A escuta das margens

Editor da Zumbido
Zumbido
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20 min readApr 10, 2020

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O streaming já é uma realidade no Brasil há anos, mas os números apontam que seu uso talvez seja menor do que se acredite. Onde estão os ouvintes de música que fugiram do formato padrão?

Na rua Galvão Bueno, no bairro da Liberdade, centro de São Paulo, um senhor que não me quis dizer seu nome nem sua idade, mas que deveria ter por volta de 50 anos, vende pen-drives com até 1.000 músicas cada. São diversos gêneros musicais: rock, pop, sertanejo, forró. Quando me aproximei para conversar com ele, um dos pen-drives estava plugado a uma caixa de som de onde tocava o hit de 1977 da banda norte-americana Kansas, “Dust in the Wind”.

Ele diz que trabalha na mesma esquina já há alguns anos, principalmente aos fins de semana. Os pen-drives custam R$30, e o senhor já os pega prontos de um “fornecedor” (sobre o qual ele não quis dar mais detalhes), cerca de duas vezes por ano. Mas o cardápio musical parece ser bem atualizado — a entrevista foi feita em janeiro, mas vários pen-drives já apresentavam os repertórios de 2020 de grandes cantores sertanejos.

Na mesma esquina, dois outros vendedores também têm suas próprias banquinhas de pen-drive. Não é raro encontrá-los, também, ao redor da Praça da República e em outros pontos do centro. A tendência não é um fenômeno novo nem local: uma matéria do G1 Piauí publicada em fevereiro de 2013 já apontava que os ambulantes teriam abandonado os CDs e partido para os pen-drives, e é possível encontrá-los nos mais variados repertórios e preços em marketplaces como o Mercado Livre ou Lojas Americanas.

Nos 10 minutos em que converso com o vendedor, duas ou três pessoas param pra olhar os pen-drives por alguns segundos e logo seguem seus caminhos pelo restante das banquinhas na Galvão Bueno. O senhor comenta que o movimento diminuiu nos últimos anos. Perguntei pra onde ele achava que aqueles consumidores estavam migrando e ele apontou para o meu celular.

É possível que o vendedor estivesse se referindo às plataformas de streaming como Spotify, Deezer ou Apple Music. O formato já existe pelo menos desde o começo do século — o site Grooveshark, em que usuários faziam uploads de MP3s e os deixavam disponíveis para que outros usuários ouvissem, por exemplo, foi lançado em 2007 — mas foi apenas a partir da década passada que ele começou a ser levado em consideração pela indústria da fonográfica e, como consequência, a mudá-la e pautar as discussões que a rodeiam.

Tela do Grooveshark em meados de 2007 | Imagem: Reprodução/Nextimpact.com

O crescimento foi rápido e voraz. Se em dezembro de 2012 o Spotify informou que contava com 1 milhão de usuários pagantes nos Estados Unidos (o serviço oferecido pela plataforma é o chamado “freemium” — trabalha com assinaturas, mas permite o uso de alguns recursos de forma gratuita, contanto que o usuário seja exposto a anúncios), em abril de 2019 esse número já figurava em 26 milhões.

Já tomando o mundo, a maioria das companhias foram chegando no Brasil ao longo da década passada: Deezer em 2013, Spotify em 2014, Apple Music em 2015. A praticidade foi encantadora para quem só tinha contato com mídia física e downloads (legais ou não) digitais. São milhões de faixas que podem ser acessadas de qualquer lugar e qualquer dispositivo, necessitando apenas de uma conexão com a internet.

“Uma das maiores dificuldades no mercado brasileiro ainda é a questão do meio de pagamento. A penetração de cartão de crédito no país ainda é baixa.”

Parecia uma revolução na indústria da música, e foi tratada como tal. Ao longo dos últimos anos, não faltou cobertura da mídia acerca do “novo comportamento” do público em relação ao consumo de música graças ao boom das plataformas, ou que colocasse o streaming como o responsável por “tirar a indústria fonográfica da crise” — afinal, metade da receita anual de gravadoras gigantes como a Warner e a Universal nos Estados Unidos já vem do streaming.

Alguns dados apontam, porém, que o consumo de música por streaming no Brasil não é tão massificado quanto parece ser. Em 2019, o site de notícias Mobile Time e a empresa de pesquisas on-line Opinion Box, que realizam anualmente a pesquisa Panorama Mobile Time / Opinion Box sobre uso de apps no país, entrevistaram uma pequena amostragem (2 mil pessoas) e chegaram ao número de 20% de assinantes de streaming de música. Um número fornecido pela Deezer e repercutido pelo Valor Econômico em junho do mesmo ano aponta uma porcentagem ainda mais baixa, de apenas 2%.

“Uma das maiores dificuldades no mercado brasileiro ainda é a questão do meio de pagamento. A penetração de cartão de crédito no país ainda é baixa”, fala Rafael Campos. Campos é Account Manager da Deezer para a TIM: a plataforma chegou ao Brasil já com uma parceria com a empresa de telefonia, o que facilitou sua penetração no mercado, segundo ele. “A Deezer foi uma das pioneiras neste tipo de parceria e já em 2010 firmava acordo com a Orange, na França, sede da empresa. “Para nós, é uma forma de incrementar a distribuição e ao mesmo tempo democratizar os meios de pagamento: a Deezer é oferecida em diversos planos como benefício dentro do plano, assim como em venda adicional ao plano.”

No artigo publicado no Valor, o diretor-presidente da empresa a nível mundial, Hans Holger Abrecht, diz que a Deezer está acompanhando a tendência do mercado mundial de streaming: seus assinantes cresceram em 30% em 2018, enquanto os usuários de streaming no geral cresceram em 32,9%, segundo a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Mas a empresa ainda não se tornou rentável, e não está sozinha: tendo sido lançado em 2006, o Spotify registrou seu primeiro lucro apenas em 2018.

Ainda segundo a IFPI, outros modos de consumir música vêm gradualmente diminuindo ano a ano. Em 2019, 27% dos participantes da pesquisa disseram utilizar algum tipo de pirataria como forma de ouvir música, e 26% disseram comprar música (em CD, vinil ou formatos digitais). Os número no Brasil são um tanto nebulosos, mas se a porcentagem de usuários de streaming é tão baixa, resta a pergunta: de que outras maneiras os brasileiros estão consumindo música?

Segundo Roni Maltz, os artistas entenderam que quanto mais acesso o público tiver em suas canções, mais contratos de shows conseguirão fechar | Foto: Alexandre Nunis

Custo zero

Em 2010, um rapaz paraibano de nome Éder Rocha, frequentador assíduo de shows das bandas de João Pessoa, notou que esses artistas gravavam vídeos de suas apresentações e disponibilizavam em diversos blogs e comunidades do Orkut. Da vontade de agregar todo este conteúdo surgiu o Sua Música, primeiro um blog, depois um site de downloads, streaming e notícias sobre artistas de música regional do Norte e Nordeste brasileiro. O portal foi o responsável por revelar algumas das grandes estrelas e hits nacionais dos últimos anos: onde Wesley Safadão foi descoberto através do sucesso de sua ex-banda Garota Safada, e onde primeiro estourou o hit de 2018 “Amor Falso” de Aldair Playboy; que, meses depois, ganhou uma versão com MC Kevinho e o próprio Safadão. Os artistas mais escutados em janeiro de 2020 foram Safadão, Unha Pintada, Saia Rodada, Xand Avião e os Barões da Pisadinha.

O site foca principalmente em CDs ao vivo e promocionais, como conta Roni Maltz, um dos donos e presidente da Sua Música atualmente. Se no começo Éder subia os conteúdos por conta própria, hoje a plataforma funciona como qualquer outro serviço pago: são os próprios artistas e gravadoras que disponibilizam a música. Os MP3s eram o foco inicial do Sua Música, mas o streaming começou a alavancar o site mais para o final da década, “pois a população começou a ter mais acesso ao wifi e redes 3G”, fala Roni.

“Os artistas entenderam que, quanto mais pessoas tiverem acesso às suas canções, mais contratos de shows ele vai conseguir fechar.”

As plataformas se destacam pela especialização. O site Blog dos Bregueiros, por exemplo, virou uma referência para DJs e apreciadores do ritmo pernambucano ao longo da última década. Criado por Diego Leonarderson, conhecido como Don Diego, também em 2010, o site teve grande importância em criar uma das faíscas que culminaram na explosão do brega funk nos últimos anos — “Envolvimento”, grande hit da adolescente pernambucana MC Loma, esteve disponível na plataforma antes de seu estouro no carnaval de 2018, e o sucesso da cantora foi acompanhado pelo site.

“Ainda existe um pouco de preconceito [com ritmos populares], mas estamos lutando para isso acabar e para conseguir expandir e conquistar um espaço no mercado nacionalmente”, fala Don Diego. Ele conta que os números de downloads de fonogramas, que são em grande parte enviados pelos próprios artistas via WhatsApp, já passa da casa dos milhões em dez anos de blog, e o site conta com mais de 100 mil visualizações por mês.

Homepage do Blog dos Bregueiros, criado por Diego Leonarderson | Imagem: Reprodução/Blog dos Bregueiros

O número de acessos a plataformas gratuitas, mas que expõe os usuários a anúncios, também é elevado. O próprio YouTube (apesar de possuir seu próprio aplicativo de streaming, o YouTube Music) se tornou um lugar importante para divulgação de música, e parece também superar Spotify e Deezer. Comparando execuções, por exemplo, das três músicas mais tocadas no Brasil em 2 de fevereiro segundo o Spotify: “Liberdade Provisória”, de Henrique e Juliano, tem 50 milhões de execuções no Spotify e 75 milhões no YouTube; “Tudo Ok”, de Thiaguinho MT, Mila e JS o Mão de Ouro, tem 18 milhões no Spotify e 58 milhões no YouTube; “Sentadão”, de Pedro Sampaio, Felipe Original e JS, tem 42 milhões no Spotify e 88 milhões no YouTube.

E isso são apenas as execuções das músicas subidas no YouTube pelos canais oficial dos artistas ou gravadoras. Diversos arquivos disponíveis ilegalmente também acumulam milhões de visualizações no YouTube, principalmente em canais especializados em postar esse tipo de conteúdo. O canal Rei dos Pendrives, por exemplo, conta com 135 mil inscritos postando conteúdos regionais e promocionais, semelhantes aos do Sua Música. Um outro canal que sobe discos completos de música dance, chamado “Músicas Top”, tem vídeos com mais de 100 mil visualizações cada.

“O que as pesquisas de hábitos culturais apontam como tendência geral é que as variáveis escolaridade, renda e filhos são as que mais interferem no hábito cultural do indivíduo, independentemente da linguagem artística.”

O custo zero é parte importante do sucesso dessas plataformas. Os donos de Sua Música dizem estudar a criação de opções pagas, mas, até então, o acesso ao conteúdo da plataforma é gratuito e “sempre será, pois os artistas querem atingir o maior número possível de fãs”, explica Maltz. Aparentemente, a tática deu certo: segundo o site PapelPop noticiou em janeiro de 2019, o Sua Música teria mais de um milhão de acessos por dia e desbancaria o Spotify na região nordeste. “[Os artistas] entenderam que, quanto mais pessoas tiverem acesso às suas canções, mais contratos de shows ele vai conseguir fechar”, conclui Roni.

Segundo a pesquisadora Daniela Ribas Ghezzi, diretora do núcleo de pesquisa e dados da Sim São Paulo, o Data Sim, o poder aquisitivo é um fator determinante no consumo de música no Brasil — não à toa, o crescimento no nosso uso de streaming veio tão atrasado comparado à Europa e aos Estados Unidos. “O que as pesquisas de hábitos culturais apontam como tendência geral é que as variáveis escolaridade, renda e filhos são as que mais interferem no hábito cultural do indivíduo, independentemente da linguagem artística”, fala. Isso também poderia explicar a regionalização de plataformas que se destacam nesse segmento: em áreas em que a renda média domiciliar é menor, é quase certo que o consumo (financeiramente falando) de cultura também será mais limitado.

“Inclusive, o crescimento impressionante da indústria fonográfica na América Latina em 2018 e em 2017, em comparação à Europa, segundo a IFPI, se deve ao acesso tardio aos smartphones, tecnologias 3G/4G e acesso a métodos de pagamento como cartão de crédito, essencial hoje”, diz a pesquisadora. No mesmo ano de 2018, o Brasil figurava como o quinto país a mais consumir conteúdo pirateado no mundo.

Acesso tardio aos smartphones, tecnologias 3G/4G e acesso a métodos de pagamento como cartão de crédito — três fatores para o boom da indústria fonográfica na América Latina em comparação com a Europa | Foto: Renan Abreu

Poderosos piratas

Os produtos piratas fazem parte do imaginário popular brasileiro — principalmente o CD, para pessoas que cresceram entre os anos 1990 e 2000. O produtor cultural, pesquisador musical e DJ Daniel Moura conta como o formato fez parte da sua infância. “A maioria dos CDs dos meus pais, que escutei durante a infância, eram piratas. Tínhamos poucos LPs. Pra ouvir música no carro precisávamos de fita cassete, normalmente cópia da cópia”. Alguns anos depois, ainda seguindo a narrativa que contempla muitos dos adolescentes que cresceram no Brasil no início do século, o acesso à internet e aos MP3 players tornaram o download a principal forma de pesquisa e consumo de música de Daniel.

Ele conta que o hábito começou pelos blogs de download, que até alguns anos atrás eram sua principal fonte de MP3s. Em 2012, porém, com a ameaça de projetos de lei norte-americanos contra a pirataria como o Stop Online Piracy Act (SOPA) e Protect IP Act (PIPA) e o fechamento da plataforma de downloads Megaupload — e o esvaziamento de algumas outras importantes para usuários brasileiros, como o MediaFire e o 4Shared –, os blogs perderam a força. Daniel, então, passou a compartilhar e baixar arquivos via softwares peer-to-peer (P2P), programas que procuram pelo conteúdo desejado em outros computadores ligados à mesma rede P2P.

“Também me interessa pesquisar, ouvir e recomendar música como ato em comunidade e a lógica, o modo de funcionamento das plataformas de streaming e seus algoritmos dificulta essa prática.”

Acostumado a pesquisar e baixar música semanalmente, em 2016 ele criou o blog Jamaican Greek Style, onde postava mixes que produzia com o material compilado naquela semana. Dois anos depois, o blog se tornou um programa quinzenal na rádio virtual Veneno.

Daniel diz ter conta no Spotify e no Deezer, mas seu uso das plataformas de streaming é ocasional. “São vários motivos que me afastam, alguns ideológicos e outros também práticos, como a limitação de catálogo. Existe uma infinidade de conteúdo fora dali que, pra mim, não é dispensável”, fala. “Também me interessa pesquisar, ouvir e recomendar música como ato em comunidade e a lógica, o modo de funcionamento das plataformas de streaming e seus algoritmos dificulta essa prática.”

O Stop Online Piracy Act (SOPA), saiu dum debate na Câmara dos Deputados dos EUA, em 2012, visando fortalecer a aplicação online das leis de violação de direitos autorais | Foto: Just Grimes (CC)

De fato, quando não é você quem voluntariamente dá o play na música que quer escutar — ou seja, quando você ouve uma playlist do Spotify ou quando o álbum que você está ouvindo acaba e a rádio de “recomendações” da plataforma começa a tocar –, essa decisão está sendo feita por outrem; em geral, grandes gravadoras e nomes poderosos da indústria num geral, que podem investir mais dinheiro em seus artistas e músicas na plataforma. O resultado é uma aparente menor diversidade de escuta: em 2018, a empresa de análise musical BuzzAngle divulgou que 99% dos 377 bilhões de streams feitos em 2017 vieram dos 10% de músicas disponíveis nas plataformas. Todo o 90% restante se espremeu no outro 1% de streams.

Em julho de 2019, o jornalista norte-americano David Turner escreveu na Penny Fractions, sua newsletter semanal sobre o mercado do streaming, sobre como a indústria musica reflete a desigualdade social nos Estados Unidos, e como o streaming ajuda a perpetuar esse formato. “É importante nunca levar o sucesso de alguns artistas em consideração para dizer que toda uma indústria está subitamente se tornando ótima e incrível”, diz o jornalista em entrevista por e-mail à Zumbido.

“Se os artistas tiverem que depender quase exclusivamente da receita desses serviços [de streaming], ficarão sem trabalho dentro de um ano.”

Turner é crítico a muitos aspectos do streaming, e, em 118 edições de Penny Fractions, desde dezembro de 2017, já escreveu sobre diversos deles: a competição entre plataformas, a pasteurização da música pop, a narrativa construída a respeito da pirataria. Mas o assunto que mais o preocupa com a massificação iminente de plataformas como o Spotify é a desvalorização do trabalho dos artistas e músicos.

Esse aspecto foi muito ressaltado, principalmente no começo da popularização do streaming. Em março de 2012, o músico norte-americano Patrick Carney, do Black Keys, deu uma entrevista a um jornal de Seattle e constatou que “o Spotify não é justo com artistas”. David Byrne, membro-fundador do Talking Heads, escreveu um artigo de opinião para o jornal inglês The Guardian em outubro de 2013, onde escreveu: “Se os artistas tiverem que depender quase exclusivamente da receita desses serviços [de streaming], ficarão sem trabalho dentro de um ano”. Artistas como Neil Young, Taylor Swift e Thom Yorke já retiraram seus catálogos do Spotify por queixas parecidas.

“As artistas não são pagos o suficiente. Todo o poder no momento, que costumava ficar nas mãos de gravadoras, agora está dividido entre gravadoras e plataformas de streaming, com essencialmente nenhuma opinião dos músicos”, fala Turner. Por este mesmo fator, o jornalista é cético quanto à afirmação de que as plataformas tiraram a indústria fonográfica da crise — e ainda mais à afirmação de que a pirataria a quebrou em primeiro lugar.

Na edição #105 de Penny Fractions, intitulada “A persistente mentira sobre a pirataria”, Turner questiona as motivações por trás dessa narrativa dominante e constata que diversas pesquisas acadêmicas feitas nos Estados Unidos chegam à conclusão de que downloads ilegais de MP3s nunca representaram uma ameaça significativa à venda de mídia física.

“[Esse posicionamento] absolve a indústria fonográfica de qualquer responsabilidade por sua posição econômica e coloca a culpa nos fãs e nos ‘piratas’ sem rosto. É sempre suspeito quando um grupo de pessoas é acusado de causar grandes mudanças econômicas sem nenhum incentivo claro”, diz. “É por isso que, pessoalmente, eu tenho muito pouco contra pirataria. A ideia de que todos precisam estar presos a uma plataforma de aluguel ou que todas as suas interações digitais sejam minadas por dados certamente não é algo que eu consideraria uma situação ideal.”

O MP3 player está na lista dos eletrônicos mais importantes de todos os tempos | Foto: Reprodução/TechScout

Consciência ou fetiche?

Todos essas formas de consumo criaram mais uma confusão na indústria fonográfica: como quantificar o quão popular um artista ou faixa é se ele pode ser ouvido em diversas plataformas?

Em 1945, em seu surgimento, as paradas da revista Billboard, a mais relevante maneira de medir o quão tocados foram certos álbuns ou singles nos Estados Unidos, era separada em três seções: execuções das faixas por disc jockeys em rádios, execuções via jukebox e vendas de discos. Em 1958, as três paradas foram mescladas e surgiu a “Hot 100”, que determina as 100 faixas mais populares em terras norte-americanas.

Com o passar das décadas, as mudanças na indústria fonográfica foram promovendo, também, mudanças nas paradas. Em 1998, as paradas passaram a incluir faixas tocadas na TV (o que impactou os artistas que eram muito tocados na MTV, por exemplo); em 2005, elas incorporaram downloads digitais; em 2007, os impactantes streaming. Mas as diferentes plataformas e formas de consumir música ainda causa mudanças constantes na metodologia das paradas publicadas pela revista: ainda no fim do ano passado, em 13 de dezembro, a Billboard 200 (parada de álbuns mais populares) passou a contar execuções de vídeos no YouTube, o que não acontecia antes.

No Brasil, uma iniciativa similar foi criada em 2015 para medir a popularidade de artistas. Diferentemente da Billboard, a Playax não é uma ferramenta meramente informativa. É um serviço por assinatura que permite que os próprios artistas (ou veículos de comunicação, que já fizeram diversas parcerias com o serviço) chequem onde, quando e com que frequências suas músicas estão sendo tocadas. Segundo uma entrevista dada por Daniel Cukier, um dos sócios da empresa, ao Jornal da USP, o sistema usado pelos algoritmos da Playax é chamado de audio fingerprinting (ou impressão digital de áudio). A partir de um sinal de áudio, o algoritmo identifica uma amostra e localiza rapidamente itens similares numa base de dados. É a mesma tecnologia usada, por exemplo, no Shazam.

A plataforma também se destaca pela combinação de diversos fatores — execuções em rádios, rádios online, streaming, canais de TV, e até seguidores em redes sociais,atribuindo diferentes pesos a cada um deles — para determinar popularidade. Também há outra disparidade da plataforma quanto à Billboard: ao contrário da revista, a Playax não contabiliza vendas físicas como parte de suas paradas.

É inegável que a venda de CDs e discos passou a impactar cada vez menos o posicionamento nas paradas. O álbum Please Excuse Me For Being Antisocial, estreia do rapper californiano Roddy Ricch, por exemplo, passou até a publicação desta matéria 13 semanas (de 15 de dezembro a 11 de março) no top 10 da Billboard 200 apenas por streaming e vendas digitais, já que não possui uma versão física.

No Brasil, a Pro-Música Brasil (PMB), anteriormente conhecida como Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), publicou em relatório de 2018 que o mercado de vendas físicas representava 1.4% da receita da indústria — 69% a menos do que em 2017. No mesmo ano, o mercado digital passou a representar 72.4% do total, +38% em relação a 2018.

“Mas eu percebi que você baixa uma discografia completa, chega tudo no seu HD de uma vez e o negócio ele fica ali parado.”

De qualquer maneira, o mercado físico parece continuar relevante, mesmo que simbolicamente e para comunidades específicas. O site Discogs, por exemplo, um banco de dados e plataforma de compra e venda de discos, conta com uma comunidade ativa interessada em vinil — oficiais ou não, raros ou não –, e muitos de seus membros são brasileiros. A Locomotiva Discos, que também possui uma loja física no centro de São Paulo, é a maior loja brasileira do site, atualmente com mais de 3.500 itens à venda.

Exposição da loja Locomotiva Discos, cujo acervo tem mais de 2 mil vinis | Foto: Locomotiva Discos/Divulgação

Um dos fundadores da loja, Gilberto Custódio conta que criou a Locomotiva depois de alguns anos já vendendo discos de forma amadora pela internet. “Dez anos atrás, eu e meu irmão resolvemos abrir uma loja física por perceber que existia um espaço para se trabalhar entre as que já existiam. Já chegou com muito disco importado que eram difíceis de encontrar, principalmente de indie rock e as reedições que estavam começando a sair de música brasileira”, fala.

Quando a Locomotiva abriu, em 2011, o MP3 já estava a todo vapor no Brasil. Gilberto conta que ele mesmo se deixou envolver pela febre dos downloads. “Talvez eu tenho ficado alguns meses na época do deslumbre onde eu baixava um monte de coisa, discografias completas em torrent. Mas eu percebi que você baixa uma discografia completa, chega tudo no seu HD de uma vez e o negócio ele fica ali parado. Logo passei a comprar disco de novo e, então, pensei: se eu for assim deve ter mais gente assim também.”

Gilberto, de fato, não parece ser o único. Do começo da década passada pra cá, uma série de matérias têm sido publicadas a respeito do que ficou conhecido como “a volta do vinil” ou “o boom do vinil”. Em 2015, a Nielsen, empresa norte-americana que estuda o mercado fonográfico em mais de 100 países, registrou o décimo aumento consecutivo nas vendas de discos de vinil e as vendas só cresceram desde então, aumentando 9,9% de 2018 para 2019. Em 2014, as vendas de discos no Reino Unido alcançaram os números mais altos desde 1994.

“Tem muita gente comprando vinil pra fazer quadro, pra fazer uma peça de decoração. Compra o CD mas acaba escutando a música no streaming.”

Apesar de os números no Brasil serem imprecisos, há alguns indícios que a venda de discos também possa ter se intensificado por aqui — das notícias de que discos “raros” dos anos 1960 e 1970 estariam rapidamente sumindo das prateleiras de sebos aos diversos relançamentos e reedições de discos clássicos da música brasileira. Mas a cereja que oficializou o bolo da “volta do vinil” do Brasil foi o surgimento de uma nova fábrica de bolachas em 2016.

A Vinil Brasil se tornou, na época, a segunda fábrica de vinil da América Latina e foi aberta pelo músico Michel Nath, que achou a promissor o novo pico de consumo das bolachas. “Tivemos uma multiplicação dos suportes e da forma de se consumir e escutar música, mas os discos continuam sendo a grande mídia física para a preservação de uma obra — desde o ponto de vista da propriedade e qualidade do áudio até o das informações que um álbum, um encarte, uma capa podem conter”, fala Nath.

Página do Facebook da Vinil Brasil | Imagem: Reprodução

Não demorou para que as grandes gravadoras também voltassem a investir no formato, ainda que de forma mais direcionada. Em junho de 2019, a Universal Music voltou a investir não apenas em CDs e discos, mas em móveis, almofadas, peças de decoração ligadas aos artistas da gravadora. Para Paulo Lima, presidente da Universal, o novo mercado de mídia física tem como consumidor alvo o fã. “Tem muita gente comprando vinil pra fazer quadro, pra fazer uma peça de decoração. Compra o CD mas acaba escutando a música no streaming”, fala. “Isso porque existe uma necessidade do fã de ter um produto físico do artista, mas ele não compra para escutar, compra para ter.”

Em dezembro de 2019, a Folha de S. Paulo publicou reportagem que noticiava o investimento da Universal em mídia física e apontava seu novo crescimento como um “fetiche”. Nath discorda do apontamento. “O modismo não daria conta de fazer com que o número de fábricas em atividade no mundo dobrasse nos últimos cinco anos”, diz. “A grande questão do vinil não é decorativa nem de moda, a questão é o que quem vai sustentar a cena e a produção no Brasil e no planeta é uma cena consciente de consumidores que sabem a importância de ter um legado físico.”

Existe uma necessidade do fã ter o produto físico do artista, ele “compra o CD, mas acaba escutando música no streaming”, afirma Paulo Lima, presidente da Universal Music | Foto: Nilton Silva

Quem procura, acha

Ainda assim, há artistas cujas carreiras funcionam fora da lógica do streaming — seja por necessidade, por protesto ou por escolha do público.

O pianista André Mehmari, que lança discos solo e em conjunto desde 1998, relata já ter visto diversas mudanças na indústria fonográficas — nenhuma tão grande quanto a proporcionada pelo streaming. Os seus ouvintes, no entanto, continuam apreciando seus lançamentos físicos. “A renda vem mais dos CDs vendidos em bancas de shows do que em lojas de CD, por exemplo. Mas tem shows que vendemos muitos discos, sinto que as pessoas sentem falta”, diz o músico, que no ano passado lançou o álbum Música Para Cordas em CD pelo Selo Sesc. “Gosto dos formatos físicos, gosto do projeto gráfico, das informações. Me incomoda profundamente o fato do streaming não conter informações básicas sobre as músicas — quem produziu, onde foi gravado, quem tocou, quem fez o backing vocal, a mixagem. Acho que isso empobrece a indústria musical.”

O também pianista Hércules Gomes, mais inclinado para o choro com formação clássica, argumenta que o público de música tradicional e instrumental tem um maior apreço pelo físico. “Meu alcance nas plataformas de streaming não é tão grande. O tipo de música que eu faço, que é muito virado para a música brasileira e, especialmente, para a música brasileira mais tradicional, as pessoas que ouvem ainda compram CDs.”

Ele admite, porém, que a ausência das plataformas digitais têm sido cada vez mais dificultada. “As pessoas não vão mais procurar sua arte direto nos CDs, procuram primeiro no YouTube, no Facebook, no Instagram.”

Apesar de estar na frente, o streaming ainda não encontrou uma forma de disponibilizar a ficha técnica completa de álbuns musicais | Foto: Nilton Silva

Há quem discorde. Em dezembro de 2019, o rapper inglês JME lançou seu quarto álbum de estúdio, Grime MC, somente em vinil e CD. “Na minha opinião, música é arte. E arte não tem um lugar fixo. Nos contaram que, se você fizer música, ela tem que estar em plataformas de streaming porque é o lugar delas, mas quando eu faço minha música eu não acho que ela deveria estar lá”, explicou o MC em entrevista ao canal do YouTube SKVIBEMAKER. “Streaming é para todos, mas meu álbum não é para todos.”

Em janeiro de 2020, ele disponibilizou o álbum para compra digital no iTunes e Google Play. Grime MC ainda não se encontra disponível em plataformas de streaming.

Um rapper brasileiro cuja página em plataformas de streaming também é quase totalmente vazia, ocupada apenas por participações em músicas de terceiros, é o carioca MC Marechal. Conhecido na cena do rap nacional por nunca ter lançado um álbum, apesar de sua longa carreira em batalhas de rima e do respeito e admiração direcionados a ele por colegas MCs, o rapper diz não acreditar formato como maneira definitiva de mostrar sua arte. “Todo dia faço música, independente de disco”, diz o MC. “A música que eu pratico nem sempre se encaixa em uma grande estrutura.”

Apesar de enxergar a importância de estar presente no maior número de plataformas e lugares possíveis, Marechal diz que há prós e contras no streaming e acredita que seus fãs o seguirão onde ele estiver. “As pessoas que buscam música sempre vão achar”, finaliza.

Amanda Cavalcanti é repórter e apresentadora. Trabalhou na VICE Brasil por três anos, cobrindo principalmente música, mas também política, arte e diversidade. Já publicou na Folha de S. Paulo e UOL e apresentou o primeiro episódio de “Música Pelo Brasil”, série de vídeos do Spotify Brasil sobre ritmos populares. Foi indicada ao prêmio de Melhor Jornalista pelo Women’s Music Event em 2018

ilustração por Cecilia Marins — Jornalista e quadrinista, é autora da reportagem em HQ “Parque das Luzes”, que conta histórias de mulheres em situação de prostituição no Parque da Luz, no centro de São Paulo. Já teve seus trabalhos publicados na Veja SP, A Tribuna, Cláudia, TV Gazeta e Catraca Livre.

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