Contemplativa #4

Editor da Zumbido
Zumbido
Published in
5 min readJan 23, 2019

A música para além da escuta! Nesta edição, a videoartista Tatiana Travisani com sua versão de Suíte Vilemão (Baianos), do grupo Anima

Suíte Vilemão (Baianos),
do CD e Livreto Encantaria —
grupo Anima (Selo Sesc)

vídeo-arte por Tatiana Travisani

Lançado em 2017, Encantaria, do grupo Anima, é a continuação da trilogia iniciada com o disco Donzela Guerreira, lançado em 2010 também pelo Selo Sesc. O primeiro título traz o mito da mulher que encarna papéis masculinos para defender a honra. Já em Encantaria, é o mito do sebastianismo que dá a unidade narrativa e musical. O disco tem 18 faixas e vem acompanhado de um livreto bilíngue, português e inglês, de 111 páginas, com textos de apresentação de Walnice Galvão, da antropóloga Mundicarmo Ferretti, professora da Universidade Estadual do Maranhão e comentários dos integrantes do grupo sobre cada uma das músicas.

Criado em 1988, o Anima nasceu como resultado de reflexões sobre a interpretação musical e a memória musical brasileira. A estrutura inicial do grupo teve como base o movimento de música antiga e a interpretação musical historicamente orientada. Esses princípios interpretativos norteiam até hoje o grupo, e foram ampliados e transformados através das múltiplas formações pelas quais passou e que conquistou diversos prêmios até aqui, como da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), o Prêmio Funarte de Música Brasileira e o Prêmio Carlos Gomes. O grupo é formado pelos músicos Gisela Nogueira (viola de arame), Luiz Fiaminghi (rabecas brasileiras), Paulo Dias (percussão e órgão portativo), Silvia Ricardino (harpa medieval), Valeria Bittar (flautas doces) e Marlui Miranda (voz).

O processo criativo consistiu na criação de vídeos em loops utilizando técnicas variadas com uso de stop motion e timelapse. Os loops foram passados por um processamento de síntese analógica, gerando efeitos visuais eletrônicos, produzidos de modo a simular um live AV, ou VJ set.

Minha inspiração partiu da própria sonoridade da música, me trazendo uma alegria festiva e, consequentemente, a necessidade de expressar sua força gestual.

Acabei apelidando este estilo visual como “lúdico eletrônico”, acredito que defina bem a estética proposta à música.

(trecho da apresentação da ideia do vídeo por Tatiana Travisani)

Tradição oral brasileira recolhida por Mário de Andrade

Baianos ou baião são danças instrumentais que se intercalam às toadas do bumba meu boi. Melodias curtas, com contorno rítmico acentuado, no bumba meu boi o baiano nunca é cantado. O baião cantado, eternizado por Luiz Gonzaga, parece ter sido uma invenção tardia, urbana e já modelada como canção adequada às necessidades da indústria cultural. Guerra-Peixe, em seu ensaio Variações sobre o baião, não faz distinção entre baiano/baião, destacando “a alegria, variação e vivacidade” como suas características principais. Poderíamos acrescentar que a estrutura rítmica é, na maior parte das vezes, em compasso binário e apresenta um timeline, também conhecido como tresillo, cujos pulsos básicos estão agrupados em 3 + 3 + 2 e suas rotações (2 + 3 + 3; 3 + 2 + 3). A estrutura melódica é predominantemente em modo maior (jônio, mixolídio e lídio). Guerra-Peixe destaca também o caráter de interlúdio, “já que se intercala às falas do Bumba-meu-boi, às manobras dos Cabocolinhos e se entremeia à poesia dos cantadores”.

Rabeca utilizada por Luiz Fiaminghi na execução da Suíte Vilemão (Baianos)| Foto: Fernando Laszlo

A série de baianos gravados aqui provém de um único informante, o rabequeiro Vilemão Trindade, mestre do Boi de Fontes que apresentou o seu folguedo a Mário no dia 09 de janeiro de 1929, no engenho de Bom Jardim, RN. Nessa viagem etnográfica Mário de Andrade ainda não dispunha de um gravador (como em 1938) e, portanto, as melodias que ele recolheu — cerca de “milhar e meio”, segundo Oneyda Alvarenga — foram transcritas para pauta musical diretamente de diversos cantadores, por ele próprio, no decorrer de três meses de trabalho árduo. Segundo as informações que chegaram até nós, através de seu diarinho e publicadas postumamente no livro O Turista Aprendiz, a performance do Boi de Fontes deixou uma impressão marcante: “De noite o ‘Boi’ de Fontes veio dançar no engenho. A mais perfeita dança dramática que já vi na viagem. Artistas deliciosos de espontaneidade e espírito”. Ao todo Vilemão informou a Mário cerca de 40 melodias, entre baianos, toadas, romances, desafios e cocos. Sua habilidade como rabequeiro e sua sensibilidade musical são destacadas por Andrade na descrição de Trindade na Psicologia dos Cantadores, o que um trabalho mais próximo com este rico e variado material musical reconfirmou. Diz Mário: “Mulato escuro. Homem feito. Rabequista e cordeonista de profissão. Tocador de bailaricos, tocador de ‘Boi’, ignorante de música teórica, intuição excelente, reproduzindo imediatamente no instrumento dele o que a gente cantava ou executava no piano. Ouvido excelente. Temperamento barroco, enfeitador das melodias na rabeca. Alguma incerteza de execução que se tornava frequentemente fantasista. Coisa proveniente da própria musicalidade improvisatória do rabequista e não de insuficiência”.

(texto do músico Luiz Fiaminghi extraído do livreto que acompanha o CD Encantaria)

Anima em estúdio durante a gravação de Encantaria | Foto: Ricardo Ferreira

O Anima segue na produção do encerramento da trilogia em 2019. O terceiro projeto da série intitulado Mar Anterior tem seu núcleo assentado sobre os sentimentos de saudade, de perda, de ausência, das separações causadas pelos oceanos e o trauma da escravidão a partir da diáspora africana.

Saiba mais e ouça Donzela Guerreira e Encantaria no Portal Sesc SP

Tatiana Travisani desenvolve trabalhos artísticos em vídeo, performances audiovisuais, instalações multimídia e de arte em rede. Sua pesquisa é voltada aos desdobramentos da imagem ao passar por variados procedimentos tecnológicos e como reage esteticamente a eles. Com o duo de live audiovisual Clássicos de Calçada, em atividade desde 2012, experimenta possibilidades diversas de usos de câmeras, de sínteses analógicas e digitais, de telas múltiplas, dispositivos lumínicos e artefatos eletrônicos de baixa definição com finalidades experimentais e sinestésicas. É pós-doutora em Artes Visuais pela ECA/USP, coordenadora e docente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi. Foi pesquisadora e docente convidada em universidades da Espanha e México, além de participar de diversos festivais e exposições na Europa, EUA e América Latina.

--

--