Corrupted Data蝶とクジラ
Cadu Tenório submerge sua obra no mar de dados da rede
Antes de mais nada, vale deixar registrado:
Escrevo esse texto com base quase que unicamente em experiências pessoais.
Fui convidado a escrevê-lo com base em meu último trabalho, Corrupted Data蝶とクジラ. Indaguei-me se seria possível fazer isso sem cair numa espécie de egotrip infinita, mas, ponderando um pouco, percebi que este trabalho permitia reflexões próprias, ainda como parte de seu desenvolvimento tendo em vista sua continuação, Corrupted Data孤独死, que já estava em processo de acabamento na ocasião do convite. Pensando no efeito que todo o processo teria me causado, como foi transformador e como a persona evocada consegue habitar um universo tão particular e tão próximo.
Corrupted Data蝶とクジラ consiste na junção de três produtos indissociáveis um do outro, um disco, um site e um e-livro. Os três complementam-se. Há textos que são falados como em um áudio-livro no meio do disco. A maior parte desses textos está em primeira pessoa, escritos em formato de desabafo, numa estrutura quase de diário.
No miolo, também encontram-se resultados de pesquisas e obsessões desse eu lírico: trechos de reportagens sobre temas específicos, reportagens completas, trechos pontuais de outras obras, tudo parte do que é fruído e consumido pelo eu lírico.
Para melhor expor minhas ideias e tentar explicar como cheguei até esse ponto, terei que fazer pulos temporais nesse texto também. Como a quantidade de trabalhos e parcerias já é bastante grande, vou tentar focar apenas no desenvolvimento do trabalho solo.
Descobrindo a rede
Desde a adolescência, quando comecei a conhecer e frequentar o cenário underground, havia certa romantização a respeito de discos, sobre o formato físico, sobre possuir os objetos. Na época, era um privilégio de poucas bandas ter um disco pronto pra apresentar.
Geralmente, as tiragens eram bem limitadas, o que inflava esse glamour do colecionismo. Talvez não seja muito diferente nos dias atuais. Voltando um pouco até a virada do milênio, época em que predominava a internet discada e banda larga ainda era pra poucos, meu gosto musical se resumia ao que chegava nas escolas do subúrbio em que frequentei, ou seja, o que tocava na radio rock da cidade.
A internet ainda não me ajudava muito com os downloads, demorei mais de um mês pra baixar um disco do Nine Inch Nails numa qualidade péssima. Em 2003, tive de mudar-me repentinamente para Maceió, Alagoas, estado onde nasci. Tive ,então, minha primeira experiência com banquinhas repletas de cds, compactos e k7’s e com bandas tocando ao alcance do toque.
Entre 2004 e 2005, frequentando shows, sites e fotologs das bandas, já engatinhando também com a minha própria, acabei conhecendo o site Trama Virtual, que terminou de expandir as possibilidades. As bandas de que gostava publicavam no site, com stream e possibilidade de download gratuito. O site também tinha um corpo de redatores que indicava artistas semanalmente.
Fui tomando conhecimento de serviços gringos similares como o Purevolume e o Myspace, que trouxeram mais uma revolução, em especial o Myspace, que, conforme foi ficando popular por aqui, proporcionou contato direto entre as bandas e seus perfis.
É seguro dizer que foi graças a estrutura criada por esses sites que me encorajei a expor as coisas que vinha produzindo e a criar um arremedo de rede que me levaria a começar a fazer shows.
Primeiros passos
Todo esse processo coincide com minha volta para o Rio de Janeiro no fim de 2005. Ganhei o primeiro computador que pude chamar de meu. Com o auxílio de alguns amigos em fóruns, comecei a desenvolver melhor meios rudimentares de gravar o que podia em casa e a aprender novos usos pro meu gravador portátil de fita k7
Comecei a gravar fitas dos trajetos que fazia no dia a dia, com a ideia fixa de que a simplicidade e pungência de determinados temas de teclado em que estava trabalhando ganhavam profundidade se permeados pelos sons mundanos do compositor.
É fácil pra mim perceber hoje em dia que a maior parte da minha história foi construída (escrita?) por meio de um computador, num ambiente digital, desde a metade dos anos 00' e a aquisição da banda larga. Mediante isso, também foram construídas várias relações que perduram até os dias de hoje.
Nesse processo de autoexílio e solidão compartilhada, nasceu o Ceticências, ainda como projeto solo, posteriormente veio o duo Sertão Agrário, quando conheci Igor Andrade, que passava pelas mesmas questões que eu: dificuldade de montar uma banda com as influências que compartilhávamos. Fomos convidados, via Myspace, pela banda Constantina(MG) que faria seu primeiro show no Rio de Janeiro e queria que fossemos a atração de abertura.
Construção da persona
Em um dado ponto, já descrente e livre da ideia asfixiante de formar uma banda, surgiu o esboço do que viria a ser o Sobre a Máquina.
Ainda não existia confiança suficiente para usar meu próprio nome, vieram então inúmeras subdivisões, projetos solo e pseudônimos como Santa Rosa’s Family Tree e VICTIM! que hoje responde apenas como V.
Passados mais alguns anos, em 2013, a Trama Virtual já havia anunciado seu fim e como VICTIM! tive a oportunidade de lançar alguns trabalhos em selos independentes no exterior. Exemplificarei apenas dois pra prosseguir com o texto.
Ambos saíram por selos que podemos afirmar serem de nicho/gênero. Um foi o disco “Reality Cut”(2013) pelo selo estadunidense Fusty Cunt, com foco em noise, power electronics e música industrial no geral — hoje já é um parceiro de longa data que continua a lançar meu trabalho por lá. O outro é o “503”(2014), lançado pela Murderabillia, selo italiano focado em death industrial e power electronics.
Era notório certo desprezo de grande parcela dos participantes dos fóruns virtuais desse nicho (aos quais estava habituado) por material digital, discos virtuais e mesmo por sonoridade tida como digital.
Foi impactante, pra mim, observar como era desprezado, à época, o formato em que me criei, quase essencial para o meu desenvolvimento como artista.
Estando atento aos artistas como Ramona Andra Xavier, James Ferraro, Daniel Lopatin e a toda estética que viria a se popularizar como vaporwave, percebi que meus hábitos refletiam um modelo ao qual não conseguia, de fato, me adequar. Alguns de meus discos digitais ainda eram digitais apenas pela impossibilidade de torná-los físicos do modo que gostaria, o que era evidenciado até mesmo pela duração deles, sempre pensados em formatos bem específicos, respeitando o tempo máximo de mídias específicas. Eu não havia parado ainda pra pensar sobre o formato digital em si e suas eventuais possibilidades.
Foi aí que resolvi pensar o formato digital e aproveitar as possibilidades que hospedar um disco na internet, fazendo-o parte intrínseca da mesma, poderia proporcionar.
Expansão dos limites do disco digital ou Digital Devil Saga
Meu interesse por explorar e expandir os limites do formato disco, em especial o digital, como artista independente, começou quase que ao mesmo tempo que a necessidade de gravar discos sem a utilização de pseudônimos. O tímido começo foi explorando a contradição de ter um disco de nome “Cassettes”, em que todos os sons presentes eram oriundos de fitas k7, mas processados digitalmente, e com lançamento exclusivamente no formato digital.
Em seguida, surgiu o “Vozes” e com ele houve a tentativa de realizar uma experiência audiovisual digital, explorando a plataforma que à época estava chegando ao ápice de sua popularidade — o Youtube — , começando a abrigar álbuns completos hospedados pelos próprios ouvintes. O disco foi lançado de forma episódica pelo site Tiny Mixtapes. Cada uma das quatro faixas possuía um vídeo e a experiência completa do disco era realizada assistindo/ouvindo esses vídeos no Youtube em uma playlist montada na própria plataforma. O disco foi recentemente lançado em k7 pelo selo estadunidense Fusty Cunt.
A exploração dos limites continuou com o Rimming Compilation que surgiu da simples, e nada original, ideia de lançar dois discos ao mesmo tempo. Discos com títulos próprios, que eram quase antíteses um do outro, ao mesmo tempo em que se complementavam e que respondiam também como um único ciclo/conjunto de investigação sobre sexualidade na rede. O conjunto traria também, em teoria, vídeos pra todas as suas faixas, e seria um ode à incompletude de toda obra de arte.
De fato, os dois discos são incompletos no modo como se apresentam, pois existe um terceiro, sem capa, oculto entre eles. Minha ideia era trazer certo resgate ao processo de escuta: quando ouvimos um disco físico, seja no formato que for, somos forçados a tocar a casca, abrir, ter contato com o que há dentro do estojo ou envelope pra poder pegar e colocar o “objeto central” no respectivo aparelho de reprodução.
Tornar essa exploração parte do processo — parte do disco — foi a intenção com o Rimming Compilation. Olhando o status de downloads no bandcamp, fica claro que a quantidade de pessoas que baixaram apenas os dois discos é absurdamente maior do que as que baixaram o disco oculto, o que acho que, pelo menos nesse caso, prova meu ponto.
A ideia inicial de fazer vídeos pra todas as músicas do(s) Rimming Compilation também já nasceu fadada à incompletude. O maior dos vídeos, Desktop Skies, saiu como uma espécie de curta, de aproximadamente quinze minutos, em que vídeos de natureza viva e morta se mesclavam com gravações feitas da tela de um laptop, um sem fim de imagens de plano de fundo pra desktop e crianças tendo contato com celulares modernos e computadores.
Os dados corrompidos ou Iceberg-core
Depois dessa retrospectiva, chegamos ao presente com o contexto e a trajetória mais ou menos definidos para desembocar no Corrupted Data蝶とクジラ.
Minhas ferramentas principais ainda são os sons, a música, portanto não consigo e nem posso recriminar quem enxerga o trabalho como um disco apenas e ignore seu conceito tríptico.
Comecei a definir o formato quando notei que a maior parte das pessoas que conheço tem ouvido música quase que exclusivamente através do Spotify, Deezer, e afins. Os discos aparecem diluídos no emaranhado de abas que acumulamos em tela.
Em Corrupted Data蝶とクジラ, a intenção é que o ouvinte/leitor entre/mergulhe a partir do site, navegue e vá descobrindo o universo proposto, está tudo lá, decodificado, em gifs/ links pra serem clicados, alguns mais escondidos do que outros, de modo que esse ouvinte/leitor construa a narrativa à sua maneira a partir do site.
Dentro do site, todas as abas que serão abertas estarão diretamente ligadas ao conteúdo auditivo proposto e vice-versa. A voz do eu lírico é imortalizada a partir do Google Tradutor que também muda o ponto de vista de percepção — lendo é possível que a identificação se internalize. Quando se escuta a verbalização dos escritos, abre-se outra dimensão, ainda mais levando em consideração o teor expositivo de alguns textos.
Para me convencer de que o disco pertencesse à internet, precisava de que ele encarnasse a voz da mesma e buscar essa voz me levou rapidamente às vozes do tradutor e alguns outros meios de vozes robotizadas.
São vozes inflexíveis, e esse é outro dos motivos pelo qual foram escolhidas, e estão diretamente ligadas ao universo digital como o Navy de Lain (do anime Serial Experiments Lain).
Com o site como base, foi fácil enfiar (afundar, afogar) o trabalho dentro da rede pra que ele se tornasse parte dela. Também para que todo esse enclausuramento da obra num ambiente digital fosse a representação definitiva de seu conceito; O isolamento.
Nesse sentido, o Google — ou o site de busca de sua preferência — acaba sendo um integrante primordial “da banda”, não só por conta das vozes, mas por ser também uma ferramenta de interação, tradução e descoberta, com utilização de aspas, de onde determinado título pode ter vindo.
É construída uma espécie de espiral ascendente com o conteúdo das vozes, que fica cada vez menos críptico, mais expositivo e “constrangedor”, e isso é proporcional às peças musicais que também se tornam cada vez mais longas e introspectivas conforme avançam.
Existem algumas poucas vozes humanas perdidas na jornada. São a tentativa de impedir a descida até o fim. Lampejos de realidade. Mensagem de voz de um mundo em decomposição.
Sobre as relações com o Blue Whale Chalenge, memória digital e morte:
Corrupted Data蝶とクジラ é um tríptico sobre isolamento. As relações com o blue whale chalenge vieram no momento em que comecei a compor o disco. A primeira matéria a que tive acesso tinha a citação que abre o disco. Quem me mostrou foi justamente um amigo russo que à época me interpelou, quase me censurando, quando me viu comentar em uma rede social sobre estar reassistindo Serial Experiments Lain, anime de 1998.
Ele disse estar rolando uma comoção na Rússia, naquele momento, a respeito de crianças se suicidando influenciadas por esse anime. O anime, apesar de ser uma experiência estética marcante e permanecer bem atual em sua temática, já podia ser considerado datado, no sentido de não me parecer tão atraente pros adolescentes de 2015. Pedi pra que ele me mostrasse fontes e prontamente me foram enviados artigos jornalísticos. Não achei as citações sobre o anime em questão nos sites que ele me enviou.
Passei meses acompanhando os casos até ele chegar aqui no Brasil já com o nome Baleia Azul. Essa corrente de pensamento acabou lembrando-me da construção do mito do Slender e como ele “adentrou o mundo real” com as duas meninas em Wisconsin em 2014.
Tenho bastante interesse em creepypasta, e em como ficções tendem a direcionar nosso entendimento de mundo. A partir do que chamam de fé e de como ressignificamos as coisas ao nosso redor, isso vale pra memória. Yukio Mishima, afirma em “Confissões de uma máscara”, lembrar-se de cenas referentes ao seu nascimento. Não seria errado duvidar e atribuir tais cenas à fertilidade de sua imaginação, preenchimento de lacunas. Não é tão incomum acharmos relatos de pessoas que apagaram de suas mentes determinados fatos ou que acabam escolhendo resignificar sua realidade para suportar determinado trauma ou atravessar um momento difícil.
Aí entraria religião, Deus e tudo baseado em palavras escritas, repetidas, traduzidas, interpretadas e reinterpretadas ao longo dos séculos de cultura que povoam nossa mente de imagens.
Com tudo isso no liquidificador, fui acompanhando a narrativa do disco-site- livro se desenvolver a partir do eu lírico que compartilha dos mesmos interesses e de um isolamento tão atrelado à máquina que passa a fazer dela uma extensão sua. Perdi dois contemporâneos enquanto o Corrupted Data 蝶とクジラ estava sendo produzido. Ambos se foram repentinamente. De um foi dito que teve um infarto. O outro aparentemente cometeu suicídio, dependendo de como decidimos interpretar. Os temas em si foram se atrelando, fechando-se e se tornando um só. Na mesma época, estava terminando a leitura de Oyasumi Punpun, mangá de Inio Asano. Lá estava, da forma mais nua e crua possível, o isolamento, a tentativa de ouvir Deus e resignificar as coisas ao redor.
Minha própria condição desde a adolescência e minha história estão indubitavelmente escancaradas no disco. Esse recôndito de memórias é meu também. Devo ser eu o eu lírico do protagonista do disco e não o inverso.
O que veio antes e o vem depois?
No mesmo mês do lançamento do Corrupted Data蝶とクジラ, agosto de 2018, foi lançado o filme Yonlu [1]dirigido por Hique Montanari. A lembrança disso me remeteu à temática explorada pelo Corrupted Data蝶とクジラ. Apesar de ter ressalvas sobre o ponto de vista adotado pela narrativa em pontos bem específicos, fiquei impressionado com a identificação que surgiu a partir do cotidiano retratado ali. O filme teve um forte efeito em mim, tem um grande êxito ali em conseguir expressar de forma lúdica e pungente toda aquela inquietação e melancolia juvenil de um jovem que provavelmente ainda tinha muito a dizer.
A continuação do Corrupted Data蝶とクジラ é um novo disco, a ser lançado em março de 2019, chama-se Corrupted Data孤独死. As poucas pessoas pra quem enviei até agora me questionaram antes de fazer o download “Ué, você está me enviando o Corrupted Data de novo?”. Mas o subtítulo é outro, vale atentar para o 孤独死. O disco, em si, termina de expor o que existe nos confins mais fundos das memórias digitais. Algumas faixas gravadas em momentos muito específicos da minha vida, lançadas sob pseudônimos como Ceticências, na época em que era um projeto solo, e Santa Rosa’s Family Tree e que outrora havia resolvido excluir definitivamente foram resgatadas e retrabalhadas como faixas novas, ao lado de outras composições que surgiram em resposta tanto a elas quanto ao Corrupted Data蝶とクジラ. Com ele, virão novos vídeos e upgrades no site corrupteddata.xyz.
Na esteira do processo inicial de tentar relacionar Serial Experiments Lain a uma onda de suicídio entre jovens, acabei descobrindo o TSUKI project que acabou presente no site. A influência de Lain é literal e também imagética no site deles. Não é difícil se perder tentando aprender todos os conceitos que envolvem o systemspace. É um grupo-fórum que promove uma pós-vida digital, porém consideram o suicídio algo negativo que estragaria o fluxo energético. Na página inicial do site deles, no tópico “Our Mission” eles já se colocam como um grupo que NÃO PROMOVE o suicídio.
[1] Matéria sobre Yõnlu publicada na revista Rolling Stone n°18 por Marcelo Ferla — Março de 2008
Cadu Tenório é músico e artista carioca. Produz música com os projetos ‘Sobre a Máquina’, VICTIM!, Ceticências, Banquete, Gruta e Vaso, além de sob seu próprio nome, Cadu Tenório. Já colaborou com inúmeros artistas que vão da música experimental à canção popular brasileira, tais como Thomas Rohrer, J.-P. Caron, Marcos Campello, Paal Nilssen Love, Juçara Marçal, Lívia Nestrovski, Rogério Skylab, Romulo Fróes entre outros. Dirige o selo independente TOC, ao lado do também músico Thiago Miazzo. Em 2018, Cadu lançou o trabalho multimídia Corrupted Data蝶とクジラ que vem sendo apresentado como um disco/site/livro. É o trabalho mais extenso do artista até então.
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