A Maldita que entrou para a história

Editor da Zumbido
Zumbido
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11 min readJun 1, 2022

O oásis radiofônico que marcou uma geração nos anos 1980 e foi pioneiro da “rádio rock”. Por Fabiane Pereira

Ilustração em xilogravura traz um apanhado de fitas K7 empilhadas. O fundo é preto e as fitas são brancas. A arte é de Fernando Mariano.
Ilustração: Xiloceasa/Fernando Mariano

A história do rádio no Brasil começa, oficialmente, em 7 de setembro de 1922, com a transmissão da fala do presidente Epitácio Pessoa em comemoração ao centenário da Independência do país — ocasião em que aparelhos receptores foram espalhados pelo pavilhão de exposição na cidade do Rio de Janeiro e por locais estratégicos em São Paulo, Petrópolis e Niterói.

Desde sua implantação, o rádio consolidou-se como um importante veículo de comunicação de massa, criando formas específicas de linguagem e de interação com o público/ouvinte, com particularidades nacionais, regionais, locais e até mesmo variando de emissora pra emissora. Por se tratar de um instrumento de baixo custo, acessível, pequeno porte e programações diversificadas, o rádio exerce grande influência na vida diária das pessoas, estejam elas nas metrópoles ou em áreas rurais. É bem verdade que o rádio precisou se adaptar às exigências contemporâneas, mas seu valor simbólico não se perdeu, nem foi substituído por novas mídias.

Segundo uma pesquisa recente, feita pela Trust in the Media, da Ipsos, o Brasil é o sexto país que mais confia no conteúdo produzido na televisão e no rádio. Mesmo na era da internet, o hábito de consumir conteúdos em áudio não é restrito aos deslocamentos feitos de carro. De acordo com o Inside Radio 2021, estudo realizado pela Kantar IBOPE Media, o rádio é consumido por 80% dos brasileiros. Ou seja, três a cada cinco brasileiros ouvem rádio todos os dias.

“Nos primeiros anos de operação, a rádio transmitia corridas de cavalo e uma programação sem qualquer curadoria.”

Se ainda hoje esses números impressionam, imagine no início dos anos 70, quando o Brasil passava pelo mais duro período da ditadura militar? Os Atos Institucionais impostos pelos militares interferiram diretamente nas programações: o rádio AM foi incluído entre as instituições que faziam parte de um grande esquema de censura e manipulação ideológica, sendo considerado subversivo. Em contrapartida, o A.I. 5 investiu no surgimento do rádio FM, especialmente nas capitais e regiões metropolitanas. Isso porque as FM’s seguiam o formato musical, logo não eram uma ameaça iminente de ataques contra o governo. Foi nessa época que se consolidou que o rádio AM era falado e o FM, musical.

Estávamos nos anos 70 e o rádio FM ganhava força entre os mais jovens. A rádio Fluminense FM, por exemplo, foi inaugurada em 1972 e pertencia ao Grupo O Fluminense de Comunicação. Nos primeiros anos de operação, a rádio transmitia corridas de cavalo e uma programação sem qualquer curadoria. Neste mesmo período, o perfil “rádio rock” de caráter experimental, feito pelas rádios Eldorado FM e Excelsor FM já dava bons sinais de aceitação. Assim como o perfil pop eclético, predominantemente festivo, lançado pela rádio Cidade do Rio de Janeiro em 1977.

Foi num contexto de expressivas mudanças no perfil do país provocadas pelo avanço tecnológico e pela situação política mundial, que a direção da rádio Fluminense FM decidiu reestruturar sua programação apostando numa ideia juvenil do jornalista Luiz Antônio Mello. Nascia em Niterói, cidade vizinha ao Rio de Janeiro, uma emissora que entrou para a história da comunicação brasileira ao escancarar de vez as transmissões direcionadas a ouvintes segmentados.

Recorte de jornal trazendo um relato sobre o nascimento da Fluminense FM | Imagem: Reprodução/Noize

A ideia de uma rádio segmentada e rock’n’roll veio de uma conversa entre Luiz Antônio Mello e o jornalista Samuel Wainer Filho. Samuca, apelido de Wainer, não pode dar prosseguimento a ideia porque na época já estava comprometido com outros projetos. Coube a Mello e aos produtores Sergio Vasconcellos e Amaury Santos executarem o projeto. O trio, então com vinte e poucos anos, era frequentador de sebos e lojas de discos, acumulador de fita K-7 e fã de rock, características que explicam a dedicação ao projeto e a criação de um produto que atravessou gerações e mudou, de certa forma, as regras impostas pelo mercado da música na época.

Inúmeros são os motivos para a rádio Fluminense FM ter se tornado inesquecível. A emissora teve papel fundamental na formação da história do rock nacional, além de ter sido pioneira, ousada, segmentada e feminista. A Maldita foi a primeira rádio a colocar no ar um time inteiramente feminino para fazer a locução de seus programas. “Já que a programação era pesada, precisávamos de vozes suaves para anunciá-la”, recorda Luiz Antônio Mello.

“Praticamente todas as locutoras da rádio encaravam o microfone pela primeira vez quando começaram a trabalhar na Fluminense e isso revolucionou a estrutura das rádios pela linguagem irreverente e ousadia informal.”

Ao romper com o esquema de locutores masculinos, a Fluminense FM escalou um time com fala mais sóbria e tranquila, sem gírias e, especialmente, sem “vícios radiofônicos” como falar em cima das músicas. Como ressalta, com razão, a locutora Monika Venerabile, em matéria publicada no Jornal O Fluminense em 2015, a Fluminense FM “criou uma nova geração de garotas que falavam no rádio, porque, até então, só meninas com voz sexy, tipo rádio de motel, faziam locução”. Além de Monikinha, apelido que ganhou dos ouvintes, outras mulheres passaram a ocupar o microfone da emissora inaugurada em 1º de março de 1982.

Foi a voz da locutora Selma Boiron, na época ainda dando seus primeiros passos na profissão, que saudou os ouvintes às seis da manhã. Antes dela, a voz da jornalista Mylena Ciribelli, que durante anos foi a oficial da rádio, surgiu numa vinheta. Praticamente todas as locutoras da rádio encaravam o microfone pela primeira vez quando começaram a trabalhar na Fluminense e isso revolucionou a estrutura das rádios pela linguagem irreverente e ousadia informal.

Registro das locutoras da Fluminense FM: Selma Boiron, Edna Mayo, Liliane Yusim, Cristina, Selma Vieira e Monika Venerabile (da esq. para dir.) | Imagem: Reprodução/Blog do Jama

Com uma programação inteira dedicada ao rock, privilegiando o trabalho autoral de novos artistas, a rádio Fluminense FM era uma espécie de oásis radiofônico para uma juventude que queria algo diferente no fim da ditadura militar. Bandas boas e ruins se ouviram pela primeira vez no rádio graças as portas abertas da emissora.

Luiz Antônio Mello, em entrevista à Revista Statto, conta como foi sendo formado o acervo da rádio. “Nós abrimos a rádio pra fitas cassete, ou seja, as bandas nacionais podiam levar suas fitas cassetes e quando eram aprovadas elas entravam no ar. Essa foi a maneira de termos acervo de rock nacional que não existia na época. Produtores como o Maurício Valadares também trazia as novidades de fora do Brasil, especialmente da Inglaterra, músicas de selos e bandas de lá. Além disso, muito ouvinte levava discos raros pra rádio. Ouvintes que viajavam e colaboravam com a rádio que eles amavam ouvir. Então tivemos um grande conluio de ouvintes, produtores e nosso material pessoal”.

“Uma rádio que abre espaço para os malditos, se torna uma rádio maldita.”

Numa época sem internet e, consequentemente, sem redes sociais, os artistas dependiam da influência das gravadoras para chegarem ao público. Como a maioria dos artistas que tocava rock nessa época não era contratado de nenhuma gravadora, a emissora — que sempre operou na frequência de 94,9 MHZ — tornou-se a principal voz de bandas desconhecidas e ainda formou uma geração de ouvintes ávidos por ouvir rock nas rádios.

A onda pioneira da Fluminense FM só teve relevância após se transformar numa rádio independente de “rock, blues, instrumentais brasileiros e afins”, nas palavras de Mello, que além de idealizador do conceito do projeto, é também autor do livro “A onda maldita” (1992), que motivou a diretora Tetê Mattos a realizar o documentário sobre a FM em parceria com Allan Ribeiro.

Tradicionalmente, a cultura maldita é aquela que se expressa de maneira contrária à arte comercialmente padronizada [e exibida] na mídia. Ao optar por um repertório musical de rock, blues e tendências híbridas de rock com MPB (incluindo os chamados ‘malditos’), jazz, reggae, eletrônico, lados B de compactos, gravações demo, músicas instrumentais e canções longas de rock progressivo, logo a Fluminense FM ganhou o apelido de ‘maldita’. “A cultura maldita é aquela que não é reconhecida pelo mainstream ou esquemão. Uma rádio que abre espaço para os malditos, se torna uma rádio maldita”, relembra Sergio Vasconcellos no documentário “A Maldita”, de Tetê Mattos.

Ilustração: Xiloceasa/Fernando Mariano

Com estrutura técnica precária (a ponto de deixar chiados quando saía do ar) e operando sempre no vermelho por não veicular anúncios, os estúdios da Fluminense FM ficavam em frente à rodoviária de Niterói e a rádio não tinha luxos. Sua equipe diminuta sofria com baixos salários e poucos recursos. Algumas apresentações realizadas no estúdio (inclusive com artistas internacionais, como Steve Hackett) não puderam sequer ser gravadas por falta de fita. Outras foram gravadas e apagadas posteriormente para que a fita fosse usada de novo. Mas ainda assim, a rádio foi a primeira a tocar músicas das bandas Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Kid Abelha, Biquini Cavadão, Blitz e de muitos outros artistas que, anos depois, passaram a fazer parte da geração BRock. Bi Ribeiro, dos Paralamas, já disse em entrevista que a banda só assinou contrato com a gravadora porque suas músicas tocavam na Maldita. Ter uma demo tocada na rádio era atestado de qualidade e todos queriam a chancela da Maldita.

“A Maldita tocava uma média de 290 músicas por dia e não repetia música.”

A emissora também abriu espaço para a vanguarda paulistana. As bandas Língua de Trapo e Rumo (do hit radiofônico maldito “Carnaval do Geraldo”), o cantor e compositor Arrigo Barnabé eram artistas que faziam parte da grade de programação da rádio.

A Maldita tocava uma média de 290 músicas por dia e não repetia música. Já as emissoras mais populares tocavam entre 50 e 70 músicas por dia e, muitas vezes, repetia a mesma faixa três ou quatro vezes. Mais do que tocar músicas, a emissora criou uma geração de novos ouvintes, formou plateias, impulsionou carreiras e proporcionou uma ampliação cultural. Fazer do ouvinte o grande programador musical da rádio e alavancar carreiras de artistas iniciantes foram os grandes traços de originalidades da rádio.

As centenas de cartas dos ouvintes que chegavam semanalmente incluíam agradecimentos à emissora, pedidos para que a programação tocasse mais blues, bandas como Led Zeppelin e Água Brava — este último, um grupo de hard rock que virou xodó da emissora, e que só gravou um único single, em 1983 — e também exigiam que a Fluminense FM deixasse de tocar o que eles consideravam pop.

Ilustração abstrata traz uma mescla de desenhos que emulam frequências de ondas nas cores lilás e vermelha em larguras diferentes. A arte é de Fernando Mariano.
Ilustração: Xiloceasa/Fernando Mariano

Em entrevista ao canal Papo de Música, no Youtube, o rapper B.Negão relembra a importância da rádio Fluminense para sua formação e para a conscientização cultural de sua geração. “A Fluminense FM e o Circo Voador são fundamentais para minha formação artística. A rádio promovia os shows que rolavam no Circo. Muitos, como eu, não tinham dinheiro para comprar ingressos pros shows mas éramos ouvintes assíduos e tínhamos telefone em casa, então ligávamos pra rádio e participávamos das promoções. Inúmeras vezes eu atravessei a ponte pra ir até a rádio, pegar o ingresso e ir direto pro show. Eu devo muito a estas duas instituições”, relembra. “A formação cultural que a rádio proporcionou para minha geração foi muito além do rock”, completa o artista.

“O engajamento desta época não era digital, mas poderia atrair uma multidão.”

As promoções da Fluminense FM, citada por B.Negão, não eram apenas com convites para shows. Algumas causaram tumultos reais. O engajamento desta época não era digital, mas poderia atrair uma multidão. Um dos casos mais emblemáticos envolvendo uma promoção da rádio foi numa distribuição de camisetas da banda Adam and The Ants. Num domingo aleatório, após um mês no ar, a rádio resolveu pedir aos ouvintes para encontrar o carro da emissora na praia do Arpoador. Eles deveriam levar formigas se quisessem ganhar camisetas promocionais da banda inglesa. Sem ter a mínima ideia da própria audiência, a pequena equipe da Fluminense não imaginava que centenas de pessoas carregadas de potes com os insetos chegariam no Arpoador e tentariam virar o carro para pegar as camisetas prometidas. Uma confusão generalizada.

As histórias são inúmeras. Reza a lenda que numa madrugada, Luiz Antônio Mello foi acordado por um telefonema do operador da rádio que dizia que um sujeito estava ligando insistentemente pra emissora perguntando se poderia recitar uma poesia. Mello autorizou. O sujeito passou uma hora lendo versos ao vivo no ar. O poeta era Renato Russo, ainda anônimo na época.

A Legião Urbana em visita à rádio em 1987 — Renato Russo, Renato Rocha e Marcelo Bonfá (da esq. para dir.)| Imagem: Daniel/Blog do Jama

Apesar da expressiva popularidade, o sinal radiofônico da Fluminense era ínfimo frente à capacidade de capilarização da sua história. Poucos lugares em Niterói e na cidade do Rio de Janeiro recebiam o sinal sem ruídos. Além disso, como já declarou Luiz Antônio Mello, “rádios ousadas não são entendidas pelo mercado publicitário que tende a ser conservador”. A partir de 1985, a emissora que já tinha muitos problemas financeiros passou a sofrer também com a concorrência das rádios Cidade e Transamérica.

Em 1990, numa tentativa de se manter no dial, a Fluminense FM se rende e torna-se uma rádio pop. Esta fase durou apenas um ano e em 1991, a emissora volta para o rock, porém em vez de seguir a linha marcante da primeira metade dos anos 80, a Fluminense FM adota um rock mais palatável e comercial.

A Fluminense FM, entre 1982 e 1984, foi a ponta-de-lança que catapultou o incipiente rock nacional autoral dos anos 80 e liderou um movimento que obrigou a concorrência a seguir de perto. Durou pouco, mas abriu o caminho para que duas rádios paulistas, a Pool FM (que se transformaria em 89 FM) e a 97 FM, de Santo André, mergulhassem fundo no rock e se tornassem referências nacionais.

Em 1994, a Maldita sai do ar definitivamente sob protestos ruidosos dos ouvintes. No dia 30 de setembro, os 94.9 FM encerram sua bem sucedida trajetória e entram definitivamente para a história do rádio brasileiro como uma das mais importantes emissoras do país. Vale dizer que rádio é, por premissa, “prestação de serviço” e poucas emissoras no país prestaram um serviço tão relevante para a formação cultural da sociedade quanto a Fluminense FM.

Fabiane Pereira é jornalista e radialista. Há mais de uma década se dedica ao estudo e a curadoria da música brasileira contemporânea. Apresentadora e idealizadora do canal Papo de Música no YouTube, e dos programas Faro e Rádio Retrato transmitidos pela Nova Brasil FM. Pós-graduada em “Jornalismo Cultural” e Mestre em “Comunicação, Cultura e Tecnologia da Informação” pelo Instituto Universitário de Lisboa (Portugal), Fabiane levou o prêmio de Melhor Jornalista de Música do Ano pelo WME Awards, em 2019 e em 2021.

Ilustração por Fernando MarianoXiloceasa, do Instituto Acaia, é um grupo formado em 2005 por adolescentes da oficina de xilogravura que na sua maioria residiam nas redondezas da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (CEAGESP).

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