Contemplativa #3

Editor da Zumbido
Zumbido
Published in
5 min readJul 26, 2018

A música para além da escuta! Nesta edição, a videoartista Isadora Stevani dá sua versão de Sangue de Negro, do Grupo Um

Sangue de Negro,
do CD Uma Lenda Ao Vivo -
Ao Vivo Jazz na Fábrica (Selo Sesc)

vídeo-arte por Isadora Stevani

Gravado no dia 20 de agosto de 2015 no Teatro do Sesc Pompeia, esse disco é o registro da noite memorável que marcou a volta do Grupo Um aos palcos, depois de um hiato de 30 anos. Lelo Nazario (teclados, processos eletrônicos), Zé Eduardo Nazario (bateria, percussão), Mauro Senise (saxes, flautas), Frank Herzberg (baixo acústico) e Felix Wagner (clarinete baixo, teclados) navegam entre o jazz fusion, o free jazz e a música erudita, eletrônica e eletroacústica.

Uma coisa que surgiu na minha cabeça desde que ouvi [o disco] pela primeira vez: foi o conceito de entropia, da física. Quando li o texto do canal do Selo Sesc sobre o grupo e vi a mesma palavra, fortaleceu essa ideia pra mim. Entropia é aquele lance da física de considerar que toda matéria é um caos de partículas. Ou seja, tudo é caos, em maior ou menor proporção. A depender do estado físico — sólido, líquido e gasoso — , maior ou menor a entropia (que também varia a partir de outras coisas). A ilustração na capa do disco também nos lembra moléculas[…] Estou indo para o Marrocos na segunda feira e pensei em captar umas imagens no deserto do Saara e mesclar essas imagens com esse conceito apresentado em cima. A princípio a ideia é essa, mas vou desenvolver mais isso — o que acha?

(trecho da apresentação da ideia do vídeo por Isadora Stevani)

Nos tempos que correm — marcados pela regressão cultural, pelo cinismo descarado, pela colonização do desejo, em que os adjetivos tomaram o lugar dos substantivos –, a simples existência deste disco é uma proeza. Sua existência assinala outro fato marcante: os 40 anos da fundação do Grupo Um, provavelmente a mais radical afirmação da liberdade e da originalidade musical entre nós.

Lelo Nazario e Zé Eduardo Nazario — os irmãos fundadores — e todos os músicos que contribuíram com o grupo ao longo dos anos criaram um amálgama único que expande os limites da experiência musical. Inventaram uma linguagem que combina o jazz fusion, o free jazz, a música erudita — com ênfase na música eletrônica e eletroacústica — e a riqueza da percussão afro-indígena, que nem por isso deixa de incorporar instrumentos de outras culturas.

A resultante dessa proposta de vanguarda é sumamente inovadora, pois trabalha os parâmetros musicais “primários” (melodia, harmonia e ritmo) — que definem a organização sintática da música — e os “secundários” (timbre, dinâmica) com o propósito de criar uma sonoridade nova, marcadamente urbana (portanto, cosmopolita), que ignora fronteiras e hierarquias, em que o sintetizador, as tablas indianas e as fitas magnéticas pré-gravadas têm a mesma importância.

Aos substantivos “liberdade” e “originalidade” usados acima para caracterizar a música do Grupo Um, se junta um terceiro: “densidade”. A música do Grupo Um não se entrega facilmente à fruição. Tem muita entropia, muita informação. Por isso solicita empenho do ouvinte. Mas quando a familiaridade se instala, o prazer é proporcional a esse comprometimento.

O Grupo Um construiu sua reputação com shows — no Brasil e na Europa — e com os três LPs que gravou, felizmente reeditados em CD: “Marcha Sobre a Cidade” (1979) — pioneiro entre os discos de produção independente –, “Reflexões Sobre a Crise do Desejo” (1981) e “A Flor de Plástico Incinerada” (1982), todos muito bem recebidos pelo público e pela crítica especializada da época.

A pequena mas significativa discografia cresce agora com este CD, que mostra o Grupo Um no esplendor de sua forma. Lelo (teclados e processos eletrônicos) e Zé Eduardo (bateria e percussão) pertencem ao restritíssimo clube de instrumentistas com dicção pessoal, donos de um fraseado claramente identificável. A esse grupo pertencem, por exemplo, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos, Bill Evans, Ornette Coleman, John Coltrane, Thelonious Monk e Anthony Braxton. Além disso, Lelo e Zé Eduardo tocam juntos desde sempre, o que os levou a desenvolver uma verdadeira comunhão. Com sólida formação e extensa trajetória, o saxofonista e flautista carioca Mauro Senise, que participou dos dois primeiros LPs, é uma referência nesses instrumentos no Brasil. O multi-instrumentista e compositor alemão Felix Wagner — que aqui toca clarinete baixo e teclados — é outro antigo colaborador perfeitamente à vontade nessa permanente ebulição que é a música do grupo. Outro alemão, o contrabaixista Frank Herzberg estreia no Grupo Um no posto ocupado por nada menos que Zeca Assumpção, um dos maiores nomes do contrabaixo brasileiro. Herzberg impressiona pela ampla paleta de recursos expressivos, com o arco ou pizzicato, e pela sonoridade cheia.

Para os fãs mais antigos, o CD é um registro histórico; para as novas gerações, é uma excelente introdução ao universo das sonoridades do Grupo Um, cheio de fúria, lirismo e rigor.

trecho do texto de Alexandre Agabiti Fernandez (jornalista e crítico musical), extraído do encarte do CD Uma Lenda Ao Vivo, da série Ao Vivo Jazz na Fábrica

Isadora Stevani formada em Rádio e TV, é diretora, editora, finalizadora e artista visual 3D. Especializou-se em pós produção audiovisual e nos últimos anos trabalhou principalmente com efeitos visuais, animações, videoclipes, filmes publicitários, séries televisivas e longas metragens. Como artista visual 3D participou da exposição “APROXIMADAMENTE 800cm3 DE PLA” em São Paulo e da Tres_W na Espanha. Editou videoclipes de artistas como Jaloo, Cidadão Instigado, Aíla entre outros. Recentemente fez uma animação para a exposição “Vkhutemas: O Futuro em Construção 1918–2018” em cartaz no Sesc Pompeia.

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