John Cage: A Escola de Nova Iorque - Músicos e Pintores

Editor da Zumbido
Zumbido
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12 min readMay 10, 2019

A música da mudança em cinco fragmentos, por Gabriela Garcia

Que diabos exatamente é a tradição experimental?

Morton Feldman

No período posterior à Segunda Guerra Mundial, nos Estados Unidos, a pintura era vanguarda para a música, e foi em grande parte pela sua influência que a música foi se desvinculando da linguagem tradicional e da necessidade de significação. Os pintores da chamada Escola de Nova Iorque que transformaram as artes plásticas exerceram influência sobre compositores como John Cage e Morton Feldman, que por sua vez se influenciaram mutuamente e outros musicistas. No mundo da Música, ao referir-nos à Escola de Nova Iorque, é mais provável que estejamos referindo-nos apenas aos músicos.

Há também uma grande superposição entre os termos usados para referir-se aos pintores de vanguarda da época — expressionismo abstrato e Escola de Nova Iorque –, muitas vezes usados como sinônimos, o que gera razoável confusão. Se expressionismo abstrato é o nome do movimento nas artes plásticas, Escola de Nova Iorque é o nome do grupo informal composto por muitos desses pintores que, aliados ao grupo de músicos dos quais falamos aqui — John Cage, Morton Feldman, Christian Wolff, Earle Brown e David Tudor –, a poetas como Frank O’Hara e bailarinos como Merce Cunningham,[1] estiveram em atividade no grande período entre os anos 1940 e 1950, estendendo-se um pouco pelos anos 1960.

John Russell (1981, p.308) lembra que o nome “Escola de Nova Iorque” é, de várias formas, a-histórico, e mais conveniente do que realmente preciso:

não havia uma escola, no sentido de uma instituição de ensino, no sentido de uma ortodoxia ou corpo de crenças compartilhado, ou no sentido de um grupo de artistas que expunham juntos, como os Impressionistas Franceses. Não havia sequer o tipo de atividade unificada que a palavra geralmente implica.

Durante o pós-guerra, o expressionismo abstrato foi o movimento artístico norte-americano que colocou Nova Iorque no centro do mundo artístico. O nome expressionismo abstrato remete à intensidade emocional e expressão do Expressionismo alemão e à estética não figurativa das escolas abstratas europeias (como o Futurismo e o Cubismo). Apesar do nome, o movimento devia mais ao Surrealismo (pela ênfase no automatismo e na intuição) do que ao próprio Expressionismo. O expressionismo abstrato é tido como rebelde e anárquico, e caracterizou-se pela ideia de que a arte é não representativa e sobretudo improvisada.

Os vários pintores do movimento tinham cada um seu próprio estilo, mas em geral eles partilhavam características em comum, como por exemplo, o fato de tratar todas as partes da tela com igual importância (quero dizer, não necessariamente o centro era o mais importante), “a preferência por trabalhar em uma escala muito grande, […e] a glorificação do próprio ato de pintar” (Chilvers, 1999, p.6).

A figura mais destacada foi provavelmente Jackson Pollock (1912–1956). Pollock usou técnicas como o dripping ou “gotejamento”, pingando tinta em telas enormes, pintando com a tela no chão, o que permitiria estar “dentro” do quadro. Ele levou a action painting — literalmente “pintura de ação” (ou pintura gestual) — ao auge: para Pollock, a tinta podia ser pingada, espirrada, esguichada, borrifada, derramada, jogada ou espalhada sobre a tela em vez de cuidadosamente aplicada, assim enfatizando o próprio ato de pintar, ou seja, o processo. O uso da totalidade da tela dava lugar a um continuum na criação. Não podemos saber se havia ou não intencionalidade nos resultados de Pollock, mas podemos ver um paralelo entre sua forma de encarar a pintura e o uso do acaso, a ênfase no processo e a não representatividade, todos elementos que John Cage usaria.

Number (1948), de Jackson Pollock | Fonte: https://www.jackson-pollock.org

A outra figura das artes plásticas que relacionamos a Cage é Robert Rauschenberg (1925–2008), muitas vezes visto como a personagem que fez a transição do expressionismo abstrato para o pop. Ele se matriculou em 1948/9 no Black Mountain College, e logo se alinhou à estética de Cage, que aí lecionava. Em 1951 Rauschenberg produziu a série white paintings, cujas telas são pintadas com tinta branca e respondem às mudanças de luminosidade do ambiente em que estão. Foi essa série, entre outros fatores, que influenciou Cage a compor a peça 4’33” no ano seguinte. Rauschenberg frequentemente dizia que queria trabalhar “na brecha entre a arte e a vida”, enquanto Cage igualaria a música à vida e diria que tudo o que fazemos é música.

White Painting (1951), de Robert Rauschenberg | Fonte: MOMA (https://www.sfmoma.org/artwork/98.308.A-C)

Já o grupo de músicos era formado fundamentalmente por Cage, pelos compositores Morton Feldman (1926–1987), Earle Brown (1926–2002) e Christian Wolff (1934-) e pelo pianista David Tudor (1926–1996). Vale a pena falar brevemente de cada um:

Morton Feldman conheceu Cage em 1949, começando então uma ligação decisiva para a música experimental. Os pintores da Escola de Nova Iorque incentivaram Feldman a procurar um mundo sonoro mais imediato e físico, e a influência das artes visuais chegou ao novo sistema de notação musical gráfica que Feldman desenvolveu no começo dos anos 1950 e usou até aproximadamente 1958. Cage, por sua vez, influenciou-o a escrever obras sem relação com os sistemas composicionais passados, sem as restrições da harmonia ou da técnica serial. Cage encorajava Feldman a usar a intuição nas composições, e este que passou a compor sem um sistema que pudesse ser facilmente identificado. As experiências de Feldman, por sua vez, inspiraram Cage a escrever obras estruturadas pelo acaso como Music of Changes.

Feldman foi abandonando a notação gráfica entre 1953 e 1958 por acreditar que esgotara suas possibilidades e pela excessiva liberdade que dava ao executante, mas depois de um período de notação convencional, durante o qual sentiu as limitações que esta lhe impunha, decidiu voltar à notação gráfica, com modificações, em algumas peças, como Atlantis (1959), Out of Last Pieces (1961), The King of Denmark (1964) e In Search of an Orchestration (1967).

The King of Denmark (1964), de Morton Feldman interpretada por Max Neuhaus. Uma notação importante, é que esta gravação deve ser tocada num volume muito baixo "para que você quase não o ouça"

Assim como Cage, Feldman também escreveu textos, mas em quantidade muito menor. A maior parte está reunida em Give My Regards to Eighth Street, obra na qual discorre sobre vários temas da música experimental e seu encontro com Cage, Brown e Wolff, e no qual os nomes de Boulez e Stockhausen aparecem como representantes de muito do que haveria de errado com a música do século XX.

Earle Brown, ao estabelecer seus próprios sistemas notacionais, revigorou a música clássica por meio da improvisação. De acordo com William Bland (in: Grove, 1980, p.341), seu interesse na obra de Alexander Calder[2] e Jackson Pollock teve grande influência sobre sua arte. A convite de Cage, Brown foi para Nova Iorque no começo dos anos 1950 para participar no projeto Música e Fita Magnética com Cage e Tudor e uniu-se ao grupo.

Brown trabalhou com a notação gráfica desde 1952: suas primeiras obras gráficas foram November 1952 e December 1952, esta última totalmente gráfica, sem sinais tradicionais, e provavelmente a mais famosa. Ele também enfatizou a forma-aberta a partir de 1953. A primeira obra desse tipo de Brown foi Twenty-Five Pages (1953), com 25 páginas de fato para serem colocadas em qualquer ordem, inclusive invertidas (de cabeça para baixo). Suas peças de forma aberta foram influenciadas pelos móbiles de Calder; um exemplo típico é Available Forms I (1961). A obra de Brown, no entanto, ao contrário da de Cage, dá mais ênfase à escolha do que ao acaso.

Available Forms I, de Earle Brown, substancialmente influenciada pelos móbiles de Alexander Calder

Christian Wolff nasceu na França, mas mudou-se para os Estados Unidos em 1941, naturalizando-se em 1946. Wolff uniu-se a Cage e ao grupo de compositores no começo dos anos 1950. Assim como Cage, Wolff deu grande importância ao silêncio, usando-o abundantemente, e também procurou eliminar o senso de objetivo e clímax da música, preferindo dar uma sensação de estatismo, enfatizando a atenção nos sons individuais, em vez de em progressões.

Segundo Bland (ibidem, p.503–4), Wolff queria que os executantes moldassem a música de uma forma mais ou menos livre, eliminando a autoridade de um regente. Ao longo de suas obras, o espaço que veio a dar para as escolhas dos executantes levaria a uma característica improvisatória, especialmente nas obras posteriores a 1966. Ele mesmo descreveu grande parte do seu trabalho como “variavelmente indeterminado […] permitindo aos executantes espaço e liberdade no uso do material notado e, ao mesmo tempo, interdependência […] exigindo que toquem de um forma específica” (Art of the States, s.d., s.p.).

Electric Spring 2, de Christian Wolff, o compositor queria que os executantes moldassem sua música de uma forma mais ou menos livre

David Tudor era o pianista do grupo, e mais tarde passou também a compor. Tudor tocou obras tanto de compositores da avant-garde europeia, como Boulez e Stockhausen (este último dedicou a ele a peça Klavierstück VI), quanto dos compositores da música experimental. Ele e Cage se aproximaram quando ambos foram professores do Black Mountain College, e Tudor ficou especialmente associado a Cage e à Escola de Nova Iorque. Como diria Alan Rich (1995, p.155), “o destemido pianista David Tudor provou ser uma valiosa nova aquisição para o círculo de Cage”. Afinal de conta, foi Tudor quem estreou Music of Changes e 4’33’’. Cage afirmou que muitas de suas composições foram pensadas para que Tudor as executasse, e ambos trabalharam juntos em muitas das peças de Cage, tanto obras para piano quanto eletrônicas. Depois que Cage deixou o cargo em 1966, foi Tudor quem passou a dirigir a companhia de dança de Merce Cunningham.

Os cinco músicos se tornaram amigos entre si e também de vários artistas plásticos da Escola. Eles participaram em Project: Sound [Projeto: Som] trabalhando juntos “para produzir Williams Mix, de Cage; Intersection, de Feldman; For Magnetic Tape, de Wolff e Octet, de Brown” (Pritchett, 1996, p.105). Mantiveram muito contato entre 1950 e 1954, mas se afastaram um pouco a partir desse ano, com a mudança de residência de Cage e de Tudor. Sobre o conjunto, Alan Rich (1995, p.155–9) comenta:

Eles formavam um grupo heterogêneo: Feldman, com uma autoconfiança nova-iorquina que escondia as miniaturas musicais quase-silenciosas; Wolff, o francês sério e elegante a quem Cage uma vez nomeou “o mais importante compositor de sua geração”; o ascético Brown, naquele tempo fascinado pela relação entre o expressionismo abstrato na pintura e a atonalidade schoenberguiana; o acadêmico e brilhante pianista Tudor, receptivo à gama completa de criatividade.

Eles se encontravam frequentemente, em cafés ou em seus apartamentos, discutiam ferozmente os méritos de suas obras mais recentes e também da música do mundo exterior. Discutiam e formulavam as possibilidades de expandir vastamente o âmbito expressivo, libertando a música de elementos restritivos como a necessidade de relacionar os sons uns aos outros e assim sugerir a percepção de uma estrutura total na memória do ouvinte. […] A afinidade mais forte parecia existir entre o grupo de Cage e os pintores do expressionismo abstrato, mais ainda do que com a maioria dos outros compositores (com exceção de Cowell e, esporadicamente, Varèse).

James Pritchett corrige o fato de Feldman, Wolff e Brown serem frequentemente considerados alunos ou pelo menos seguidores de Cage (provavelmente pelo fato de serem mais jovens), lembrando que todos conviviam e compartilhavam suas obras, mas não havia relações de aluno-professor, e tanto os outros compositores se inspiravam na obra de Cage quanto vice-versa (disse, por exemplo, que Cage se inspirou na notação gráfica de Feldman). Ainda assim, John Cage é habitualmente considerado a figura central do grupo, um líder, poderíamos dizer, incentivando a busca pela liberdade criativa em seus amigos.

Além de incorporar técnicas conhecidas de seus contemporâneos, eles inventaram algumas técnicas próprias. Os músicos da Escola de Nova Iorque exploraram a notação gráfica, como mencionei, que utiliza desenhos que por analogia devem transmitir o que o compositor quer. Griffiths divide a notação gráfica entre as que correspondem a necessidades compositivas específicas que não são supridas pelos símbolos convencionais (como as Projections, de Feldman) e gráficos que visam ao estímulo e não à simbolização (como December 1952, de Brown). Brown também introduziria uma notação rítmica simplificada, ou notação tempo-espacial, na qual as durações são indicadas por linhas horizontais de acordo com uma escala fixa.

Os compositores também exploraram a forma aberta, móbil ou polivalente. Esses são termos usados para o tipo de obra no qual a ordem de seções ou movimentos é indeterminada, deixada a cargo do intérprete ou do acaso, resultando portanto em performances variáveis. Ela foi primeiramente utilizada por Charles Ives (1874–1954), Percy Grainger (1882–1961) e Henry Cowell (1897–1965), mas foi realmente desenvolvida como indeterminação pelo grupo da Escola de Nova Iorque. Karlheinz Stockhausen faria uso da mobilidade na 11a peça de Klavierstücke (1956) e depois em Zyklus (1959) para solista de percussão (aliando nesta notação gráfica); é também um dos recursos que Pierre Boulez usa em Pli selon pli (1957-). Segundo William Bland, a forma-aberta poderia ser considerada a aplicação auditiva de um processo essencialmente visual.

Segundo Pritchett, no sentido de abrir a obra à indeterminação, Feldman, Brown e Wolff foram tão longe ou mais do que Cage (que preferia enfatizar os ruídos e a experimentação com novas formas de ordenar os sons). Exemplos de obras indeterminadas incluem, além dos citados, a série Intersections, o balé Ixion e a obra para percussão King of Denmark, de Feldman; o Duo for Pianists II, de Wolff; a série de partituras reunidas sob o título Folio, de Brown.

Para Pritchett, a música de Feldman concentrava-se na sonoridade, no som individual, e evitava desenvolvimento e clímax. Assim também a música de Wolff tinha foco “em eventos sonoros individuais em uma textura esparsa” (idem, p.106). Wolff viria a usar estruturas rítmicas graças a Cage, notações inspiradas na notação gráfica de Feldman, e finalmente também a forma aberta. Brown estava preocupado com a questão do tempo, explorando a natureza contínua do tempo e das alturas por meio de notações espaciais.

Havia temas que se tornaram comuns a todos, como a indeterminação, eliminando aquilo que tornava a música “previsível”. Eles contestaram as definições de estrutura, de frase, de sons aceitáveis, enfim, o próprio conceito de obra musical, ampliando os limites do que era definido como música. Contestar os conceitos até então vigentes sobre a música incluía desconsiderar os efeitos que uma obra musical deveria ter sobre o público.

Os compositores da Escola de Nova Iorque romperam com os sistemas composicionais anteriores e com os sistemas teóricos vigentes, inclusive em relação a Schoenberg, no sentido de “deixar os sons serem eles mesmos”, como queria Cage.

Bibliografia

ART of the States. “Christian Wolff”. Disponível em: http://artofthestates.org/cgi-bin/compbio.pl?compname=wolffchristian.

BLAND, William. “Earle Brown”. In: THE NEW GROVE Dictionary of Music and Musicians. Washington: MacMillan, 1980. p.341.

CHILVERS, Ian. A Dictionary of Twentieth-Century Art. Oxford: Oxford University Press, 1999.

PRITCHETT, James. The Music of John Cage. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

RICH, Alan. American Pioneers. Londres: Phaidon, 1995.

RUSSELL, John. The Meaning of Modern Art. Londres: Thames and Hudson, 1981.

[1] É verdade que há mais personagens, mas limito-me aos que concernem a este tema mais diretamente. Muitos incluem na Escola de Nova Iorque os poetas beat como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e William S. Burroughs, mas só falo, e mesmo assim tangencialmente, de algumas das figuras que mais diretamente interagiram com John Cage.

[2] Alexander Calder (1898–1976). Artista e escultor norte-americano famoso por ter inventado o móbile. Calder também criou tapeçarias, litogravuras e pinturas.

Esta série faz parte do especial JOHN CAGE, figura proeminente no campo da música experimental norte-americana, a personagem de maior destaque da chamada Escola de Nova Iorque e seu mais prolífico escritor. Esses textos nasceram da tradução de uma seleção de textos de autoria do próprio Cage, organizados por Gabriela Garcia.

Leia o primeiro texto John Cage: Renovação na Música.

Gabriela Garcia é formada em Produção Editorial pela ECA- USP e em Música pelo Instituto de Artes da Unesp. Fez preparações e revisões de texto para a Edusp e Edunesp e traduções e versões de inglês e espanhol para outros projetos. Especializou-se em textos de música e artes (Mestrado em Estética Musical, com a dissertação “Silêncio, sons e acaso, uma pesquisa, seleção, tradução e comentário de textos de John Cage”, também pela Unesp). Trabalhou por um ano para a Revista Concerto e em projetos para a Santa Marcelina Cultura/Emesp. Redigiu um dos textos do projeto do Selo Sesc para o CD Cage+ e fez as versões em inglês do respectivo site e encarte. Segue realizando trabalhos para editoras e particulares (sobretudo professores universitários e seus orientandos) e, especialmente, para a Edunesp e o Selo Sesc.

ilustrações por Rodrigo Visca — artista plástico e ilustrador, vive e trabalha na cidade de São Paulo, onde nasceu. Desde 2003 atua como artista visual e colaborador do Jornal Folha de São Paulo e possui trabalhos publicados nas principais revistas e veículos de comunicação do Brasil e exterior. Participa de ex­posições coletivas, individuais, feiras, projetos de arte, comunicação e educação. O comportamento humano contemporâneo atualmente é uma de suas principais fontes de referência para a produção de seu trabalho.

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