Belchior, hoje.

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Zumbido
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33 min readNov 3, 2021

75 anos de sonho, sangue e América do Sul. De 1980 aos dias atuais, em que estado se encontra a arte do rapaz latino americano

Belchior por Mario Luiz Thompson | Foto: Mario Luiz Thompson/Imagem gentilmente cedida por Hernan Herrero

O cantor e compositor cearense Belchior completaria 75 anos na última terça-feira, 26 de outubro de 2021.

Antonio Carlos Belchior, seu nome de batismo, faleceu aos 70 anos, no dia 30 de abril de 2017, em decorrência de um rompimento da aorta. O artista residia com a companheira, Edna Araújo, e faleceu durante a noite, no sofá da casa em Santa Cruz do Sul (RS), onde passou os últimos anos de sua vida.

No momento de sua morte, o interesse pela obra de Belchior já vinha em um movimento crescente, que só aumentou nos últimos anos. Sua vida foi tema de livros biográficos e, a partir deste ano, deve ganhar as telas, com produções documentais e de ficção.

O perfil do artista no Spotify registra 820.781 ouvintes mensais e, na plataforma Deezer, é seguido por 302.312 fãs*. Sua discografia foi, em grande parte, remasterizada e disponibilizada nas plataformas de streaming, mas ainda existem lacunas. O álbum autoral Cenas do Próximo Capítulo (1984), por exemplo, lançado de forma independente, ainda não foi disponibilizado.

“Meu primeiro esforço foi fazer um estudo, uma pesquisa e um levantamento de toda obra. Fiz um compilado de tudo e gostaria de conseguir dar acesso a alguns trabalhos que hoje não estão disponíveis”, explica Mikael Henman Belchior, segundo filho do casamento de Belchior com Angela Henman.

O trabalho de pesquisa e catalogação de Mikael foi realizado entre dezembro de 2011 e outubro de 2021. De acordo com esse levantamento, Belchior deixou 213 músicas escritas, sendo que gravou sua própria versão para 143 delas e teve 101 canções gravadas por terceiros.

Ao longo de sua carreira, o compositor gravou 292 fonogramas, sendo 252 de obras próprias e 40 de outros artistas.

O período com maior quantidade de lançamentos de músicas inéditas foram as décadas de 1970 (50 músicas) e 1980 (44 músicas). A década de 1990, foi marcada por regravações, e o período em que o artista teve o maior número de fonogramas.

Das 213 composições originais, 88 foram feitas em co-autoria, com 34 parceiros diferentes. O músico e compositor Jorge Mello, assina com Belchior 20 composições. “Isso pra mim é uma glória porque me torna, em número de obras, o maior parceiro deste grande artista. E eu, como amigo, sou um fã”.

Amigo, fã e co-autor de diversas canções de Belchior, Jorge Mello reúne um acervo considerável sobre o artista | Fotos: Vanessa Nicolav

Músicas inéditas

Além das 213 músicas que compõem a obra de Belchior, segundo a catalogação feita por Mikael, há 32 letras que nunca foram gravadas, e estão em processo de pesquisa e catalogação.

Apesar de não terem sido registradas em fonograma, ele aponta que parte delas foi registrada por Belchior em editoras, e algumas chegaram a ser apresentadas em shows na voz do compositor.

Os originais dessas composições foram guardados ao longo das décadas no acervo de Jorge Mello.

“Ele sempre dava a mim para ver todos os seus escritos, eu fui o primeiro a pôr os olhos em toda a obra dele e eu as tenho, todas as letras, escritas à mão por ele”, conta.

— Jorgão, rapaz, datilografa pra mim e dá uma olhada nisso aqui, pedia Belchior.

“Ele voltava e eu tinha dado a ele a cópia datilografada e fiquei no meu acervo com o material assinado por ele e as observações de cada palavra que ele mudou. Quantas letras ele riscou, tal palavra para botar outra. Quantas vezes ele botava entre parênteses, se era essa ou aquela”, explica.

“É preciso considerar que Belchior começou a fazer letras muito cedo. As seis primeiras letras usadas no teatro eram primárias, considerando a riqueza poética e textual do futuro trabalho dele.”

Com 73 anos, o músico natural de Piripiri (PI) assina a parceria em 6 dessas composições que nunca foram gravadas. São músicas compostas como trilha para a montagem de 1971 do espetáculo teatral O Morro do Ouro. Os originais dessas letras foram publicados no Cancioneiro Belchior, lançado em 2019.

Organizado pelo professor José Gomes Neto em parceria com Belchior, ao longo de quase 20 anos, a publicação tem prefácio e edição de Jorge Mello.

“Foi um trabalho de gabinete: era muito comum ter a mesma letra com gravações diferentes, era preciso estabelecer qual era a versão da letra de autoria do Belchior”, conta Gomes Neto.

Cartaz da estreia da peça “O Môrro do Ouro” em Fortaleza | Imagem: Reprodução/Teatro Volume II/Casa de Jorge Alencar, 1999

A peça O Morro do Ouro, escrita por Eduardo Campos, foi encenada pela primeira vez em 1963 no Teatro José Alencar de Fortaleza, com direção de Haroldo Serra.

Na montagem de 1971, ainda na capital cearense, a peça teve nove músicas compostas para a trilha sonora, três com letra e música de Jorge Mello e outras seis com letra de Belchior e musicadas pelo parceiro.

Porque Choras, Madalena?, primeira parceria da dupla, data de maio de 1968. Foram escritas ainda para a peça Cobalto, É Vitamina, Garotas da Aldeota, O Colorido da Pobreza e Pílula.

Por serem as primeiras canções escritas por Belchior, registradas em editora, foram incluídas em seu cancioneiro, por seu valor histórico e documental.

“É preciso considerar que Belchior começou a fazer letras muito cedo. As seis primeiras letras usadas no teatro eram primárias, considerando a riqueza poética e textual do futuro trabalho dele”, avalia Gomes Neto.

Em agosto deste ano, o jornalista e pesquisador musical Renato Vieira encontrou nos arquivos da Ditadura Militar no Arquivo Nacional, sete das letras inéditas de Belchior. As composições haviam sido enviadas para a Divisão de Censura de Diversões Públicas do governo federal entre 1971 e 1979: Adivinha, Alazão, Baião de Dois Vinte e Dois, Bip Bip, Fim do Mundo, Outras constelações e Posto em Sossego.

Os originais dessas letras também estão guardados no acervo de Mello, e Bip Bip aparece registrada no Cancioneiro Belchior. Enviadas para a censura, as músicas foram liberadas, mas não gravadas.

“O fato de terem sido mandadas para a censura mostra que ele tinha intenção de que essas músicas fossem gravadas, por ele ou por outros intérpretes. São da fase do Belchior chegando no eixo Rio-São Paulo e acabaram ficando para trás. Ele teve muita dificuldade pra gravar um LP próprio nesse início”, aponta Vieira.

“É uma descoberta que eu acho muito interessante porque mostra como era a poética e a música do Belchior nesse período, preenche uma lacuna desses primeiros anos dele no Sul do país.”, ressalta.

Entre as letras encontradas no Arquivo Nacional, estão parcerias com Ednardo, Fagner e Fausto Nilo, companheiros de boemia artística de Fortaleza no final da década de 1960.

“Era umas coisas perdidas que a gente fazia ainda no período de buscar resultados”, disse Fausto Nilo, em conversa por telefone. Ele assina a parceria com Belchior nas letras Alazão e Baião de Dois Vinte e Dois. “Eu não lembrava mais, não tenho nada anotado, só lembro vagamente de um pedaço da melodia da Baião de Dois, Alazão eu não lembro a melodia”.

Fausto Nilo estudou com Belchior no Liceu do Ceará no final da década de 1950, onde se tornaram amigos e acompanhou seus primeiros passos como compositor, ainda na Universidade Federal do Ceará, onde se formou em Arquitetura.

Integrante do grupo que se reunia no Diretório Acadêmico e migrava para o Bar do Anísio, começou a escrever suas letras no começo da década de 1970. “Fui retardatário”.

“Eu era do grupo, mas não compunha, nem queria ser cantor. Terminei virando letrista”, conta. Nilo assina com Belchior a canção Nada Como Viver, lançada no disco Objeto Direto (1980).

Angela Ro Ro em show tributo a Belchior em 2017 | Foto: Divulgação/SECULT-PE

O primeiro tributo

Quase três meses após sua morte, em julho de 2017, Belchior foi homenageado no palco principal na abertura do Festival de Inverno de Garanhuns (FIG). Quem encerrou aquela noite de homenagens foi Angela Ro Ro.

“Convidaram artistas de estilos e idades diversas para fazer uma homenagem, cantar uma ou duas músicas. Angela cantou Paralelas e ficou fantástico, foi incrível”, lembra Mikael Henman Belchior.

A cantora carioca estava com 29 anos quando lançou seu primeiro disco Angela Ro Ro (1979). Belchior lançava naquele momento seu quarto LP, Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo.

O compositor cearense participava de um programa na Rádio Nacional no Rio de Janeiro (RJ), para comentar o disco, quando a cantora entrou no estúdio.

“Angela tá trazendo essa coisa bonita assim de cantar com a garganta, de cantar from the bottom. Aquele cantar rouco, cantar mesmo com o corpo. Com uma certa rudeza de expressão, com nasalidade, guturalidade, que são qualidades profundamente expressivas”, disse Belchior naquele encontro.

“Eu fico muito emocionada quando eu penso nessa geração engajada com a obra do meu pai de uma forma que a geração dele se engajou.”

Ednardo, amigo pessoal e integrante da geração de artistas que se reuniam no Bar do Anísio em Fortaleza, no final da década de 1960, também se apresentou nesse tributo, assim como outro conterrâneo, Fernando Catatau, expoente da cena independente nos anos 2000 com a banda Cidadão Instigado.

O tributo reuniu 10 artistas sob a direção musical do pernambucano Juliano Arruda, entre eles Lira, Isaar e Tulipa Ruiz.

“O luto demorou bastante, ainda existe, mas ali era tudo muito recente, emoções à flor da pele e foi um festival super lindo e a homenagem que fizeram, a curadoria de artistas, foi excepcional”, recorda Camila Henman Belchior, primeira filha do casamento de Belchior e Angela Henman.

“Foi um momento muito especial pra mim, de começar a enxergar como a obra do meu pai volta a dialogar com as pessoas de uma forma super forte, como ela já fez. A gente começa a pensar nessa questão dos ciclos, que ele mesmo fala nas músicas. Eu fico muito emocionada quando eu penso nessa geração engajada com a obra do meu pai de uma forma que a geração dele se engajou”, reflete Camila.

Belchior se casou com Angela Henman em 1976, após o lançamento de Alucinação. Camila nasceu em dezembro daquele mesmo ano. Mikael nasceu em 1981, entre os discos Objeto Direto (1980) e Paraíso (1982), últimos trabalhos de Belchior na Warner.

“Tudo mexe comigo. Porque mistura todas as emoções, mas acho que esse sentimento, esse reconhecimento e essa procura, acontecem por conta de uma vontade de dar mais sentido para as coisas, de entender a vida e conseguir escapar um pouco do dia a dia”, reflete Mikael sobre o crescente interesse pela obra de Belchior.

As manifestações de fãs que ele presenciou, ao lado do pai, eram pontuais. Alguém que se aproximava pra pedir um abraço, uma foto, uma música.

“Essa admiração e o carinho que as pessoas têm pelo nosso pai surpreende, porque a gente não teve muito contato com isso ao longo da vida, até muito recentemente. Não no nosso dia a dia, como tem sido agora”.

A partir do falecimento de Belchior, Camila e Mikael passaram a lidar de maneira mais próxima com o ambiente artístico do pai. Com a diversidade de projetos sobre a obra e a vida do artista, o contato e o envolvimento com o público tem sido maior.

“A gente está aprendendo. Estamos ainda num processo de inventário, então não é necessariamente que a gente assumiu as coisas, mas as coisas estão acontecendo e, de uma certa forma, estamos aí para ajudar”, explica Camila. “Para nós, o mais importante é sempre a preservação e divulgação da obra e que a imagem dele seja cuidada”, ressalta.

Com longos cabelos e barba, Belchior tocando violão na casa de amigos em 1974 | Foto: Angela Henman Belchior/Acervo Família Henman Belchior

O artista e o cidadão

Nesse contato mais recente com o público de Belchior, que tem se renovado, os filhos e amigos próximos se deparam também com uma dimensão simbólica de sua figura.

“O que pra mim tem mostrado talvez o apego da juventude atual — o novo sempre vem — são as mensagens dele, e talvez a interpretação que se faz hoje dessas mensagens. As interpretações dizem respeito a questões que são politizadas”, aponta José Gomes Neto.

“Como essa obra está sendo lida agora nesse momento de embate político radical, as pessoas expressam suas opiniões embasadas em discursos, usam símbolos para justificarem essas opiniões”, avalia.

“Ah, minha música colocou isso de modo mais nítido possível. Acho o seguinte: sem prática anarquista, não dá pra reformar ou transformar as sociedades. Mesmo nas democracias, existe excesso de poder”.

Entre as características atribuídas ao artista nas redes sociais, sua figura retratada como uma pessoa ligada à militância política, é a que mais causa dissonância entre os amigos.

“Muita gente se refere a esse conteúdo [das letras], como sendo uma coisa política. Eu não acho muito adequado”, aponta Fausto Nilo.

“É uma visão muito pessoal dele, uma bandeira da juventude, mas não a bandeira política da época. Ele era discreto com política. Não era um cara de direita, isso não, mas não era um assunto que ele dedicava muito tempo, se você começasse a conversar com ele”.

José Gomes Neto, que conheceu Belchior na década de 1980 e conviveu com o artista até o momento de sua partida para uma espécie de “autoexílio”, entre 2007 e 2008, compartilha da visão de Fausto Nilo.

“O Belchior era confessadamente um anarquista bem comportado. Não gostava de política, não gostava de poder”.

Em entrevista ao jornal O Pasquim, em 1982, questionado se havia participado do movimento estudantil de 1968, Belchior afirma que sim, “mas de forma alternativa, achando que devia seguir outro rumo”.

“Queria uma experiência anarquista, no sentido mais rígido da palavra, uma experiência desordenadora. Imaginava que podíamos aproveitar a oportunidade do movimento estudantil para ser algo mais que caudatário do movimento político institucional”, afirmou.

O jornalista Ricky perguntou então se o movimento de 1968 seria “como nossos pais”, e Belchior respondeu: “Ah, minha música colocou isso de modo mais nítido possível. Acho o seguinte: sem prática anarquista, não dá pra reformar ou transformar as sociedades. Mesmo nas democracias, existe excesso de poder”.

Um certo estranhamento em relação à imagem que se cria em torno de sua figura, também é compartilhado pelos familiares.

“É uma dimensão mítica, que vem por uma série de razões, mas que meu pai ajudou a cultivar de certa forma”, reflete Camila.

“Pra mim às vezes é complexo entender, até que ponto os comentários são de um nível público e mítico e não necessariamente refletem a pessoa privada, às vezes tem esse desencontro. Muitas vezes as pessoas que ouvem as músicas tem uma sensação ou um entendimento que as letras são literalmente autobiográficas”.

Em entrevista ao jornalista Paulo Simões Filho, em 1977, quando lançava Coração Selvagem, Belchior justificou a opção pela primeira pessoa em suas canções.

“Eu me preocupo em tornar a coisa o mais pessoal possível, uso sempre a primeira pessoa, nas minhas composições, porque acho mais violento, mais cruel, e na medida em que você não se poupa, o efeito sobre o público é muito maior. Agora, isso não deve ser confundido com autobiografia, eu me incluo como personagem da história, sem que, na realidade, aquilo tenha acontecido”.

Mais de 7 mil pessoas passaram pelo velório de Belchior em Fortaleza | Foto: Valdir Almeida

Livros

A biografia Belchior: Apenas Um Rapaz Latino Americano, escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros, foi a primeira publicação que trouxe um panorama mais amplo sobre a vida do artista.

O livro começou a ser escrito por volta de 2015. Sabendo da dificuldade em determinar o paradeiro do artista para fazer qualquer tentativa de contato, Medeiros seguiu com a pesquisa e as entrevistas, com a esperança de que, em algum momento, conseguiria falar com Belchior.

A esperança acabou naquele 30 de abril de 2017. Com os originais do livro já em poder da editora, Medeiros foi cobrir o velório do artista para o portal UOL. Naquele momento, ele se surpreendeu com a quantidade de jovens na faixa de 16 anos de idade, que aguardavam na fila para a última despedida.

Pelo Centro Cultural Dragão do Mar, em Fortaleza (CE), passaram mais de 7 mil pessoas naquele 1º de maio, Dia do Trabalhador. Muitas atravessaram a noite em vigília, cantando as músicas, acompanhadas ao violão.

“Era muita gente, as pessoas sabiam tudo sobre ele, sabiam as músicas, sabiam as letras, sabiam o significado, debatiam. Fiquei ouvindo as pessoas na fila, passei a noite lá, passei a noite acordado”, recorda.

“Hoje eu sei que eram fãs, e os fãs querem acessar o seu ídolo. Eles querem ter a chance de ver o seu ídolo no palco de novo.”

Medeiros enxergava com certo receio o “Volta, Belchior” até aquele momento, considerava folclorizante a até pejorativo em alguns momentos. Depois de acompanhar o velório do artista, ele se deu conta que havia um interesse legítimo por sua obra, por parte de uma nova geração.

“Hoje em dia eu acho que é muito maior do que eu jamais imaginei, eu não tinha noção. Você anda por aí e vê grafites com as frases das músicas dele. É uma coisa maior do que a gente poderia jamais prever”.

Lançada ainda em 2017, a biografia Belchior: Apenas Um Rapaz Latino-Americano jogou luz sobre alguns aspectos da vida do artista até então pouco conhecidos, como a passagem pelo Mosteiro de Guaramiranga, na primeira metade da década de 1960.

“Foi uma coisa inaugural, eu revelei os pontos nevrálgicos da existência dele, até a fuga e o funeral. É evidente que é um trabalho que abre pra você explorar esses pontos, ampliá-los”, avalia.

A jornalista Chris Fuscaldo passou por um processo semelhante. Via com alguma reticência o “Volta, Belchior” naquele primeiro momento, mas percebeu que havia um interesse genuíno pelo trabalho do artista quando começou a escrever o livro Viver é Melhor Que Sonhar: os últimos caminhos de Belchior, lançado este ano.

“Só depois da morte dele que eu fui entender que o ‘Volta Belchior’ já estava tentando abrir este espaço até midiático para ele voltar. Hoje eu sei que eram fãs, e os fãs querem acessar o seu ídolo. Eles querem ter a chance de ver o seu ídolo no palco de novo”.

Uma reportagem sobre a “fuga” de Belchior, publicada na revista Época em 2013 pelo jornalista Marcelo Bortoloti chamou a atenção de Fuscaldo. Com o título A divina tragédia de Belchior, a matéria revelou que o músico estava em Santa Cruz do Sul (RS) e mapeou o trajeto errante do artista naquele período.

“Quando li, eu fiquei encantada com a matéria, porque ela era para mim a mais sensível. É a matéria dele que me inspirou a ter a ideia desse livro”, conta. Chris encontrou-se com Marcelo durante a trajetória acadêmica. Estavam na mesma aula, o professor falou sobre Belchior e ambos se empolgaram na discussão.

No final da conversa, Chris propôs a parceria para fazer o livro. Marcelo tinha uma ideia de roteiro, e os dois se puseram na estrada, seguindo os últimos passos de Belchior.

Silvero Pereira dá voz ao documentário “Belchior, Apenas um Coração Selvagem”, previsto para 2021 | Foto: Ana Pazian

Filmes

A vida e a obra de Belchior está sendo retratada em diferentes produções no audiovisual brasileiro. A primeira a chegar às telas deve ser Belchior, Apenas um Coração Selvagem. Produzido pela Clariô Filmes em parceria com o canal Curta!, o documentário marca a estreia da diretora fluminense Natália Dias e do diretor mineiro Camilo Cavalcanti.

A expectativa é que o filme seja concluído até o final de 2021 e comece a correr os festivais. O projeto começou em 2015 pensado para ser uma série, com a esperança de que pudesse proporcionar um encontro dos realizadores com o artista, e deste com seu público. Com a notícia do falecimento de Belchior, o projeto tomou outro rumo.

“Aquilo foi um choque pra gente. Então decidimos transformar o projeto numa investigação da obra dele, basicamente”, conta Camilo. “A gente fala muito da potência da palavra, da mensagem atemporal, de tudo isso que compõem essa obra potente do Belchior como poeta, escritor, compositor”.

“Não é uma história do personagem em si, mas de como essa mensagem atravessa tempo e gerações. É a força da palavra, esse artesanato com qual ele trata a palavra”, ressalta Natália.

Para destacar o trabalho poético de Belchior, o texto de suas composições aparece no filme separado da música, na voz do ator cearense Silvero Pereira, que ficou conhecido no papel de Lunga em Bacurau (2019).

“A gente pensou em trazer essa poesia através de uma pessoa que pudesse simbolizar muito esse artista, a arte no Brasil, a migração do Belchior, de muitos artistas nordestinos, uma pessoa a frente de seu tempo”, explica Natália.

Os diretores buscaram trazer a visão de Belchior sobre a obra por meio de um garimpo em acervos, tarefa que ficou a cargo da pesquisadora Isabela Mota.

“Ela vai garimpar nessas condições, com a Cinemateca fechada, tudo muito restrito e a gente cavando ali, a Isabela fazendo um trabalho muito minucioso e desafiador de entender o que duas pessoas pensam de uma única coisa”, ressalta Natália.

Durante a produção, Camilo e Natália compartilharam também suas ideias com Paulo Henrique Fontenelle, co-roteirista do documentário. Com base na pesquisa de acervo, decidiram construir a narrativa do filme em primeira pessoa.

“A gente entendeu que ninguém poderia contar melhor a história dele, do que ele mesmo. A gente mergulhou nos arquivos, nas entrevistas dele, em tudo que ele diz sobre a própria carreira, sobre a construção dessas obras, sobre como ele trata a própria palavra”, conta Camilo.

Outra produção audiovisual sobre o artista é um longa-metragem, também documental, tendo como mote o disco Alucinação (1976), escrito e dirigido pelo músico Renato Terra, em parceria com os irmãos Marcos Caetano e Léo Caetano.

A ideia do filme surgiu da relação pessoal que os irmãos Leo e Marcos desenvolveram com o disco, desde a infância na casa dos pais em Madureira, Rio de Janeiro (RJ). “A ideia é usar esse disco como um ponto de partida”, conta.

“A gente vai se basear na estrutura do disco e das músicas para analisar o período e o mundo sob a ótica do Belchior. Falar dos artistas da geração de 70, como o Belchior se relacionava com essas músicas e como ele se relacionava com o mundo”.

A produção, feita em parceria pela Inquietude Filmes, Globo Filmes, Canal Brasil e Muiraquitã Portugal, depende da liberação de alguns processos pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) e está prevista para o início de 2022.

“A gente já tem muita coisa de arquivo e começou a fase de reler tudo, ordenar, rever todas imagens, ver o que a gente precisa, escolher um caminho”, conta Léo Caetano.

“É impressionante como o Belchior só cresce na paisagem simbólica do Brasil, na potência do gesto que ele fez, que disse não pra tanta coisa.”

O trabalho de pesquisa em acervo vai trazer elementos sobre as composições do disco, assim como o contexto da época em que foi lançado, sempre na perspectiva do artista.

“A gente vai trabalhar muito a letra, usando como contraponto o próprio Belchior explicando algumas delas em entrevistas, em relação à mensagem, ao que ele queria com aquele trabalho”, explica Léo Caetano.

Os diretores vão abordar aspectos técnicos da produção do disco, mas o foco do filme será “em relação à história poética, estrutura melódica e, principalmente, à mensagem”, ressalta Caetano.

Alucinação também dá nome a uma série de ficção baseada na vida do artista, uma das três produções sobre Belchior em andamento na produtora Urca Filmes.

A página da reportagem de Marcelo Bortoloti, rasgada daquela edição de 2013 da revista Época, também foi parar no arquivo do baú de projetos da produtora. “Essa história em algum momento eu acho que vale a pena contar, ou entendê-la melhor”, avaliou o diretor Eduardo Albergaria.

Depois de ler a biografia do artista assinada por Jotabê Medeiros, Albergaria decidiu ir adiante com o projeto, e comprou os direitos do livro com a ideia de transformar em uma cinebiografia.

“Me parecia ser uma história muito singular de um artista brasileiro que escolhe negar, fazer um gesto silencioso. Me pareceu uma gênese dramática quase irresistível”, conta.

Ele deu início à produção de uma série de ficção baseada na vida do artista, chamada Alucinação, na qual divide o roteiro com Daniel Dias.

Com a chegada da pandemia, impossibilitado de avançar para a etapa das filmagens, Albergaria se deparou com o livro de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti e decidiu aprofundar o processo de pesquisa e desenvolvimento da série de ficção, que se desdobrou também em uma série documental.

Para essa série, cujas filmagens tiveram início este mês em Sobral (CE), cidade natal de Belchior, Albergaria conta com a consultoria de Chris e Marcelo. As duas séries, documental e ficcional, devem desembocar também em um longa-metragem de ficção sobre o artista.

“A gente tem a ideia ainda muito embrionária de um longa, que é o resultado de todo esse processo que é investigar o sentido simbólico do que o Belchior se tornou”, conta Albergaria. Para essa produção, a ideia é desenvolver a narrativa pele de uma personagem aficcionada pelas músicas de Belchior.

“Durante todo o desenvolvimento dessas histórias, é impressionante como o Belchior só cresce na paisagem simbólica do Brasil, na potência do gesto que ele fez, que disse não pra tanta coisa. Falando francamente, a gente quer fazer justiça a esse personagem pra cultura brasileira”, resume Albergaria.

O belchior sorridente da capa de “Paraíso (1982)” | Imagem: Reprodução

A volta das músicas do Belchior

No início de 2016, Belchior sorriu para Renato Vieira na capa colorida do disco Paraíso (1982), na loja e selo musical Baratos Afins, na Av. São João, região central de São Paulo (SP).

Um trabalho tropical e descontraído, que tem parcerias com Jorge Mautner e composições de Guilherme Arantes e Arnaldo Antunes. Um disco de “plena diversidade rítmica”, em que o compositor cearense “se mostra aberto a novas influências”, como definiu Vieira.

O disco estava autografado. “Do Belchior, com abraços e canções”. Renato não comprou. “Cara, estava lá, e até barato, eu podia ter comprado. Arrependimento total”.

Mas perguntou a Luiz Calanca, fundador e proprietário do estabelecimento, se os LPs de Belchior costumavam frequentar a loja. O compositor mesmo não dava as caras há muito tempo pelas ruas de São Paulo.

— Calanca, muita gente procura disco do Belchior aqui?

— Cara, muita gente procura CD. Todo dia vem alguém aqui procurando um CD e eu não tenho o que vender porque não está em catálogo.

“Quando você transcreve o disco para o digital, você escuta o som tal qual está nas fitas originais. Então foi um super prazer ouvir discos que foram muito maltratados.”

Em 2013, Vieira foi convidado pela Warner Music para trabalhar no relançamento de discos para a série Tons da gravadora. Sugeriu os nomes de Jorge Mautner, Belchior e Moraes Moreira. Naquele momento, teve o aval para seguir adiante com a obra de Mautner.

Quando saiu da loja em 2016, ligou para a diretora de marketing da gravadora e propôs dar sequência à série, dessa vez com Belchior.

Com os 70 anos do artista no horizonte, o projeto andou. No catálogo da Universal Music estavam os discos Alucinação (1976), Melodrama (1987) e Elogio da Loucura (1988). O primeiro era o único até então lançado no formato CD. “Tinha saído em CD com som muito ruim porque ele saiu logo que o CD foi instituído no Brasil, mas a situação não era tão legal”.

A partir das fitas originais, foram lançados os três CDs, remasterizados por Ricardo Garcia, a tempo de celebrar o aniversário do artista, com a caixa Três Tons de Belchior. O projeto seguinte abrangeu os oito discos do compositor lançados pela Warner, que compreende o período de 1977 a 1982, no box Tudo Outra Vez, lançado em 2018.

Em 2020, Renato trabalhou no lançamento da caixa Paralelas, pela Continental, com os discos Um show — 10 anos de sucesso (1986) e Trilhas sonoras (1990).

O LP de Belchior que Vieira deixou na gôndola da loja Baratos Afins, lhe rendeu uma boa surpresa durante o trabalho para o box Tudo Outra Vez. Paraíso (1982), que marca o fim do contrato do artista com a Warner, revelou qualidades que surpreenderam o pesquisador.

“Quando você transcreve o disco para o digital, você escuta o som tal qual está nas fitas originais. Então foi um super prazer ouvir discos que foram muito maltratados. Um grande exemplo é o Paraíso. Um disco super malhado pela crítica, mas que nunca tinha saído em CD. É um belo disco”.

Anos 1980

O disco Paraíso (1982), encerra a trilogia de discos de Belchior produzidos por Guti Carvalho, que tem início com Era Uma Vez Um Homem e Seu Tempo (1979) e encerra o período de Belchior na Warner.

“É mais uma virada de mesa em que Belchior amplia o seu horizonte mantendo como costume a crítica latina ácida, vestida de poesia, mas agora apresentada em arranjos mais dançantes”, define Mikael Henman Belchior.

O ano de 1982 também foi marcado por perdas. Elis Regina, a voz que o projetou, foi encontrada morta em seu apartamento em São Paulo (SP), em decorrência de uma parada cardíaca, em janeiro. A perícia apontou uso de álcool e cocaína como causa da morte. Elis estava com 36 anos. Em fevereiro, faleceu o músico Paulo César Willcox, responsável pelos arranjos de Objeto Direto (1980).

Algumas críticas ao disco Paraíso foram também duras. “O Paraíso de Belchior: chatíssimo”, foi o título de um texto assinado por Wladimir Soares no Jornal da Tarde, sobre o espetáculo de divulgação do disco. “O show existe em função do novo disco que Belchior gravou este ano na WEA. O novo, no caso, é apenas uma questão de data, não tendo nada a ver com inovação”, escreveu Soares. A má vontade do crítico, expressa ao longo do texto, não cede nem mesmo com a constatação de que o público, presente em grande número, apreciava o espetáculo.

“O público que praticamente lotou o teatro no último sábado pode ser considerado muito fiel e pouco rigoroso, que vibra com as músicas conhecidas, que canta junto os sucessos de execução e que incentiva o repertório desconhecido. Isso não impede, porém, que o show se arraste numa repetição incômoda e entediante. Nem os aplausos transformam Belchior num intérprete instigante”.

Em 1983, Belchior participou do programa Vox Populi da TV Cultura ainda durante o período de divulgação do disco Paraíso, onde falou sobre sua decepção em relação à falta de compreensão de seu trabalho.

“Quero correr esse perigo de ter meu trabalho mesmo mal entendido, não muito bem assimilado, mas quero correr o risco de expô-lo cada vez mais à visitação pública”.

No texto de relançamento do disco, Vieira traz uma citação de Belchior ao jornalista Tárik de Souza, dizendo que sentia seu trabalho injustiçado.

“Ainda não li até hoje uma análise a respeito das minhas letras, das citações que eu faço. Minha participação cultural nunca foi posta em xeque crítico. E isso é grave, porque eu acho o meu trabalho injustiçado”.

“Ele fazia um tipo de canção que tinha muitas referências literárias, uma métrica muito particular, uma coisa original mas que a crítica não entendia direito. Ele se sente realmente incompreendido, tão incompreendido que ele sai da Warner”, diz Vieira.

Na entrevista para a TV Cultura em 1983, Belchior deu pistas de que iria se aventurar por outros caminhos.

“Pessoalmente eu quero me incluir entre os artistas que trabalham em grandes companhias que estão sendo fortemente atingidos na sua consciência pelo estímulo da música popular brasileira que vem sendo produzida fora das grandes companhias. Eu acho que brevemente vai haver uma mudança total nessas relações de produção do artista e da indústria cultural brasileira”.

Na década de 1980, muitas gravadoras foram incorporadas por empresas estrangeiras geridas por pessoas ligadas ao mundo dos negócios, alheias ao ambiente musical.

“Muita gente foi demitida das gravadoras, foi um momento em que a indústria da música se tornou mais exigente, em busca de um tipo de música que fosse mais consumida. Isso acarreta uma busca por vendagem em detrimento de uma linguagem mais experimental, as decisões passam a ser corporativas e não artísticas”, analisa o jornalista André Barcinski.

Em seu livro Pavões Misteriosos, ele aponta que esse movimento teve início com a queda no consumo de discos de quase 20% entre 1978 e 1979 no Brasil, em meio à crise mundial da indústria da música.

Em meio a esse cenário, Belchior lançou, de forma independente, Cenas do Próximo Capítulo (1984), pelo selo Paraíso, que abriu em parceria com Jorge Mello.

“Vamos de Raulzito?”, dizia Belchior na hora do bis durante os shows de divulgação daquele disco, que traz uma versão para Ouro de Tolo (Raul Seixas), e a sua versão de Forró no Escuro (Luiz Gonzaga).

Em Cenas do Próximo Capítulo, Belchior assina a direção artística, Jorge Mello a direção de produção e o empresário Hélio Rodrigues a produção executiva.

Gravado no Nosso Estúdio, em Perdizes, São Paulo (SP), o disco teve Marcus Vinícius na engenharia de som e mixagem, arranjos e produção por Dino Vicente e Ivo de Carvalho — responsáveis pelos sintetizadores e guitarras do disco.

Quando o disco saiu, Belchior presenteou Mikael com uma fita k7. Foi o primeiro álbum de seu pai que ele escutou na íntegra, em seu walkman, nas viagens de carro com a família.

Mikael desconhecia, naquele momento, como era feita a produção e gravação de discos. Ao ouvir os backing vocals da gravação, ficou assustado.

“Às vezes eu cantava um pouco e, quando ouvia de novo a fita, eu ouvia os backing vocals e achava que minha voz tinha sido pega na fita. ‘Nossa, olha só pegaram a minha voz’ [risos]”

A capa do independente “Cenas do Próximo Capítulo (1984)” | Imagem: Reprodução

Paraíso Discos

A parceria entre Jorge Mello e Belchior iniciada em 1968, foi retomada na década de 1980, com a criação do selo Paraíso Discos. Ainda durante a década de 1970, Mello iniciou uma carreira como produtor musical, contratado pela Chantecler/Continental.

Em 1975, organizou, ao lado do músico e também produtor Marcus Vinícius, a Feira de Música Popular, uma “tentativa de mutirão musical” para que os artistas que não estavam contratados por gravadoras pudessem se apresentar e conhecer o trabalho uns dos outros.

“Eu tinha meu disco. Só meu disco. Saí com o disco debaixo do braço, por aí, saí tocando. Fui de Além Paraíba até Altamira. No meio do caminho meu grupo desistiu, a barra era muito pesada. Aí chamei minha mulher e nós dois seguimos nos apresentando, eu na guitarra e ela com um pandeiro. Tocamos em porta de cinema, porta de armazém, praça pública, igreja”, contou Jorge Mello, em entrevista para a jornalista Ana Maria Bahiana em 1975

Em 1976, ele abriu sua própria produtora, e lançou o disco Besta Fera de forma independente. Naquele ano, com as músicas de Alucinação tocando nas rádios de todo o país, Belchior procurou o amigo.

— Jorge, tu abriu uma gravadora? Puxa cara, quer abrir uma pra mim também?

— Claro.

— Tu sabe fazer essas coisas?

— Claro que eu sei, Bel.

— Poxa cara, eu tenho a maior vontade.

Um tempo depois, durante outra visita, Belchior voltou ao assunto.

— Jorge, e a nossa empresa?

— Como nossa? A minha tá funcionando.

— Não, aquela que cê falou.

— Rapaz, aquela eu tô abrindo pra você.

— Não, eu não sei cuidar disso, quero que você cuide.

Foi assim que nasceu a Paraíso Discos em sociedade entre Jorge Mello e Belchior. “Eu comecei a regularizá-la só em nome do Bel no final dos anos 70. E aquilo demorava muito, um CNPJ naquela época era uns dois, três anos pra sair. Quando saiu, a Paraíso em sociedade comigo é de 82”.

Na década de 1980, Belchior também atuou em algumas produções e direções artísticas, como no disco Aguilar e Sua Banda Performática (1982) e Country Beatles — Dollar Co. (1984) e gravou composições em discos de outros artistas:

Soro (1979) — música: “Aguapé” com Fagner
Massafeira Livre (1980) — música: “Aurora” com Ednardo
Super New Disc (1981) — música: “Meu Nome É Cem”
Bené Fonteles — Benedito (1983)
Marco Bosco — Metalmadeira (1983)
Trovador Eletrônico Vol. 1 (1987) — música: “Ploft” com Jorge Mello**

Jorge Mello e Belchior em foto publicada no livro “Belchior: Apenas Um Rapaz Latino Americano” de Jotabê Medeiros | Imagem: Cortesia do acervo documental de Jorge Mello

Retorno à Polygram

Quando Alucinação completou 10 anos, Belchior “estava um tanto distante da mídia convencional, mas mantinha uma média de 13 shows por mês, grande parte deles com lotação esgotada”.

Dessa maneira, Renato Vieira localiza o compositor naquele ano, no texto que apresenta o relançamento do disco Um Show — 10 anos de sucesso, lançado pela Continental, uma gravação ao vivo produzida por Jorge Mello, com participação da Banda Radar, que acompanhava Raul Seixas.

João Mourão (baixo), Sérgio Zurawski (guitarra), Jaderson Cardoso (bateria), Mikely “Gravina” Junior (Violão, Vocal) e Leandro Neri (teclados), passam a tocar nos shows com Belchior e também nos discos.

O próximo disco de inéditas do compositor só chegaria no ano seguinte. Desde o início de sua discografia, foi o maior hiato de novas composições. Com Melodrama, Belchior voltou ao selo Polygram, o mesmo responsável pelo lançamento de Alucinação. O produtor de Belchior em sua nova fase na antiga gravadora foi Antonio Foguete.

“Não entendi a posição dele de voltar aos grandes grupos e ter 7%, 8% [das vendas], que é o normal. Dizem que o Roberto Carlos tinha 10, mas os contratos do Belchior não chegavam a isso. Eu preferi investir na minha própria empresa, fazer, produzir e perdi meu maior artista”, lembra Jorge Mello, que não gostou da ideia de ver seu sócio de volta às grandes gravadoras.

Apesar de não concordar com aquela escolha, Mello assina parcerias com Belchior, no seu retorno à Polygram.

— Jorjão puxa, está havendo uma coisa nova aí chamada reggae cara, tu manja isso aí?

— Claro, né Belchior? Poxa. O que vem a ser isso aí cara?

Jorge escutou algumas gravações de reggae e arrematou:

— Olha Bel, é um xote disfarçadinho.

— Cara, faz uma pra mim?

— Eu faço, não tem problema nenhum.

Belchior em verso, letra e positive vibration em “Tocando por Música”

No disco Melodrama, Belchior gravou o reggae Tocando por Música, assinado pela dupla.

Hoje eu não
toco por música / Hoje eu toco por
dinheiro / Na emoção democrática /
De quem canta no chuveiro.

“Eu achei interessante escrever pra ele Tocando por Música, gosto muito onde o balanço cai, a colocação tônica”, conta Jorge. “É um recado gostoso, fácil e um balanço diferenciado do chamado xote nordestino, tendo uma puxada pouco derivada já do que a gente ouvia falar nos estúdios do tal do reggae”.

No embalo da parceria e ainda sob a influência do reggae, Jorge Mello e Belchior fizeram mais uma composição, Kitsch Metropolitanus, que ficou para o disco seguinte, Elogio da Loucura (1988).

“Botei tudo que eu já conhecia de reggae, tudo que eu já tinha ouvido de música do Caribe e tal, Jamaica, eu joguei. É muito irônico o texto, muito engraçado até, é quase um cordel, como o xote”.

Que tal usar brilhantina
No país da vaselina
Quem tiver cara, me piche
E eu chego feito um pivete
A glória do sanduíche

Quando trabalhou no lançamento desse álbum para a série Tons da Universal em 2016, Renato Vieira se surpreendeu com o verso que encerra o disco, na faixa Arte Final. E aí, minha gente? Será que a saída vai ser mesmo o aeroporto? “Quando eu ouvi eu falei: ‘Puts, já tava preparando né?’.

Jorge Mello se lembra que a composição foi feita no clima bem humorado, que costumava caracterizar o amigo. Quando chegou no escritório, Gracco e Belchior já “estavam brincando” em cima do texto de Arte Final.

“Eu fui pra mesa, o Belchior jogou uma caneta e um papel a meu lado — ele era muito organizado se sentava e botava uma folhinha de papel e tal — e cada um foi inventando sua frase, botando sua colocação”, lembra.

Ah! Donde están los estudiantes?
Os rapazes latino-americanos?
Os aventureiros? Os anarquistas? Os artistas?
Os sem-destino? Os rebeldes experimentadores?
Os benditos? Malditos? Os renegados? Os sonhadores?
Esperávamos os alquimistas, e lá vem chegando os bárbaros
Os arrivistas, os consumistas, os mercadores

Chris Fuscaldo aponta os discos do final dos anos 1980 como as principais surpresas durante a pesquisa para o livro.

“São dois discos muito bons para o final dos anos 80. E o Bahiuno, o último disco de inéditas dele, o disco é maravilhoso”. A partir de Elogio da Loucura, se passaram mais 5 anos até o próximo disco de Belchior, Bahiuno (1993), seu último trabalho com composições inéditas, com arranjos de João Mourão, que conduziu a Banda Radar nas gravações.

“Bahiuno” foi o último disco de inéditas lançado por Belchior | Imagem: Reprodução

Os anos 1990

A década de 1990 na obra de Belchior foi marcada principalmente por regravações. Embora tenha sido o período com o menor número de composições inéditas (16 músicas) gravadas, foi o que trouxe o maior número de gravações feitas por ele, segundo a pesquisa e catalogação de Mikael Henman Belchior. Foram registrados por Belchior, ao longo da década, 113 fonogramas, o que representa quase 40% de toda a sua obra gravada.

Nesse período, o músico se dedicou ao formato acústico, com o qual revisitou sua obra, em discos e shows, até o momento em que decidiu abandonar os palcos, entre 2007 e 2008. Foram lançados, nesse formato, os discos Divina Comédia Humana (1991) com o Duo Fel e Eldorado — Belchior & Larbanois-Carrero (1992), interpretado em espanhol.

“Minha leitura sobre isso é que aquilo continuou sendo relevante para ele. Então, em certos momentos da vida, ele foi regravando uma série de músicas core. A voz mudava, o arranjo mudava, e você vai acompanhando esse desenvolvimento a partir de uma linha coerente, que são essas músicas de base”, analisa Camila Henman Belchior.

O professor José Gomes Neto aponta que havia, no ato de regravar suas próprias composições, um cuidado de Belchior com a posteridade de sua obra. “Ele tinha uma preocupação de que o trabalho dele perdurasse na música brasileira. Insistia em mostrar aquele trabalho, dava uma nova roupagem, mudava o andamento”.

Em 1995 os Mamonas Assassinas fizeram uma referência a Belchior na música Uma Arlinda Mulher, no único disco lançado pelo grupo. Gomes Neto lembra que o compositor se divertiu com a imitação.

— Zezão, você tem aquele CD dos Mamonas?

“Colocava pra tocar e morria de achar graça. Ele achava graça das imitações, era uma pessoa muito querida, gostava de ver a obra dele no espaço, na rua”.

Em 1995, Belchior lançou pela Universal Um Concerto Bárbaro: Acústico ao Vivo também no formato voz e violão com Sergio Zurawski. No ano seguinte, voltou aos estúdios, desta vez para gravar seu primeiro disco como intérprete: Vício Elegante (1996), produzido por Guti Carvalho, em que Belchior grava Adriana Calcanhoto, Caetano Veloso, Chico Buarque e Roberto Carlos.

A direção artística do disco foi feita pelo músico cearense Ricardo Bacelar, que acompanhou Belchior ao piano durante as interpretações. No processo de gravação surgiu uma composição inédita, em parceria com Bacelar. A música Vício Elegante, que dá nome ao disco.

O artista encerrou a década com uma grande revisão de sua carreira no disco Auto Retrato (1999), álbum duplo produzido por Ruriá Duprat e lançado pela BMG com 25 músicas regravadas de seu repertório. No mesmo ano, Belchior ainda lançou mais um álbum no formato voz e violão, desta vez com um violonista mineiro: Um Concerto A Palo Seco, com Gilvan de Oliveira.

Belchior nas lentes do fotógrafo Mário Luiz Thompson | Foto: Mario Luiz Thompson/Imagem gentilmente cedida por Hernan Herrero

Anos 2000

Em 2002, Belchior teve a música A Palo Seco regravada pela banda Los Hermanos, no programa Luau MTV. “Queria mandar um grande abraço pro Belchior, a gente não se conhece, mas a gente gosta muito desse disco seu”, disse Marcelo Camelo antes de apresentar a música. Em 2003, no programa Altas Horas, apresentado por Serginho Groisman, Belchior se juntou ao grupo para cantar a música.

“É uma surpresa super agradável ver uma canção do começo da carreira regravada, tão bem regravada, mostrando a permanência da poesia popular brasileira, a permanência de algumas ideias, de algumas emoções, que a música popular sempre soube transmitir com tanta força, com tanto vigor”, disse o compositor.

Em 2003, Belchior voltou aos estúdios para gravar Pessoal do Ceará, ao lado de Ednardo e Amelinha. O disco registra a última composição inédita gravada por Belchior: Bossa em Palavrões.

Belchior iniciou o século XXI rodando o Brasil e fazendo shows com o repertório do álbum Auto Retrato, sozinho no palco, no formato voz e violão. As turnês eram também acompanhadas por exposições de suas telas, atividade à qual vinha se dedicando, com interesse particular pela trajetória do retrato e do auto retrato na história da arte.

Desse interesse, surgiram novos projetos, que mesclavam sua atividade nas artes plásticas e o interesse pela poesia. Em 2004, o artista lançou o álbum As várias caras de Drummond, onde musicou 31 poemas de Carlos Drummond de Andrade. No álbum cada poema é acompanhado de uma gravura do poeta mineiro feita por Belchior, entre 1982 e 1987.

“Nunca senti que pudesse haver uma coisa dessa na vida dele. Deve ser uma coisa muito poderosa, porque o empresário dele confidenciou a mim que se ele quiser voltar, paga todas as dívidas que ele tem.”

Camila, que iniciava sua carreira no campo das artes visuais, ajudou o pai a catalogar as gravuras. “Essa oportunidade de poder ter ido em algumas reuniões com ele, de ter trabalhado nesse primeiro projeto, pra mim foi muito interessante, é um projeto que eu tenho muito carinho. Eu entendo que ali estava começando uma fase”.

No ano seguinte, Belchior interpretou poemas de Cruz e Souza durante a Turnê Catarina, que percorreu 10 cidades do estado entre 15 e 27 de outubro de 2005.

Em 2006, Belchior iniciou um movimento de retirada da cena artística brasileira. Naquele ano, fez algumas apresentações ao lado da banda Los Hemanos. Entre 2007 e 2008, deixou de fazer shows. Em 2016, quando completou 70 anos, Belchior estava há quase dez anos fora do cenário musical brasileiro.

Naquele ano, conversei com o produtor Marco Mazzola, responsável por lançar Alucinação pela Polygram e levar Belchior para a Warner — onde o artista cearense gravou seus cinco discos seguintes.

“Nunca senti que pudesse haver uma coisa dessa na vida dele. Deve ser uma coisa muito poderosa, porque o empresário dele confidenciou a mim que se ele quiser voltar, paga todas as dívidas que ele tem”, disse Mazzola naquela ocasião.

Renato Vieira considera o período em que Belchior ficou afastado do mundo artístico como um momento de entressafra na música brasileira. Ele acredita que Belchior poderia estar, na última década, “numa situação muito mais confortável em termos de comunicação com o público do que ele ficou por muito tempo”.

“Isso eu lamento, de ele não ter se encontrado com o público que hoje é quem ouve ele nas plataformas digitais, que compra os discos. Ele estaria sendo muito melhor entendido e estaria chegando num público mais jovem, que gosta muito dele”.

Na investigação jornalística que seguiu os últimos passos do compositor, saga retratada no livro Viver é Melhor que Sonhar, Chris e Marcelo Bortoloti levantam muitas hipóteses sobre o que poderia ter motivado Belchior ao autoexílio nesses últimos anos. “De 1993 a 2006 são 13 anos regravando coisas, fazendo projetos, pintando, mas nunca conseguindo se superar”, analisa Fuscaldo.

“As coisas foram acontecendo, e vendo as hipóteses, a gente explica essa decisão dele de tirar um período sabático e tentar produzir, tentar ir buscar esse ócio criativo lá no interior do Uruguai. Isso acontece quando ele não consegue mais se desvencilhar daqueles shows, daqueles repertórios. Ele para de fazer shows porque ele já está cansado de cantar as mesmas músicas, nos mesmos teatros”, acredita Chris Fuscaldo.

Durante esse período, o artista confidenciou a algumas pessoas que estaria preparando um novo disco, que seria “melhor que o Alucinação”. Um desses interlocutores foi Zeca Baleiro, levado ao encontro de Belchior após fazer um show em Santa Cruz do Sul (RS).“E aí isso fechou nosso quebra cabeça”, diz Fuscaldo

“Quando ele fala isso nos dá a entender que ele só voltaria se fosse para arrasar ou se fosse para tipo voltar no alto mesmo, com um disco melhor do que aquele para as pessoas, aquele sobre o qual as pessoas apenas falam, sobre o qual as pessoas apenas perguntavam coisas a ele”.

Fausto Nilo se lembra um dos últimos encontros com Belchior, quando o recebeu em sua casa.

— Bel, comé que tá? E aí cara, continua fazendo show?

— Fausto, quase todo dia eu faço.

— Rapaz, que coisa. É mesmo? E aí?

— Eu adoro.

— Mas não cansa e tal?

— De jeito nenhum! Eu resolvi não ter banda, eu tenho só um cara no violão que me apoia, porque o povo quer que eu cante ali, não quer saber de banda. É muito bom, Fausto! Eu digo assim: “Eu sou apenas um rapaz”… aí eles todos juntos: “Latiiiiino Americano”. Eu não preciso nem cantar mais!

Todos riram muito, recorda Fausto. “Pior que ele era cínico assim, sabe?”.

*Dados colhidos nas plataformas em 3 de novembro de 2021

**Pesquisa e catalogação de Mikael Henman Belchior (Dez/2011 a Out/2021)

Leandro Melito (caderno de ondas) é jornalista e pesquisador musical em São Paulo (SP). Com passagem pelas redações da Rede Brasil Atual e Empresa Brasil de Comunicação (EBC), cobriu música, cinema, política e direitos humanos. Atualmente trabalha como editor do site Brasil de Fato e colabora com a programação musical da Rádio Raio (Antena Zero).

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