A contribuição invisível

Guilherme Rodrigues
Zinc Tank
Published in
5 min readMay 3, 2020

Ainda sem soluções à vista para a estabilização da atual pandemia, o ministro das finanças holandês Wopke Hoekstra sugeriu ser feita uma investigação aos países que não tem folga orçamental para combater o que pode vir a ser o maior choque económico do último século. Estas declarações, por mais que tenham chocado alguns, tem pouco de novo: em 2011 a Chanceler Merkel sugeriu, erradamente, que se trabalhava menos nos países do sul da Europa; o antecessor de Hoesktra comparou despesas orçamentais do sul da Europa com gastos em mulheres e álcool; e mais recentemente um pequeno grupo de países autointitulou-se de “frugais” ao compararem-se à periferia.

Este tom adotado por vários políticos do centro e do norte da Europa, e por algumas franjas no sul que ambicionam desmantelar os atuais estados sociais, é essencialmente centrado em dois pilares: o primeiro baseia-se na ideia de que os países do sul da Europa são financeiramente irresponsáveis e por isso devem ser disciplinados; o segundo foca-se no facto de que os países mais ricos da Europa fazem contribuições líquidas para o orçamento europeu (pagam mais do que aquilo que recebem em fundos). Na ótica deste grupo de países, o orçamento reflete a solidariedade necessária dentro do bloco europeu.

O argumento da irresponsabilidade orçamental ignora que Itália é a campeã dos excedentes orçamentais primários¹ há mais de duas décadas. Para além disso, as altas taxas de juros pagas pela periferia europeia são um mecanismo punitivo/disciplinador de qualquer desvio orçamental.

Relativamente aos contribuintes líquidos dentro da União Europeia, o debate é estritamente focado nas transferências diretas para o orçamento europeu, que são facilmente mensuráveis. No entanto, os custos e benefícios do projeto europeu são mais abrangentes e complexos. Um estado-membro beneficia monetariamente ao receber mão-de-obra comunitária sem ter que financiar a sua formação profissional; vários estudos apontam que o estado britânico tem um excedente orçamental com os imigrantes provenientes da UE. Para além das migrações, um país tira proveito de diversas políticas públicas dos restantes estados-membros, como os investimentos em defesa que contribuem para a segurança de todo o bloco.

A desigualdade nos gastos de defesa entre países da UE é frequentemente ignorada apesar de não ser um detalhe orçamental. Em 2018, os países da UE gastaram em média 1.4% do seu rendimento em despesa militar. Um valor 75% superior a todo o orçamento da EU (0.8% do PIB), sendo este a principal ferramenta de coesão dentro do bloco e fonte de financiamento do eventual Green New Deal europeu . Ao contrário de áreas como a política monetária e de concorrência, a política de defesa mantêm-se uma pasta exclusivamente nacional.

O parco orçamento europeu. Fonte: Eurostat e Banco Mundial

As disparidades dos gastos militares entre nações são essencialmente determinadas pela sua localização geográfica e não por despesismo irresponsável ou desenvolvimento económico. Dos cinco países da UE com maior despesa militar relativa ao seu rendimento, quatro detém fronteiras extracomunitárias (Grécia, Polonia, Estónia e Letónia)². Após uma década de feroz austeridade, a Grécia continua a liderar os gastos com defesa em % do pib devido à sua difícil relação com a Turquia (principalmente desde da invasão do Chipre em 1974). Ironicamente, a Turquia é membro da NATO e eterno candidato à entrada na UE.

Com a queda do bloco de leste e os sucessivos alargamentos da UE, os países do centro/norte da Europa passaram a estar geograficamente mais distantes de potenciais inimigos. Esse processo coincide com uma redução das suas despesas militares ano após ano. Nem os maiores defensores do moralismo fiscal argumentam que uma nação é responsável pela a sua localização geográfica.

Centro vs periferia (despesa defesa % PIB). Fonte: Banco Mundial

O investimento em defesa nacional é caracterizado por um baixo retorno social quando comparado com outras competências de um governo (ex: educação, saúde, infraestrutura). Por um lado, é uma despesa caraterizada por um forte componente de importações, que pouco contribui para o crescimento económico. Por outro lado, em tempos de paz, é um investimento que nunca apresenta um retorno visível; assemelhando-se a um seguro pago mensalmente, mas que nunca é utilizado. Alem disso, o grau de secretismo deste tipo de contratos, por razões de segurança, faz deles menos escrutináveis e suscetíveis a corrupção, como o famoso caso dos submarinos que levou a prisões na Alemanha.

A extraordinária evolução da sociedade portuguesa após o 25 de Abril, em especial em termos de indicadores de saúde e literacia, é um caso paradigmático da ineficiência do investimento em defesa: a reorientação de fundos, anteriormente utilizados para combater a guerra colonial, teve uma importante contribuição na revolução social iniciada na segunda metade da década de 70.

Composição despesa publica e indicadores sociais, Portugal 72–79. Fonte: Pordata

Ao compararmos a situação atual com um hipotético exército europeu [GR2] , em que cada país contribuísse financeiramente com a mesma fracção do seu rendimento independentemente da sua localização geográfica, é possível identificar os perdedores e vencedores em relação ao status quo. Neste cenário, um Estado é “credor militar” caso os seus gastos com defesa sejam superiores à média da UE. Entre 1995 e 2018, os três maiores credores militares (Grécia, França e Portugal) são países que defendem a mutualização de dívida na atual crise (coronabonds). Neste período, Portugal e Grécia teriam reduzido a sua despesa publica em 6% e 27% do seu PIB³, respetivamente. Alemanha e os “quatro frugais” apresentam-se do lado oposto tanto no debate dos coronabonds como nos seus gastos militares.

Credores e devedores militares, % PIB. Fonte: Banco Mundial e EUROSTAT. Valores negativos correspondem à despesa militar agregada abaixo da média europeia entre 1995–2018 (ou entre o ano de entrada na EU até 2018) em percentagem do PIB do respetivo país. Valores positivos correspondem a despesa militar agregada acima da média europeia entre 1995–2018 (ou entre o ano de entrada na EU até 2018) em percentagem do PIB do respetivo país

No debate relativo ao plano europeu de recuperação económica pós-COVID19, os países da periferia (sul e leste) têm a obrigação de mostrar que a solidariedade financeira dentro da UE é multilateral e complexa. Os seus orçamentos de defesa têm sido uma grande contribuição invisível no quadro europeu apesar de facilmente quantificável.

¹ Saldo do governo excluindo despesa com juros de divida.

² Banco Mundial (2018), despesa militar % PIB: Grecia (2.4%), Franca (2.2%), Estónia (2.1%), Polonia (2.0%) e Letónia (1.9%). Fronteiras extracomunitárias com Turquia (Grécia); Rússia (Estónia, Letónia e Polónia); Ucrania (Polónia) e Bielorrúsia (Letónia e Polónia)

³ PIB 2018, precos correntes.

--

--