Amanhã eu serei apenas uma notícia de jornal

fjunior
Zona Literária
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7 min readFeb 25, 2016

Tamborilo os dedos pelo copo de cerveja ao ritmo de um samba antigo. Ela é linda. Tem um olhar triste, resignado, tal qual o sol que se levanta aqui quase todos os dias, meio tímido, embolorado pela fumaça, pelo ar cinza. A culpa é do Cristo, sempre de costas. Tenho esta certeza desde guri. Tento lhe dizer. A cidade só é boa pra onde o Cristo olha. Ela sorri. Quer contar das coisas que viu. Passou uma temporada em Bilbao. Graças ao Lula, faz questão de frisar. Até concordo, mas digo que as coisas já não estão tão boas como antes. O garçom traz mais uma garrafa de Estrella Galicia.

Quando você tomaria uma dessas aqui? Questiona. Os olhos parecem se acender de uma malícia. Ela tem um gingado como os que só há por essas bandas. Domingo vai aos cultos, na sexta não perde a roda de samba.

Eu sou um cara de esquerda, sempre fui. Sempre carreguei nos bolsos os livros de Lênin, Marx, Engles, Paulo Freire. Agora me acusam de marxismo cultural. Os caras do bar nunca vão entender. A culpa é do Cristo, sempre de costas. Ela volta a sorrir. Quer me convencer que a vida é boa, que vamos sobreviver à Dilma. Discordo, discordo de tudo, discordo da vida. Não sei quando foi boa. Acho que nem mesmo quando meu pai era vivo.

Foi a polícia — conto pra ela sobre a morte do meu pai. A polícia o confundiu com um traficante. Foi o que disseram. É o que sempre dizem. Ela ensaia um ar melancólico, um ar de pena. Fica ainda mais encantadora. “Uma mulher tem que ter qualquer coisa de triste”, penso no Vinicius. Mas recuso. Pena nunca me ajudou ou comoveu.

Ela volta a sorrir. Argumenta que estou brigado com Deus, por isso essa minha resistência. Diz que preciso perdoar Deus, perdoar a vida. Ora essa, onde já se viu perdoar Deus. Perdoaria caso eu acreditasse nele. Devolvo. Como bom marxista, não acredito em Deus. Ele deu seu filho para expiar nossa culpa — ela tenta me catequizar. O Cristo de costas e a culpa é minha? Sei que meu cinismo a incomoda. Todos pecaram, ela prossegue, todos foram destituídos, por isso Deus mandou seu filho, para perdoar.

Você acredita mesmo na balela de paraíso, serpente, maçã e condenação eterna? Intercalo. Isso é uma metáfora — ela tenta, juro que tenta. Eu não acreditaria num Deus que usa metáforas. Ela se irrita. Sei que estou sendo obtuso. Devo estar duas ou três doses acima da humanidade. Vivo assim há séculos. Um marxista cultural alcoólatra.

Se Deus existe, ele é um filho da puta como todos os outros bons filhos da puta que existem por aí. Ai, não fala sim, parece aflita. Não se xinga Deus. E por que vocês sempre querem culpar as mulheres? Ela questiona. Sei que passei da conta. Ela queria falar de Bilbao, elogiar o Lula. Estou de saco cheio desse papo PT-PSDB. Paro um instante e olho para o copo de cerveja suado, refletindo as luzes do bar, quase um caleidoscópio. Peço desculpas. Gosto das pequenas belezas. Se Deus existe, ele reside nisso, na beleza das luzes refletidas num copo de cerveja. É tacanho, mas é verdade. Olho mais uma vez para copo suado antes de entorna-lo.

Gosto quando ela ajeita os cabelos. Agradeço ao calor. Ela tá metida numa blusa, de alcinhas, tem um quê de hippie. Ela é meio zona sul. Gosta de cores. O perfume é bem bom. Deve ter trago de Madrid ou coisa que o valha. Quero arranca-la dali. Estou louco por ela como nunca estive antes. Já fui melhor nisso. Começo imaginá-la sem aquela blusa. O corpo bronzeado. Os peitinhos firmes, contrastando com o resto do corpo, macio, moreno. A primeira coisa que fez ao voltar foi ir à praia. Nem lembro mais a última vez que fui passar o dia diante do mar. É sempre preciso pegar trem, metrô, é cansativo.

Ela não usa sutiã. Gosto quando as mulheres se metem nessas blusinhas sem sutiã. Imagino eu metendo minha boca nos seus peitos, depois sentindo a sua buceta molhada entre os meus dedos. Ela é linda e sabe disso. Antes de ir para Espanha vivia no meu encalço. Eu estava noutra. Eu sempre estou noutra e assim vou desperdiçando minhas melhores chances. É o Cristo. Desde que eu nasci, ele estava de costas.

Vamos pra outro canto? Arrisco. Ela diz que algumas amigas estão na Lapa. Corro a tela do celular. Olho o Uber. É agora ou nunca. Daqui a pouco os filhos da puta jogam o preço lá em cima. Viva o livre mercado, a livre iniciativa. Ela começa a me contar como a viagem a transformou, como voltou com novos questionamos. De fato, ela não é mais a mesma. A garota da igreja agora tem um quê de Hilda Hilst.

A Espanha lhe fez bem, digo. Ela sorri. Pergunto dos amores. Ela enrubesce. Conto de uma amiga que dizia que intercâmbio é viajar ao mundo em oitenta picas. Ela gargalha. Parece concordar. Como um bom vira-lata que sou, começo a me comparar com os gringos. Se ela pudesse sondar meus pensamentos, saberia o cara machista que sou. É cultural. Disfarço bem.

Vertemos a saideira. Gosto do perfume que ela usa, como eu gosto. Tento apanhar sua mão. Ela hesita. Ela não é mais a mesma. Deve ter descoberto o tipo idiota-canalha que sou. Volta a falar da Espanha. Diz que gostou de Barcelona, mas prefere Madrid. O mais perto que cheguei da Espanha foi assistir os gols de Messi e CR7 em vídeos na internet. Ela sorri. A merda é que eu sei como fazer uma mulher sorrir. Isso é uma vantagem imensa sobre os outros caras, os machistas convencionais. O carro chega. Lembro de Jards Macalé. “Há um morcego na saída principal”.

Nos ajeitamos no banco traseiro de um Honda Civic, tão negro quanto a noite e as nossas almas selvagens. O cara ao volante veste terno, parece polido. Tão diferente de táxi, né? Ela diz sorrindo, parece satisfeita. Continuo a pensar em seu par de seios. O carro arranca. Conto um pouco mais das minhas desilusões. Enquanto falo, ela mordisca os lábios, me olha nos olhos. Os cabelos cacheados, volumosos, bem perfumados. Sei que ela está afim. O corpo dela demonstra. Começo a ficar confiante. Vontade de pedir para o motorista mudar o destino. Ela detestaria. Vou ter que bancar o bom moço por mais um tempo. Há tempos que não faço isso. Amores líquidos. Bauman. Hoje vai ser diferente. Quero a garota da igreja com quê de Hilda Hilst. Eu me animo. Ela diz que a noite tá gostosa, o que pede uma tequila.

O carro nos deixa o mais perto possível. Cruzamos os arcos a pé. Gosto da noite. Gosto da Lapa. Gosto de encher meus pulmões com os ares da Lapa.

O lugar tá lotado. Na fila, vasculho o celular. Até o fim do ano prendem o Lula. Tento puxar assunto. Ela discorda. Vão chafurdar a vida dele toda. Não vão encontrar nada. Ela parece ter certeza. Estão com medo. Em 2018, ele volta. Acho difícil. Quer apostar, ela desafia. Queria que 2018 fosse amanhã. Apostaria alguns beijos. Ela ri. Gosto quando isso acontece.

Ela tem uma boca bem delineada. Uns dentes imensos, que ficam ainda mais brancos em contraste com o batom. Chega nossa vez de entrar. A atração entoa Chico. Ela diz que caso tenha filhos, se for menina, vai ter o nome de alguma canção dele. Gosto de Beatriz, arrisco. Você não tem cara de quem quer filhos, ela devolve. Ela realmente mudou. Ficou mais desafiadora. Gosto disso. Logo, ela se junta às amigas. Saio para buscar umas cervejas. Perto do bar, um grupo de marmanjos acompanham o jogo do Flamengo num televisor 14". Lembro da tequila.

É quando eu a tiro pra dançar que as coisas se ajeitam. É bom sentir o corpo dela rente ao meio, os seios rijos, apertados contra o meu peito, o cheiro de baunilha e suor. Trocamos olhares. De alguma maneira, percebo que ela esperou muito tempo por isso. Me sinto meio idiota. Seu corpo é quente, mas as mãos estão geladas, suadas. Antes que eu pensasse em algo pra dizer, ela me afoga em um beijo longo e macio. Por um instante, penso que talvez eu conseguiria perdoar Deus. No meio de um beijo quente e macio, a gente perdoa toda a existência. Por que você demorou tanto? Mas eu não sei responder. A música acaba, as duplas se desfazem. Ela se abana, diz que tá quente.

Não demora muito e uma das amigas resolve que quer ir embora. As amigas insistem em ficar um pouco mais. Mas a resistência não dura muito. Quatro ou cinco músicas depois, lá estamos nós pra pagar a conta.

Ela se desculpa e diz que ficou de voltar com as amigas para dividir o táxi. Eu me conformo. Nos despedimos. Nos vemos amanhã? Ela me interroga. Claro que sim. Quem sabe outro chope. Prefiro fazer coisa melhor, diz sorrindo. Ela desaparece no meio da noite.

Vasculho o celular. Uber está cobrando quase doze reais o quilômetro. Saio andando pela fila imensa de táxis parados. Vai pra onde? Quando repondo Cordovil todos se recusam. Ninguém quer ir pra onde o Cristo está de costas, ainda mais a essa hora. Volto a vasculhar o celular. Peço outro Uber.

Entro no carro, outro Honda. O motorista pergunta se o ar tá bom e cortamos a noite pela Avenida Brasil. Vejo a cidade passar pela janela. Estou cansado, mas ainda penso nos peitos, imagino como devem ser. Já perto de casa nos deparamos com uma blitz — falsa blitz. Querem o carro. Apontam armas, mandam descer. Perguntam se é Uber. O motorista tenta negar. Querem meu celular e todo o dinheiro que tenho na carteira. Enquanto esvazio meus bolsos, eles espancam o motorista. Gritam insultos. Vai chorar, crioulo? Mandam-me ajoelhar. Antes de ver os meus miolos manchando o asfalto, penso no olhar resignado de Suzana. Amanhã quando ela abrir os jornais, vai se lembrar que a culpa é do Cristo, sempre de costas. Com sorte, já estarei imóvel na caixa gelada de algum necrotério da cidade.

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