SC lidera ranking nacional de doação de órgãos

Apesar do cenário positivo no estado, a falta de investimento em campanhas nacionais de conscientização leva familiares a atuarem como agentes da causa nas redes sociais

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5 min readMay 23, 2023

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Por Suellen Lima e Hillary Marcos

Santa Catarina, em 2022, teve a menor taxa de negativa familiar para doação de órgãos entre os estados brasileiros, com uma taxa de 28% de potenciais doadores não autorizados — pessoas que a família não permitiu a retirada dos órgãos. No Brasil a média da negativa familiar é de 47%. Quanto menor a taxa de negação, maior o número de transplantes efetivos. É a décima quarta vez que o estado é reconhecido pelo número de doações efetivas de órgãos e tecidos — aquelas que realmente ocorrem após o diagnóstico de morte encefálica –, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO).

Ranking nacional divulgado pela Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, em 2022, que considera o número de doadores efetivos, ou seja, autorizados pelas famílias por milhão em cada estado. Fonte: Secretaria da Saúde de Santa Catarina

Joel de Andrade, presidente da SC Transplantes, órgão estadual que controla os processos de notificação, coleta e doação de órgãos, atribui o resultado positivo à adaptação de modelo de gestão, feito com base no plano criado pelo Ministério da Saúde da Espanha, país líder mundial em doação e transplantes (ver abaixo). Este protocolo baseou a criação da política de doação de órgãos no Brasil.

Santa Catarina adotou o modelo espanhol com reforço na formação dos profissionais. O diferencial se deu principalmente por um curso que aborda, entre outros tópicos, a comunicação com a família nesses momentos delicados. Inicialmente era voltado a ensinar os coordenadores de transplantes, ou seja, os profissionais que vão fazer as entrevistas e oferecer a possibilidade do transplante aos familiares. Na gestão dessas equipes notou-se a necessidade de expandir o curso para mais profissionais, principalmente na UTI. Hoje o estado tem cerca de 2.400 pessoas treinadas para este trabalho. Joel afirma que as campanhas e propagandas não são a prioridade da política estadual, pois prefere-se investir na acolhida que as famílias receberão nas UTIs.

Mas, além do investimento na formação das equipes de profissionais da saúde e as diferenças socioeconômicas e geográficas, há outros fatores que interferem diretamente na decisão das famílias. Entre eles o desconhecimento a respeito do desejo do ente querido em relação ao assunto e à legislação, a falta de confiança no sistema de saúde ou até por causa de valores pessoais. As campanhas de incentivo à doação de órgãos não são tão populares quanto as de vacinação ou as de doação de sangue promovidas pelo Ministério da Saúde. A pauta tem pouco ou nenhum espaço nas programações de meios de comunicação em massa, como televisão e rádio. O Ministério da Saúde ainda definiu, em 2022, uma campanha para o dia 27 de setembro, com o tema “Amor para superar, amor para recomeçar”, segundo informação no site do órgão.

Conscientização nas redes

Ainda que o tema seja pouco discutido nos meios de comunicação tradicionais, nas redes sociais, por outro lado, cidadãos comprometidos com a causa, familiares de doadores, transplantados e pacientes em fila de espera desenvolvem de forma independente ações de conscientização. Este é o caso de Patrícia Sibin Barbosa de Oliveira, ao relembrar a morte do filho João Fernando, atropelado aos 23 anos, após sair de uma festa em junho de 2022, em São João da Boa Vista, interior de São Paulo.

O jovem era estudante de Arquitetura na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), universidade da capital paulista. A mãe mantém uma conta no Instagram (@paty_doadora_multiplosorgaos), onde faz sua própria campanha de divulgação e incentivo à doação de órgãos, além de falar sobre o caso do filho. “Eu tento postar, ou repostar, pelo menos uma vez por dia e às vezes quando me dá inspiração eu escrevo sobre a minha vida antes, durante e após o processo [de doação], porque o Fê ficou 21 dias em coma e eu acompanhei tudo”.

O assunto nunca fora discutido com Fernando, mas desde jovem Patrícia se declara como doadora e não teve dúvidas ao tomar a decisão pelo filho. “As famílias não gostam de falar sobre morte, não estamos acostumados a conversar sobre isso, precisamos de mais campanhas de esclarecimento para que os pais conversem com os seus filhos”. João Fernando doou coração, fígado, rins e córneas. Entre lágrimas, ela relembra o dia em que os órgãos do filho foram doados e ressalta a delicadeza da equipe no atendimento e a satisfação em saber que o jovem pôde salvar vidas.

Já Amanda Reis, 26 anos, teve sua vida impactada pela história de outra família. A jovem nasceu com fibrose cística, doença crônica e rara, que prejudicou o funcionamento de seus pulmões. Seu estado de saúde ficou mais fragilizado a partir dos 20 anos e por isso precisou trancar a faculdade de Biologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e focar em seu tratamento em Porto Alegre (RS). A espera pelo órgão demorou cerca de um ano e um mês. Após onze meses de exames e acompanhamento médico, Amanda recebeu o transplante em abril de 2021. “Eu posso fazer o que eu quiser agora e há dois anos eu precisava de ajuda para tomar banho, descer e subir escadas, estava sempre com o oxigênio. A doação de órgãos é um ato de amor e eu sou muito grata ao meu doador que está aqui hoje”.

Amanda Reis após seu transplante de pulmão junto à equipe que trabalhou na sua cirurgia e recuperação. Foto: Acervo pessoal

Assim como Patrícia, a jovem utilizou de sua experiência para conscientizar a família e amigos. Hoje planeja, junto a outros colegas transplantados, criar uma associação dos transplantados de Porto Alegre para atuar ativamente na conscientização da pauta e dar suporte aos que estão na fila e suas famílias, além daqueles que desejam doar e, pela lei, precisam comunicar seus familiares.

A Lei dos Transplantes, 9.434/2.007, regulamenta a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Existem dois tipos de doadores: o doador falecido após morte cerebral, que pode doar coração, pulmões, fígado, pâncreas, intestino, rins, córnea, vasos, pele, ossos e tendões. E o doador que teve parada cardiorrespiratória, que pode doar apenas tecidos para transplante: córnea, vasos, pele. Essa decisão é um direito do cidadão, mas, para garantir que seja respeitado, é preciso deixar isso explícito para família ainda em vida. No Brasil não há manifestação direta do desejo de doação formal, por isso, toda e qualquer decisão a respeito depende somente dos familiares. Há previsão que, com a nova carteira de identidade, os cidadãos brasileiros possam sinalizar se são doadores ou não.

Modelo Espanhol

A Espanha é líder mundial em doação de órgãos e tecidos, o país é destaque no mundo há 25 anos. O modelo desenvolvido no país e copiado por outros, como Portugal e Croácia, é baseado na gestão em rede, comunicação e formação de profissionais na área da saúde. De forma prática, cada hospital tem um coordenador de transplantes que lidera a área e forma uma rede, junto aos outros coordenadores. Além da formalização do papel dessas lideranças, o modelo é baseado na formação dos profissionais, oferece cursos desde a parte clínica de identificação de morte encefálica e do possível doador, até a comunicação com as famílias e fatores psicológicos a serem levados em conta.

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Jornal-laboratório do curso de Jornalismo da UFSC