Sangue para dar e vender

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7 min readDec 13, 2023

Possível comercialização do sangue a partir da PEC do Plasma e baixos estoques sanguíneos criam alerta em hemocentros de Santa Catarina

Giovanna Goin (giovannagoin19@gmail.com) e Maria Clara Lima (maclaraldasilva@gmail.com)

Aos dez anos, as tardes de surfe de Gustavo Darc foram interrompidas por sessões de desenhos animados em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), em Florianópolis (SC). Durante uma aula de Educação Física, em 2016, ele sentiu um mal-estar e fortes dores na perna, sendo encaminhado para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Após ser medicado incorretamente três vezes seguidas para virose, sua mãe o levou ao Hospital Infantil Joana de Gusmão. Os resultados dos primeiros exames indicaram a urgência de sua situação médica, simbolizada por uma pulseira de cor laranja que recebeu ainda no hospital.

O diagnóstico era leucemia, um câncer que tem início nas células-tronco da medula óssea, e motivou a internação imediata, durante 40 dias. Apesar do medo de agulha, precisou receber soro e retirar sangue para exames diariamente. Ao longo dos quatro anos de tratamento, não necessitou de doação de medula óssea, mas recebeu quatro bolsas de plaquetas, que são componentes do sangue relacionados com a coagulação. “Parecia remédio na veia, a melhora era instantânea”, relembra.

Assim como no caso do Gustavo, vidas de até quatro pessoas podem ser beneficiadas com uma única bolsa de 450 mL de sangue. Ela pode ser utilizada para tratar câncer, com a separação das plaquetas; anemias e hemorragias, com a doação de hemácias; cirurgias, queimaduras e manipulação de fármacos, com o uso do plasma sanguíneo. Além do caráter solidário, estão instituídas diversas leis que acrescentam benefícios a quem doa sangue com frequência, como um dia de folga por ano; meia-entrada em cinemas, teatros e eventos culturais; e dispensa das atividades no dia da doação.

Estoque de sangue: depois da coleta, o sangue doado passa por análises clínicas para a identificação de suas subcategorias. Ao todo, são mais de 341 antígenos diferentes que definem a compatibilidade sanguínea entre doador e receptor. (Foto: Reprodução/Assessoria Hemosc)

De acordo com o Ministério da Saúde, mais de 119 mil doações de sangue foram realizadas no estado de Santa Catarina em 2022, com uma taxa de 9,56 doadores a cada mil habitantes. Apesar de ser um número considerado acima da média nacional, os estoques dos diferentes tipos sanguíneos do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc), no centro da Capital, oscilam bastante durante os meses, por falta de adesão às campanhas de conscientização. Também existem a coleta específica de plaquetas, pelo procedimento de aférese (coleta seletiva do material sanguíneo através de uma máquina) , e a doação de plasma, por plasmaférese.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o plasma é crucial para a produção de medicamentos hemoderivados — como imunoglobulinas e fatores de coagulação –, usados no tratamento de doenças graves, como, por exemplo a hemofilia, distúrbios imunológicos e infecções.

PEC do Plasma

Recentemente, aconteceu o debate sobre a mudança no artigo 199 da Constituição, a fim de comercializar o plasma. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2022 — chamada de PEC do Plasma –, foi aprovada em outubro de 2023 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, permitindo a comercialização do plasma humano pela iniciativa privada para uso laboratorial e desenvolvimento de hemoderivados, destinados preferencialmente ao Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, a medida, que divide opiniões nos âmbitos público e privado, ainda precisa ser votada no plenário e na Câmara Federal.

A Associação Brasileira de Médicos (ABM) se posiciona a favor da participação do setor privado na coleta e comercialização do plasma, e afirma que o Brasil não tem a tecnologia necessária para se tornar autossuficiente na produção de hemoderivados. “Mesmo depois de 20 anos de sua criação e de constantes investimentos, a Hemobrás [Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia] produz apenas 200 mil litros de plasma por ano. É necessário cerca de um milhão de litros por ano para atender a população brasileira”, explica o Diretor Científico da ABM, José Eduardo Dolci.

Produção insuficiente: a bolsa de plasma, com o líquido amarelo claro, representa mais de 50% do volume total do sangue. No entanto, são coletados apenas 200mL do material por doador, representando menos da metade da doação de sangue tradicional. (Foto: Reprodução/Assessoria Hemosc)

Em nota, a Hemobrás diz que sua fábrica tem capacidade de fracionar todo o plasma excedente nacional e que “a doação remunerada e/ou a comercialização do plasma pela rede privada contribuirão para o agravamento do problema do sistema brasileiro.” O posicionamento da ABM também é contrário à remuneração do sangue, para que a doação continue com caráter voluntário. “A proposta é utilizar o plasma que, em parte, é descartado ou exportado do Brasil.”

Para Guilherme Genovez, gerente-técnico do Hemosc, a discussão sobre a coleta do plasma não é urgente no momento. Antes disso, é preciso consumir todo o plasma excedente da doação de sangue. “O Brasil colhe na doação de sangue em torno de 600 mil litros e não fracionamos nem um quarto. Se a gente conseguir usar os 600 mil litros, atenderemos as necessidades do SUS para imunoglobulina”, afirma.

O Governo Federal destaca a necessidade de garantir a regulação de um mercado que deve estar a serviço da população brasileira e do Sistema Único de Saúde (SUS). “A maior participação da iniciativa privada deve ocorrer sob regulação do Poder Público e limitada ao transporte, armazenamento e processamento do plasma, tendo em vista o atendimento prioritário às necessidades do SUS”, afirma em seu site. Segundo o Ministério da Saúde, a exportação do plasma brasileiro prejudicaria a assistência à população, principalmente às pessoas com hemofilia e outros problemas de coagulação sanguínea, e deixaria o país mais vulnerável diante de catástrofes ou emergências.

Dentro da Universidade

Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), existem iniciativas sem fins lucrativos desenvolvidas pelos alunos de graduação para incentivar a doação de sangue. A mais conhecida faz parte do Trote Integrado (T.I.), realizado pelo Centro Tecnológico e Científico (CTC) da Universidade. O CTC conta com mais de 6.200 estudantes entre os 15 bacharelados de graduação, que realizam uma gincana estudantil semestral contando com a participação de 13 cursos, divididos em dez equipes. A competição é voltada para ações solidárias, sendo a doação de sangue a prova com maior pontuação.

Para pontuar, a equipe deve enviar um comprovante de doação de sangue, realizada entre a última e a atual edição do T.I. Os calouros podem doar e, para estimular a doação, também podem ser enviados comprovantes de amigos e familiares de todo o Brasil em nome da equipe. O estudante da primeira fase de Engenharia Elétrica, Fernando de Oliveira, pretende se tornar doador frequente após sua primeira experiência. “Sempre pensei em doar sangue, mas nunca tive alguém ou algo que me incentivasse. Quando cheguei na UFSC, vi a mobilização entre os calouros e tive vontade de ajudar quem mais precisa”.

No último semestre de 2023, a gincana registrou apenas 60 doações, o que representa menos de um terço do número alcançado no primeiro semestre, de 195 doadores. Para Flávia Rosa de Andrade, estudante de Engenharia Elétrica e membro da comissão organizadora do T.I., a pandemia enfraqueceu o movimento beneficente do Centro, que não possui mais tanta participação dos calouros.

Outra iniciativa em prol da doação de sangue entre os estudantes da UFSC é o “Doe Vida”, formado por 20 alunos de Administração. Criado como avaliação final de uma disciplina, o projeto quer conscientizar sobre a doação de medula óssea e promover a doação de sangue, por meio de palestras no ambiente acadêmico e do perfil @doevida no Instagram. A idealizadora e líder da campanha, Mayla Neves, escolheu o tema para seu trabalho pela identificação pessoal, já que é cadastrada como doadora de medula após o diagnóstico de câncer de sua mãe, Ana Paula Neves, em 2019.

Segundo os Registros de Doadores Voluntários de diferentes países, apenas 38 milhões de pessoas são doadoras de medula recorrentes no mundo. Por conta da baixa adesão, o doador de Ana Paula, por exemplo, se deslocou da região Norte do país até São Paulo após ser acionado pelo Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (Redome) para fazer o procedimento. Diferente da doação de sangue, que geralmente demora 30 minutos ao todo, a coleta de células-tronco é um pouco mais demorada e invasiva e pode ser feita de duas maneiras.

A primeira é realizada pelo osso do quadril sob anestesia peridural ou geral, com necessidade de internação de 24 horas no centro cirúrgico. Já a doação por aférese, segundo o Redome, é um “método em que o doador faz uso de uma medicação por cinco dias, com o objetivo de aumentar a produção de células-tronco circulantes no seu sangue. Durante o uso desta substância, pode ocorrer dor óssea e muscular, além de dor de cabeça”. A coleta é diretamente da corrente sanguínea, com duração de três a quatro horas. “Não tem como medir [e comparar] a dor da agulha com a dor que a pessoa tá passando por conta da doença”, afirma Mayla.

Com parceria firmada com o Hemosc até o final de 2023, o “Doe Vida” facilita a etapa de agendamento da doação de sangue, através de um formulário de interesse que pode ser preenchido online. Outra forma de reduzir obstáculos para a doação, o projeto financia o deslocamento de grupos através de vans saindo do campus Trindade até o Hemocentro. “A meta é que as pessoas queiram doar sangue de forma espontânea, depois do nosso empurrão inicial”, explica a líder do projeto.

Quem não pode doar sangue?

  • Pessoas anêmicas
  • Pessoas com doenças cardíacas
  • Pessoas com peso inferior a 50 kg
  • Mulheres grávidas ou lactantes
  • Pessoas expostas a risco acrescido de terem doenças passíveis de transmissão sanguínea como Hepatites, HIV, Sífilis
  • Pessoas em uso de medicamentos que possam provocar malformações em fetos de mulheres grávidas como Isotretinoína (medicamento para acne), Etretinato e Acitretina (para psoríase) e finasterida (para doença de próstata ou para calvície)

Todos os candidatos passarão por uma triagem clínica antes da doação para serem avaliadas suas condições.

Qual intervalo entre doações?

Na doação total, homens podem realizar a cada três meses (totalizando quatro vezes ao ano), enquanto as mulheres precisam esperar quatro meses (três vezes por ano ao todo), devido ao período de maior perda de hemoglobina durante a menstruação.

Já quem realiza a doação por aférese, leva menos tempo para se recuperar, os homens podem doar a cada dois meses e as mulheres a cada três.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC