A presença feminina nos festivais brasileiros de 2016 a 2018

Editor da Zumbido
Zumbido
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8 min readJul 5, 2019

Levantamento demonstra pouco crescimento da participação feminina no line up de festivais de música nos últimos anos

Layla Leonel Arruda (Feminine Hi-Fi) no Festival Coala 2018 | Foto: Helena Yoshioka/I Hate Flash

No segundo semestre de 2018 Beyoncé foi a primeira afro americana a ter destaque na programação do famoso festival estadunidense Coachella. Ela teria feito ainda mais história no ano anterior, quando recebeu o convite pela primeira vez, mas devido a sua gestação o bastão foi passado para Lady Gaga, que foi a primeira mulher, em 10 anos, a ocupar uma posição de destaque no cartaz e na programação do festival.

O Coachella é um festival grandioso e que possui extremo apelo midiático dentro e fora dos EUA. Portanto, para muitos, chega a ser difícil imaginar que um evento desse porte não estivesse colocando mulheres em posição de headliner há dez anos (em 1997, Björk ocupou este lugar).

Entretanto, essa desatenção diante as artistas do momento, não se reserva ao Coachella somente. Basta passarmos o olho de maneira mais clínica em centenas de cartazes de programação ao redor do mundo, para que a gente note a tímida, ou quase nula, presença feminina dentro desses lugares.

É importante ressaltar e contextualizar que toda dinâmica que o mercado musical opera ainda hoje é reflexo fiel da nossa sociedade patriarcal, que ao longo de centenas de anos ignorou a mulher nos espaços que acreditavam ser de exclusividade masculina. Do ponto de vista histórico da música essa premissa também não se altera.

Beychella: Beyoncé como headliner do festival Coachella em 2018 | Foto: TMZ

As mulheres nos festivais

Em 2018, o site Pitchfork analisou de maneira bem profunda 20 grandes festivais dentro dos EUA para verificar a participação feminina nos lineups comparando os anos de 2017 e 2018. Dentre todos os dados obtidos por eles, foi possível perceber, dentro daqueles festivais, que a presença feminina passou de 14% para 19%. Um número bem tímido ainda e que, segundo o site, deve ser olhado com mais cuidado e atenção.

Na América Latina, a produtora e plataforma de conteúdo argentina Ruidosa criou um estudo muito semelhante ao realizado pela Pitchfork. Porém, o recorte foi feito para quatro países (Chile, Argentina, México e Colômbia). Foram analisadas as programações de 66 festivais entre os anos de 2016 e 2018. Por lá, o crescimento aconteceu também, mas o 50/50 ainda é distante.

Hoje, o estudo da Ruidosa está dentro do congresso argentino, sendo usado como base para a Lei Mercedes Sosa. Uma medida criada para assegurar uma cota de 30% de participação feminina em festivais e eventos de música ao vivo na Argentina.

No Brasil

Por aqui foram considerados festivais multigêneros, ou seja, que contemplassem pelo menos mais de um gênero musical, e que possuíssem apelo de público e de mídia, os dados a seguir possuem o objetivo de auxiliar na reflexão sobre a presença feminina em festivais brasileiros. Para isso, foram analisadas 1972 bandas e artistas* presentes nas programações de 76 festivais entre os anos de 2016 e 2018.

Observando na amplitude é possível notar que ao longo desses três anos a participação de mulheres (estamos considerando solistas e bandas compostas somente por mulheres) não ultrapassa a margem de 20% em cada um dos anos: 15% em 2016, 15% em 2017 e 20% em 2018. Se considerarmos as bandas mistas (onde consta pelo menos uma mulher) esses números podem chegar até 30%. Ainda que isso demonstre um crescimento, quando analisamos de maneira isolada os festivais, alguns não saem do 0%.

Os números mostram também que, quanto maior a tendência do festival em dar ênfase a um gênero musical somente, os números apenas diminuem e chegam a ser nulos. Por exemplo, festivais direcionados mais ao rock e suas vertentes.

Podemos notar que o festival Abril Pro Rock, pioneiro na região nordeste, no que diz respeito a valorização da produção musical independente, ano passado não teve nenhuma mulher solista e nos últimos três anos não teve nenhuma representante feminina em sua programação como atração principal. O mesmo ocorre com o festival Goiania Noise e Porão do Rock. O que os três possuem em comum são nascimentos pautados em um gênero musical, ainda que atualmente abarquem outras sonoridades em suas programações.

Nos festivais Vaca Amarela e Cena Cerrado a participação de mulheres solistas não passou dos 6%.

O Popload Gig foi o festival analisado com a maior representatividade feminina. Neste caso, vale destacar que o Popload, no período em questão, deu ênfase muito mais a mulheres em carreiras solos e bandas mistas.

O Vento Festival foi criado por duas mulheres, as sócias Tatiana Sobral e Anna Penteado. Ana também é curadora da programação. Essa exceção, se comparado aos outros festivais analisados, rendeu um lineup que conseguiu chegar ao 41% de representatividade feminina.

Nenhum dos 76 festivais alcançaram o 50/50 de equidade de gênero. Foi possível perceber também que apesar de alguns números otimistas de avanços, as bandas compostas somente por mulheres não passam dos 10% e mulheres como atrações principais e destaque também são bem raras nas comunicações visuais.

Xênia França no Vento Festival | Foto: Divulgação/Facebook — Vento Festival

Estamos apenas no início

Importante destacar os festivais Bananada (GO) e CoMa (DF) onde existiu um crescimento significativo ao longo das edições analisadas. Principalmente na inserção de artistas renomadas de diferentes escalas do mercado como atração principal de algumas de suas noites.

Outro festival interessante e com grandes mulheres em carreira solo na cabeça do festival é o FIG — Festival de Inverno de Garanhuns. Em contraponto, não ele não possui em sua programação tanto espaço para bandas femininas ou mistas.

Semelhante as edições do Chile e da Argentina, a nossa versão do festival Lollapalooza ao longo desses três anos teve um crescimento bem significativo da participação feminina, ainda que esses números não contemplem tanto artistas brasileiras.

Em 2016 a cantora e compositora Karol Conka foi a única artista brasileira solista dentro da programação do festival. No ano seguinte foi a vez de Céu e, finalmente, ano passado pudemos ver pelo menos quatro destaques, foram Jesuton, Mallu Magalhães, Tiê e Mahmundi. Frisando que nenhuma dessas artistas citadas foram destaque como headliner do festival.

Nos festivais nacionais tivemos casos agudos de falta de representatividade também, quando em 2017 a cantora e compositora Pitty foi a única mulher dentro de toda a programação do festival João Rock (SP). Nesse mesmo ano, no sul do país, Anitta foi a única mulher na programação do Planeta Atlântida (RS).

Em 2017 Pitty foi a única mulher dentro de toda a programação do festival João Rock (SP) | Foto: Igor do Vale/G1

Problema estrutural?

É importante entender que a carência de representatividade feminina nestes eventos surge da raiz da estrutura do mercado musical. Que, historicamente, é operado através das mãos e decisões de homens, em sua grande maioria.

Por isso, iniciativas que visam a representatividade feminina dentro do mercado musical são cada vez mais necessárias e essenciais. Seja no âmbito da educação musical ou incentivando e empoderando essas artistas a performarem ao vivo.

Negar o espaço da mulher dentro do ambiente artístico, criativo e técnico nos coloca e mantém no lugar da invisibilidade. Algo histórico, mas totalmente reversível.

*Metodologia

Este estudo foi inspirado na mesma linha analítica e metodológica da Ruidosa, realizado ano passado em países da América Latina.

Foram selecionados 76 festivais de diferentes portes e públicos. Os festivais multigênero foram prioridade. Foi feito o possível para analisar sempre os mesmos festivais, porém alguns não foram realizados em alguns dos anos.
Os lineups foram retirados das redes dos festivais e também informe de imprensa. Os 1972 artistas foram divididos em três categorias: mulheres solistas ou bandas compostas somente por mulheres; homens solistas ou bandas compostas somente por homens; e bandas mistas (onde existia pelo menos uma mulher na formação). Com estes dados foram calculadas as porcentagens de participação feminina por festival, categoria e ano. Foi levada em consideração todos os horários dos festivais e não somente palcos ou horários principais. Dentro desse estudo foram contabilizados somente artistas da música. Outras linguagens artísticas não foram consideradas.

As classificações de gênero foram feitas a partir de como cada artista se identifica e se comunica em suas redes oficiais. Ainda que este recurso não seja critério para determinar tal coisa, foi feito o possível para se respeitar ao máximo as identidades de gêneros (artistas trans foram consideradas mulheres).

Não foram considerados grupos artísticos identificados como: bloco, maracatus, coco, ou qualquer outro que não tenha sido possível identificar os integrantes por meio de sites, redes e etc.

Lista dos festivais

2016: Abril Pro Rock, Bananada, Coala Festival, FEBRE, Festival BR 135, Festival de Inverno de Garanhuns, Festival de Verão de Salvador, Festival Do Sol, Festival Forró da Lua Cheia, Goiania Noise, João Rock, Lollapalooza Brasil, Mada, Morrostock, No Ar Coquetel Molotov, Planeta Atlântida, Popload Festival, Porão do Rock, Psicodália, Rec Beat, Se Rasgum, Vaca Amarela e Vento Festival: 23.

2017: Abril Pro Rock, Bananada, Coala Festival, Coolritiba, FEBRE, Feira Noise Festival, Festival BR 135, CoMa, Festival de Inverno de Garanhuns, Festival de Verão de Salvador, Festival Do Sol, Festival Forró da Lua Cheia, Goiania Noise, João Rock, Lollapalooza Brasil, Mada, Morrostock, No Ar Coquetel Molotov, Planeta Atlântida, Popload Festival, Porão do Rock, Psicodália, Rec Beat, Se Rasgum, Vaca Amarela e Vento Festival: 26.

2018: Abril Pro Rock, Bananada, Cena Cerrado, Coala Festival, Coolritiba, FEBRE, Feira Noise Festival, Festival BR 135, CoMa, Festival de Inverno de Garanhuns, Festival de Verão de Salvador, Festival Do Sol, Festival Forró da Lua Cheia, Goiania Noise, João Rock, Lollapalooza Brasil, Mada, Morrostock, No Ar Coquetel Molotov, Planeta Atlântida, Popload Festival, Porão do Rock, Psicodália, Rec Beat, Se Rasgum, Vaca Amarela e Vento Festival: 27.

Thabata Lima Arruda está em contato com a música de maneira profissional há 16 anos. Em um primeiro momento como coralista e mais tarde migrando para a área de produção cultural e executiva. Licenciada em Geografia, através da UFScar (Universidade Federal de São Carlos — Sorocaba), antes realizou, durante 8 anos, seus estudos em canto-coral no Conservatório Municipal Maestro Henrique Castellari — Salto/SP. Como produtora cultural e executiva desenvolveu projetos (festivais, shows, sessões de cineclube e palestras) em parceria com entidades públicas e privadas, planejou e coordenou pequenas turnês com bandas independentes de cidades como São Paulo (SP), Porto Alegre (RS), Santa Fé (ARG), Córdoba (ARG), Pelotas (RS), Santo André (SP), Londrina (PR), entre outras. Atualmente é curadora musical dentro da startup 2DL e fundadora da marca de lifestyle e merch para artistas: Ouça Música Independente.

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