kPluto / Flickr

Quando o amor acaba o que sobra são as bactérias

fjunior
Published in
3 min readJul 23, 2015

--

Dizem que para sobreviver, algumas bactérias transformam-se em endósporos, que nada mais são do que uma célula inativa contendo o DNA de uma bactéria morta. Essa é uma das fabulosas informações que hoje encontramos pelo Google. Talvez seja essa uma das transições do amor. Depois do fim, o que sobra são as colônias de bactérias que trocamos beijo a beijo, tato a tato, sexo a sexo, saliva a saliva, lágrima a lágrima. A consubstanciação da vida, o partir do pão e do vinho.

Quando sorvi o último gole do espresso sem açúcar que costumávamos tomar no Café Eldorado foi inevitável não pensar em quantas bactérias suas em mim haviam se tornado endósporos, pois era como eu me sentia. Nosso amor havia morrido dois verões atrás, mas eu ainda carregava em mim alguns traços do seu DNA.

De início, neguei todas as nossas rotinas. Deleitei as fotos, apaguei as mensagens no celular, os vestígios virtuais do nosso prazer que sempre começava bem antes da cama e terminava muito dias depois do gozo. Troquei os lençóis e o colchão da nossa cama. Quis me livrar dos ácaros que tanto se alimentaram das proteínas e dos suores que expelíamos por dias e semanas seguidas como consequência de todos os riscos que corríamos irresponsavelmente, ciclicamente, como dois adolescentes — do gozo que invade o ventre até o exame de sangue e a sensação de alívio e tristeza após todos os disputas para decidir o nome da criança que nunca ia chegar.

A poesia da vida como ela é, do sexo pela manhã, sem maquiagem, com o gosto dormido do vinho da noite anterior, o pacote de preservativos longe demais no bolso da calça esquecida pelo chão entre a sala e o quarto. O nosso Deus que sempre dançava suspenso ao acaso e que tanto velou nosso sono quase santo. Por muito tempo, éramos capazes de parir universos inteiros.

Eu amei os seus olhos, cada sorriso malicioso, cada centímetro do seu corpo, cada imperfeição e marca do tempo. Amei sem medo, sem vergonha. Eu amei nossa história, o nosso futuro que se dissolveu no ar. Agora o que restava eram as células que carregavam o DNA das colônias de bactérias que trocamos.

Porém, pela primeira vez, em muito tempo, eu me sentia livre. A dor havia se desfeito, o nó na garganta que insiste em brotar também havia evaporado. Já era capaz de sorrir ao topar com algum vestígio seu, pois é sempre ineficaz tentar apagar o passado, o rastro alheio, o bilhetinho sacana de início de amor perdido entre os livros, a fotografia da primeira viagem para praia a dois. Você esteve ali o tempo todo, na poeira que por muito tempo emoldurou os móveis da casa, nos discos que eu apanhava para ouvir — a coleção que herdei do seu tio. Mas agora não quedava nem saudade, talvez só as bactérias que se transformaram na tentativa desesperada e derradeira de sobreviver. Finalmente, eu podia terminar de ler o livro do Alan Pauls, caso eu não tivesse o esquecido na casa dos seus avós, em Manaus. Finalmente, eu estava pronto para procriar novas colônias de bactérias.

--

--