A complexa existência (e resistência) das rádios comunitárias

Editor da Zumbido
Zumbido
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11 min readJun 1, 2022

Uma breve análise da história das rádios comunitárias — e os interesses que atravessam suas existências legais. Por Dora Guerra

Ilustrações por Denis Araújo
Ilustração: Xiloceasa/Denis Araújo

Do surgimento e popularização na década de 20 até hoje, as rádios seguem compondo uma parte significativa do dia a dia dos brasileiros. É um meio de comunicação de massa que, atualmente, chega a ser subestimado: outras tecnologias e possibilidades tomaram conta da nossa vida desde então — os iPods, os celulares com streamings, o YouTube, os podcasts, dentre outros –, mas existe algo do nosso DNA que ainda se apega ao formato. Se vale de referência, segundo estudo de 2021 da Kantar IBOPE Media, a rádio é ouvida por 80% da população do país, com um crescimento de dois pontos percentuais com relação ao ano anterior.

Nunca foi um exagero afirmar que há um caráter profundamente popular na rádio — que, por décadas, esteve fisicamente presente dentro da casa dos brasileiros. Ao contrário do jornal e dos discos, a rádio era o oposto do isolamento; por natureza, uma forma de comunicação que conecta pessoas, criando um repertório em comum.

Muito antes da interação instantânea e frenética da internet, a rádio permitiu pontos de contato essenciais entre locutores e ouvintes, considerando a resposta imediata que era possível dar às ligações ao vivo. Entre programas informativos, radionovelas, esportes e demais, havia uma conversa cultural acontecendo de casa em casa — uma conversa formadora de opiniões e consumo, também.

“Não é à toa que, no Brasil, as rádios têm um histórico claro de passar pelo Estado como a única entidade controladora e capaz de conceder permissões: o controle da rádio é de interesse de muita gente.”

E se forma opiniões, isso significa que é um veículo de comunicação de interesse de muita gente. Leia-se: um poderoso instrumento de propaganda política. Não é à toa que, no Brasil, as rádios têm um histórico claro de passar pelo Estado como a única entidade controladora e capaz de conceder permissões: o controle da rádio é de interesse de muita gente. Basta conhecer a história de Getúlio Vargas para compreender que, como qualquer meio de comunicação de grande adesão, a rádio tem uma relação profunda e intrínseca com a política brasileira.

Mas isso vai muito além de Vargas. Um caso mais contemporâneo é o da Rádio Jovem Pan, que em sua proposta específica mesclada de radiojornalismo, entretenimento humorístico e discussões políticas entre personagens conservadores, nutriu um público de extrema-direita no Brasil. Ainda que seja difícil precisar a influência direta da rádio no resultado da eleição de 2018 e no crescimento do bolsonarismo no país, é inegável que a popularidade de programas como o Pânico tenham uma participação no fenômeno.

Estar na rádio significa ter um espaço de visibilidade, rotineiro e perene; um lugar para provocações, estímulos culturais e inúmeras possibilidades. No entanto (ou talvez justamente por isso), o fazer legalizado da rádio — mesmo que comercial — nunca foi de acesso aberto ou simples.

Afinal, mesmo hoje, abrir uma rádio comercial depende de diversas obrigações legais, bem como a seleção em um processo licitatório no Ministério das Comunicações. Resumidamente: além da documentação em ordem, é necessário entrar em um edital e ser aprovado; em seguida, entrar com um projeto de aprovação do local, em que constará toda a estrutura da rádio; pagar a outorga, assinar contratos e, por fim, aguardar a deliberação do Congresso Nacional. Tamanha burocracia — com prazo indefinido — não é à toa; trata-se de mais uma forma de regulação por parte do Estado, fazendo com que a existência legal de uma rádio necessite de investimento contínuo, insistência e alinhamento ao que mais o Ministério considerar “necessário” para a outorga.

Essa inflexibilidade inicial não se traduz necessariamente uma vez que a rádio é legal. Curiosamente, segundo levantamento do ECAD a pedido da UBC (2018), cerca de 42% das emissoras comerciais é inadimplente com o pagamento de direitos autorais pela execução de canções. Trata-se de uma atividade ilegal — que fere a lei 9610/98, por exemplo –, mas não suficiente para que o governo interfira na existência de tais rádios. Portanto, é difícil não sentir que a exigência do Estado para com as emissoras é, como em muitos outros casos, seletiva.

Levando tudo isso em consideração, torna-se claro porque muitas rádios surgiram clandestinamente nos anos 70, como aconteceu em outras partes do mundo. Buscava-se um espaço de fala democrática, livre de regulação, que atendesse à voz de quem até então apenas ouvia. Foi na década seguinte, portanto, que começaram a surgir as primeiras rádios ditas comunitárias no Brasil.

O surgimento das rádios comunitárias

“O ar não tem dono, companheiro (…). O ar é de todos” — Uma Onda no Ar (Helvécio Ratton, 2002)

Falar em rádios é falar em dar voz; em abrir conversas, ser ouvido. Portanto, pensar em rádios comunitárias envolve entender que, além de novos canais de comunicação, o surgimento das rádios livres foi um movimento de democratização.

Entende-se rádio livre como aquela que entra no ar “fora da lei”, ou seja, sem um canal concedido por um órgão governamental. Originalmente organizadas por jovens, a história dessas rádios foi marcada pela tentativa de expor opiniões e vozes que, de outra forma, não seriam ouvidas em mídias convencionais — com propostas políticas, sociais e/ou educativas diferentes das tradicionais.

Diversas vertentes originaram as rádios livres da época; sobretudo juvenis e universitárias, mas não menos políticas. Da Rádio Favela, fundada em 1981 na região periférica de Belo Horizonte, à Rádio Xilik, criada (e escondida) no Centro Acadêmico de Ciências Sociais da PUC-SP em 1985, diversos grupos se organizaram para fundar rádios nas quais você podia sintonizar e ouvir um pouco menos do convencional.

O transmissor da Rádio Xilik foi montado dentro de uma panela. A rádio chegou a emitir seus sinais de frequência para os bairros de Perdizes, Sumaré, Pompeia e Pinheiros, alcançando um raio de 2 quilômetros | Foto: Reprodução/Facebook Rádio Xilik

E é dessas rádios livres que surgem as rádios comunitárias — nome dado àquelas que se associam, respondem, dialogam e dão visibilidade a comunidades específicas. Vale ressaltar que, assim como suas antecessoras “livres”, estas não eram legalizadas: existiam fora do radar, externas às legislações, cada uma à sua forma. Isso implicava tanto em uma possível liberdade criativa, de expressão e funcionamento, quanto em um risco para a própria existência das rádios. E é com a lei 9612, no ano de 1998, que esse processo começa a mudar.

A tal da regulação das rádios comunitárias — e o que de fato se sucedeu

Na aparente tentativa de atender à demanda crescente pelo acesso às ondas, bem como a possibilidade de legalizar as rádios, promulga-se a lei 9612/98:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Denomina-se Serviço de Radiodifusão Comunitária a radiodifusão sonora, em frequência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita, outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na localidade de prestação do serviço.

§ 1º Entende-se por baixa potência o serviço de radiodifusão prestado a comunidade, com potência limitada a um máximo de 25 watts ERP e altura do sistema irradiante não superior a trinta metros.

§ 2º Entende-se por cobertura restrita aquela destinada ao atendimento de determinada comunidade de um bairro e/ou vila.

Até então, rádio livre e/ou comunitária era rádio ilegal; repreendida, silenciada até, sob o pretexto muitas vezes disfarçado de criminalidade — quando se trata de uma comunidade ou um povo marginalizado, sabemos que outras questões atravessam esse tópico; raciais, sociais e econômicas. Como aponta Peruzzo (2009), “​​as rádios comunitárias não querem ser ilegais, são as circunstâncias que as levam ou as mantém nessa situação”. Simples assim.

Aos poucos, estas rádios começaram a ser entendidas como expressões mais legítimas, passíveis de existência perante a lei. A rádio comunitária enfim foi reconhecida pelo Ministério das Comunicações como “um tipo especial de emissora de rádio FM, de alcance limitado a, no máximo, 1 km a partir de sua antena transmissora, criada para proporcionar informação, cultura, entretenimento e lazer a pequenas comunidades”. E seguindo essa linha, a legislação número 9612 para regularização das rádios comunitárias poderia ter sido compreendida como uma vitória: na teoria, se tornariam espaços livres com o direito de existir dentro da lei, pluralidade de opinião e atendendo a determinadas comunidades como um exercício de cidadania.

Mas não foi bem por aí: 70% dos membros da Comissão no Congresso eram donos ou tinham interesses indiretos em empresas de rádio e televisão; e somente 10% da proposta de projeto de lei do movimento organizado foi aprovada (COSTA e HERMANN, 2002).

Na prática, o resultado foi mais complicado — e obedeceu a uma lógica bastante comum a diversos processos burocráticos no Brasil. Ao depender de um processo complexo regulado por órgãos políticos (e, em contrapartida, sem a possibilidade de captar recursos publicitários para se manter, por exemplo), as rádios comunitárias passaram a estar à mercê de ajuda política, fato que altera fundamentalmente o propósito de existência dessas rádios.

De repente, o que deveria ser uma proposta democrática e livre dos interesses econômicos que de certa forma moldam as rádios comerciais, se tornou também mais um refém do coronelismo que paira sobre nosso país até hoje. Não é necessariamente uma realidade que se aplica à totalidade absoluta das rádios comunitárias legalizadas (difícil afirmar, não?) — mas, pensando na maioria, estas existem graças à influência política e/ou religiosa sobre o Ministério das Comunicações (LUZ, citado por ARAUJO, 2012).

Existem ainda milhares de rádios comunitárias funcionando sem licença, seja pela dificuldade de atender a esses requisitos ou por não obedecerem à tendência de clientelismo político. Mapeá-las (são 5.000? 7.000? 10.000?), entendê-las em suas particularidades e legalizá-las se tornou uma missão praticamente impossível; entre diversos governos estaduais e federais, pouco se resolve para facilitar a existência dessas rádios no país.

Ilustração: Xiloceasa/Denis Araújo

A situação relativa das rádios hoje

Mesmo com esses empecilhos, tanto é eficaz e necessário o papel das rádios comunitárias que, no ano de 2020, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2750 — que previa a concessão de licenças temporárias para emissoras com operação suspensa, restrita ou revogada. O projeto escancara a importância de meios de comunicação “alternativos” aos oficiais, especialmente em um momento delicado como o início da pandemia e, sobretudo, a desinformação difundida pelo próprio Governo Federal.

A justificativa dada na época — similar à que foi utilizada em 2021 com a aprovação da PL 2805/20, que concedia subsídio de R$10 mil às rádios comunitárias — era de que estas rádios ocupavam um lugar importantíssimo na comunicação; sendo, afinal, um dos poucos canais que chegavam com sucesso às comunidades.

Segundo a relatora, deputada Perpétua Almeida: “A radiodifusão comunitária, por sua proximidade com a população, encontra-se em posição privilegiada para exercer esse papel de disseminação de informações corretas e oportunas sobre ações de prevenção, vacinação e tratamento da doença. No entanto, por seu caráter não-comercial, necessita de apoio para uma cobertura mais eficaz.”

A fala em questão entrega, sem muitos rodeios, os desafios das rádios comunitárias: ainda que estejam em uma posição única, não têm apoio o suficiente — pelo que a relatora afirma ser “um caráter não-comercial”; na prática, entram aqui as questões relacionadas por exemplo à impossibilidade de veicular anúncios publicitários, dificultando o sustento das rádios. E se estas necessitam de apoio — e têm questões legais que foram contornadas à época da PL 2805/20 –, porque o apoio só surge em situações extremas? Não há nenhuma outra forma de valorizar e cuidar dessas mídias que se provam tão importantes?

Em suma: rádios invisíveis, possíveis somente quando convém

É curioso que, por mais voltas que o processo dê, as rádios comunitárias acabem por resistir às mais diversas ameaças: entidades tentam controlá-las — e por vezes, conseguem; mas se não tivessem ainda alguma importância, não sobreviveriam sem apoio até hoje. Em muitos casos, as rádios comunitárias vivem de si mesmas e das comunidades em torno, em um constante exercício de autocuidado e automanutenção.

Frente ao poder público, essas rádios são somente visíveis quando são convenientes — em nome do interesse político ou, no caso dos últimos anos, pela saúde do povo. Pensando nos casos de 2020 e 2021, por exemplo: a informação sobre as vacinas era necessária e deveria ser difundida? Claro, mas é difícil não questionar a necessidade real de tantos obstáculos para que uma rádio comunitária exista legalmente, visto que estes são contornados quando surgem outras questões de interesse dos governantes.

Em suma — e como sempre –, as rádios comunitárias sobrevivem “apesar de”, não “graças ao” nosso país. Mas servem mais ao Brasil que muitas das instituições oficiais, eleitas, reguladas, imponentes.

Não é novidade: na falta do oficial, o alternativo e comunitário tendem a ser o que nos salva.

ARAÚJO, Manuel João Simões de. Rádios Comunitárias: da Legislação à Prática. 2012. Acesso em fevereiro de 2022.

BERTI, Orlando Maurício de Carvalho. Vinte e um anos da lei das rádios comunitárias no Brasil. Pontos e contrapontos. Revista Rádio — Leituras, Mariana-MG, v.10, n. 02, pp. 150–171, jul./dez. 2019.

CAMARA LEGISLATIVA. Comissão aprova benefício emergencial de quase R$10 mil para rádios comunitárias durante pandemia. 2021. Acesso em fevereiro de 2022.

COSTA, M. J. S. R.; HERMANN, Wallace. Rádios livres, rádios comunitárias: outras formas de fazer rádio e política. Lugar Comum (UFRJ), Rio de Janeiro, v. 16‐17, 2002.

KANTAR IBOPE MEDIA: Inside Radio. Brasil, 2021.

MANSANO, Fábio Augusto. Para uma leitura crítica das rádios comunitárias. 2004. Acesso em fevereiro de 2022.

MUNDO DA MÚSICA. Dívida de Rádios inadimplentes com Ecad é de R$ 7,309 milhões; saiba mais. 2019. Acesso em março de 2022.

PERUZZO, Cicilia. Rádios Comunitárias no Brasil: da desobediência civil e particularidades às propostas aprovadas na CONFECOM. 2009.

SANTOS, Eliene; PRATA, Nair; MEDEIROS, João. Rádios comunitárias no Brasil: entre a clandestinidade e a relevância social. 2019. Acesso em fevereiro de 2022.

SILVA, Fabiano P. Rádios livres e a luta pela democratização da comunicação: o caso da Diversidade FM tendo o cotidiano como fio condutor. UFPE, 2009. Acesso em fevereiro de 2022.

UMA Onda No Ar. Direção de Helvécio Ratton. Belo Horizonte: Quimera Filmes, 2002.

Dora Guerra é formada em Comunicação Social pela UFMG, sendo redatora publicitária por um lado, pesquisadora musical por outro. Nessa segunda ocupação, é criadora e editora da newsletter Semibreve e colunista nos portais Popload e Tangerina (UOL). Fala também no podcast Queijo Quente, com o comunicador e produtor cultural Lohan Abdala e o jornalista Guilherme Guedes. E escreve com alguma frequência para outros portais, cobrindo música da mineira à internacional.

Ilustração por Denis Araújo/Xiloceasa. Xiloceasa, do Instituto Acaia, é um grupo formado em 2005 por adolescentes da oficina de xilogravura que na sua maioria residiam nas redondezas da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp).

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