educação Básica fica praticamente sucateada, com sérios problemas de estrutura. Todo esse cenário é resultado de uma proposta extremamente eleitoreira, populista, para garantir um nicho de mercado, que é a relação pessoal do governador, inclusive com algumas universidades”, comenta Evandro.

Uma das consequências desta falta de debate, é a continuidade da oposição ao programa, mesmo após a sua aprovação. A Associação de Mantenedoras Particulares de Educação Superior de Santa Catarina (Ampesc) divulgou em nota oficial que entraria com uma ação direta de inconstitucionalidade junto ao TJ-SC, para suspender a eficácia da lei complementar 831/23, que instituiu o Programa Universidade Gratuita. De acordo com o comunicado, a lei sancionada em primeiro de agosto, “fere o artigo 170 da Constituição Estadual em função de destinar recursos às instituições comunitárias de ensino superior que atuam no Estado de Santa Catarina, quando, em verdade, deveria privilegiar os alunos matriculados em qualquer instituição que atue regularmente no Estado.”

O estudante Alex Chernehaque, é representante estudantil das universidades privadas e faz parte do movimento Faculdade para Todos. Para ele, o cenário atual de judicialização do programa é consequência dessa falta de debate. “Se o governador queria fazer realmente uma política pública, ele teria que ter ouvido todos os estudantes, vir de todas as realidades, né? Só que esse processo não ocorreu e a forma que foi realizada foi brutalmente atropelada”, lamenta.

O Zero procurou o governo do Estado de Santa Catarina e a Acafe para se posicionar sobre as críticas ao programa, mas até o fechamento desta reportagem não obteve resposta.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC