A austeridade habitacional escondida

Guilherme Rodrigues
Zinc Tank
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4 min readNov 1, 2020

A inflação imobiliária, consequência direta de políticas de estado, é perceptível no dia-a-dia da população, mas não é visível no índice de preços do INE, indicador que funciona como bússola para aumentos salariais de uma parte significativa dos trabalhadores e pensionistas em Portugal.

Artigo orginalmente publicado em Shifter.pt

O ano passado, uma amiga disse num tom de total indiferença que tinha sido aumentada 0.6%, em linha com a inflação. No mesmo encontro, provavelmente falamos da crise habitacional em Lisboa: dos quartos a 400–500 euros; dos estudantes a viver em hostels; dos amigos e conhecidos que pagam rendas semelhantes em cidades como Madrid, Barcelona e Berlin. Estes exemplos dão a sensação da existência de dois países em simultâneo. O Portugal das altas subidas dos custos de habitação ano após ano, e o Portugal em que o aumento de preços não parece ser uma realidade.

De acordo com o Eurobarómetro, a segunda maior preocupação dos portugueses em 2019 era a inflação/aumento do custo de vida, apesar dos salários (em média) terem crescido significativamente acima da inflação registada. No mesmo período, o preço médio de um imóvel teve uma valorização superior a 50%. A inflação imobiliária, consequência direta de políticas de estado, é perceptível no dia-a-dia da população, mas não é visível no índice de preços do INE. Indicador que funciona como bússola para aumentos salariais de uma parte significativa dos trabalhadores e pensionistas em Portugal.

Figura 1 — Esquerda: Variação salarial e preços. Direita: Preocupações económicas, Eurobarómetro, % de inquiridos que consideram tema como uma das suas duas maiores problemas do país. Fontes: PORDATA, INE, EUROSTAT e Eurobarómetro (2019) * Salário médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem: remuneração base (PORDATA)

Do ponto vista técnico, esta discrepância é explicada pelo facto que a inflação em Portugal não tem diretamente em conta a evolução dos preços de compras de imóveis. Contudo, tal metodologia nao é consensual na Europa. A Islândia, país que também vivenciou um boom imobiliário associado ao turismo, inclui directamente os preços de compra de habitação no seu cabaz de preços para o consumidor. Ao contrário de Portugal, as estatísticas de inflação desse país reflectem um aumento significativo (Figura 2) nos preços associados à habitação.

Figura 2: Inflação imobiliária vs. Índice preços do consumidor relativos aos custo com habitação como electricidade, gás, rendas, etc. No caso Islandês, são incluídos os preços de aquisição de um imóvel. Fonte: Eurostat e respectivos institutos nacionais de estatística.

Aplicando o “método islandês”, Portugal apresentaria um aumento de preços acumulado de 10.3% durante o boom do turismo (2014–19) vs. 3.6% registado pelo INE. Um trabalhador com um salário de 800 Euros em 014, ajustado à inflação anualmente, iria auferir 882 Euros por mês em 2020, um aumento de 54 Euros face à situação actual. Para além disso, o salário médio em Portugal cresceu 6.1% entre 2014 e 2018 (últimos dados disponíveis), valor abaixo da taxa de inflação calculada acima (8.4%), o que se traduz num empobrecimento real dos rendimentos vindos do trabalho durante um período de crescimento económico.

Figura 3: Evolução do salário médio face a evolução de preços. Fonte: INE, Eurostat e PORDATA. * Salário médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem: remuneração base (PORDATA)

A actual pandemia agravou o problema da subestimação dos custos de vida da população. No últimos meses, as famílias foram forçadas a alterar drasticamente os seus padrões de consumo, fazendo com que o cabaz de bens considerado no calculo da inflação se tenha tornado praticamente inútil. De acordo com o INE, os bens alimentares e serviços médicos apresentaram aumentos significativos de preços em Agosto (Figura 4). Contudo, o taxa de inflação foi próxima de zero: fenómeno essencialmente explicado pela queda de preços de bens e serviços que os consumidores foram forçados a reduzir/interromper o consumo (gasolina, hotéis, etc). No contexto que vivemos hoje, acompanhar exclusivamente a inflação de bens e serviços essenciais é fundamental para entender as necessidades materiais da sociedade.

Figura 4: Taxa inflação homóloga Agosto. Fonte: INE.

Por mais tecnocrático que pareça, a subestimação da inflação causa danos estruturais para o funcionamento de uma democracia. É impossível responsáveis políticos resolverem um problema sem o reconhecerem na sua totalidade. Para além disso, ao fomentar o empobrecimento camuflado da população, é criado um ambiente hostil face às ciências sociais, seus especialistas e legisladores. Uma ciência social como a economia não pode identificar padrões que não correspondem às percepções da comunidade sem questionar seu métodos científicos. Caso contrário, estará apenas a alimentar um sentimento anti-ciência, bem popular nos dia de hoje.

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