John Cage: Música Experimental e Avant-Garde

Editor da Zumbido
Zumbido
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10 min readMay 16, 2019

A música da mudança em cinco fragmentos, por Gabriela Garcia

Não consigo entender por que as pessoas têm medo de idéias novas. Eu tenho medo das velhas.

John Cage

Alan Rich conta que, assim como a pintura, a música norte-americana também estava atrasada em relação à literatura. Os primeiros compositores “sérios” norte-americanos copiavam seus antepassados europeus: “compositor americano, compositor estrangeiro: não era fácil distinguir ente eles nas últimas décadas do século XIX” (Rich, 1995, p.26). Com poucas exceções, era o estudo na Europa que dava respeitabilidade ao compositor. Mas começando por volta de 1900, os pioneiros começaram a ganhar liberdade musical e criar música distinguível da europeia.

Ainda segundo Rich, os principais antecessores de Cage teriam sido Charles Ives (1874–1954), Henry Cowell (1897–1965) e ainda Edgard Varèse (1883–1965), nascido na França, mas radicado nos Estados Unidos em 1915 e naturalizado norte-americano depois de 1916. As obras de Ives antecipam muitos dos procedimentos que viriam a ser usados mais tarde. As peças de uma primeira fase de Varèse tinham ficado em um depósito em Berlin e foram queimadas em um levante socialista, aparentemente para o alívio do compositor, que fez tábua rasa. Ele passou a dedicar-se à nova música e fez experiências com sons e combinações de instrumentos, e mesmo fita e música eletrônica (ao redor de 1953). Cowell interessava-se pela música de outras culturas e introduziu instrumentos orientais junto aos ocidentais. Ele também foi o pioneiro dos ­­­clusters e já tratava o piano de forma não convencional, tocando as cordas diretamente ou usando várias técnicas às quais ele se referia em conjunto como string piano (piano de cordas). Foi ainda amigo e biógrafo de Ives e viria a ser professor de Cage: vale lembrar que foi ele quem estimulou Cage a assistir suas aulas de composição contemporânea e música não ocidental na New School for Social Research em Nova Iorque, onde Cage passou o ano de 1933.

Edgard Varèse (1883–1965), um dos principais antecessores de Cage | Foto: Dorothy Norman, NY, circa 1940

Na sua Declaração Autobiográfica (1989), Cage lembra:

por sugestão de Cowell (baseada nas minhas composições de 25 notas que, apesar de não-seriais, eram cromáticas e requeriam a expressão em uma só voz de todas as 25 notas antes que qualquer uma delas fosse repetida) fui para Adolph Weiss como preparação para estudar com Schoenberg.

Já nos Estados Unidos dos anos 1930, segundo James Pritchett (1996, p.7), a maioria dos compositores sentia que eles “tinham que escolher entre o neoclassicismo de Igor Stravinsky e o estilo atonal e predominantemente contrapontístico de Schoenberg”. Mas Cage passou a ver seu próprio papel de outra forma: “em vez de alinhar-se a Schoenberg ou Stravinsky, neste manifesto [O Futuro da Música: Credo] ele se colocou justamente no campo ‘experimental’” (idem, p.10–1).

Lembremos aqui que antes de se opor a qualquer uma dessas linhas, Cage tivera muito antes, então com 22 anos, em 1934, em Los Angeles, aulas particulares de composição com o próprio Arnold Shoenberg por pouco tempo, no que “parece ter sido uma contínua nuvem de protestos de ambas as partes” (Rich, 1995, p.145):

Quando pedi a Schoenberg para ensinar-me, ele disse: “Você provavelmente não pode pagar meu preço”. Eu disse: “Nem vamos falar nisso, eu não tenho nenhum dinheiro”. Ele disse: “Você devotará sua vida à música?”. Esta vez eu disse: “Sim”. Ele disse que me ensinaria de graça. (Cage, 1989, s.p.)

Vários autores contam a conversa que teria se seguido às aulas. Teria se tornado claro para Schoenberg e Cage que este último “não tinha senso para a harmonia” (idem, ibidem). “Portanto, ele disse, eu nunca seria capaz de escrever música. ‘Por que não?’ ‘Você chegará a uma parede e não conseguirá atravessá-la’. ‘Então vou passar o resto da minha vida batendo a cabeça contra essa parede’” (ibidem). Schoenberg lhe disse que ele não era realmente um compositor, mas um inventor, palavras que agradaram a Cage.

Tempo depois, com Cage casado com Xenia Andreyevna Kashevaroff, que sua música de percussão era tocada à noite pelos encadernadores amigos da esposa. A esse respeito, ele conta: “Convidei Schoenberg a uma de nossas performances. ‘Estou ocupado’. ‘Você pode vir na semana seguinte?’ ‘Não, estou ocupado sempre’”.

E antes de falar da música experimental da Escola de Nova Iorque e de John Cage em particular, cabe fazer um breve aparte para distinguir os termos vanguarda e música experimental. Sem entrar em maiores discussões sobre os limites precisos dos conceitos, podemos considerar ambas como a música produzida no meio do século XX e que desafiou as definições habitualmente aceitas até então. Incluem-se, portanto, a música aleatória e as partituras gráficas, o uso de novos sons, e técnicas não convencionais de performance.

No sentido de desafio aos conceitos habitualmente aceitos, há uma superposição da música experimental com a música de vanguarda. A vanguarda ou avant-garde teria sido originalmente, no século XIX, associada à promoção do progresso social, mas depois, no século XX, teria se transformado em um movimento principalmente voltado a expandir os limites da experiência estética. As propostas estéticas da avant-garde musical podem ser encontradas nos escritos de Pierre Boulez (1925–2016), e o termo teria passado a ser usado mais amplamente no contexto musical somente depois da Segunda Guerra distinguindo a música europeia do próprio Boulez, de Luigi Nono (1924–1990), Luciano Berio (1925–2003) e Karlheinz Stockhausen (1928–2007), por exemplo, em oposição à música experimental norte-americana, predominantemente de Cage e dos outros compositores da Escola de Nova Iorque, de que falei no texto anterior.

Segundo Paul Griffiths (In: Grove, 1980, p.743), a diferença seria que a música de vanguarda, “mesmo sem receber aclamação popular, é amparada por festivais internacionais, autoridades de difusão e companhias de gravação” e universidades. Ou seja, enquanto a vanguarda é reconhecida oficialmente, alguns autores veem na música experimental a música dos “poetas malditos”[1], artistas também não convencionais porém nem sempre reconhecidos, como Cage e La Monte Young. O protótipo seria “Ives, que trabalhou como iconoclasta e não fez nada para promover sua música, embora [certa qualidade] de Satie também o torne um importante progenitor” (Griffiths, 1995, p.150). Griffiths sublinha que mesmo aceitando a distinção, o termo avant-garde permanece mais como slogan do que como definição. Ainda assim, no sentido dessa distinção, parece que o próprio Cage teria estado de acordo. Ainda em History of Experimental Music in the United States, ele indaga:

Por que, já que o clima para a experimentação é tão bom na América, por que a música experimental americana tem tão pouca força política (ou seja, não tem apoio dos que têm dinheiro — indivíduos ou fundações –, não é publicada, não é discutida, é ignorada), e por que há tão pouco dela que é verdadeiramente descomprometido? Creio que a resposta seja esta: até 1950 quase toda a energia para promover a música na América estava concentrada ou na Liga de Compositores ou no ISCM[2] (outra forma de dizer Boulanger e Stravinsky por um lado e Schoenberg por outro). A New Music Society de Henry Cowell era independente e portanto politicamente fraca. Qualquer coisa distintamente experimental era desencorajada pela Liga e pelo ISCM. (Cage, 1959/61, p.73–4)

E mais adiante:

podemos reclamar que a sociedade de músicos na América nem reconheceu, nem promoveu seus recursos nativos (e por “nativo” quero dizer o recurso que o distingue da Europa e da Ásia, sua capacidade de romper facilmente com a tradição, de mover-se facilmente pelo ar, sua capacidade para o imprevisível, sua capacidade de experimentação). (idem, p.74)

Ainda em History of Experimental Music in the United States, Cage elabora mais sobre o conceito e nos mostra seu ponto de vista sobre o que não seria experimental. Ele cita uma série de compositores tidos na época como experimentais, mas que não o são no seu próprio entender — Leo Ornstein, Dane Rudhyar, Alan Hovhaness, Lou Harrison, Henry Brant, Ruth Crawford, Gunther Schuller, Harry Partch, Virgil Thompson –, e mesmo suas próprias composições para piano preparado entram nesse rol:

Se usamos a palavra “experimental” (de forma uma pouco diferente da qual eu estive usando) querendo dizer simplesmente a introdução de elementos novos na nossa música, vemos que a América tem um história rica […]. Esses não são compositores experimentais na minha terminologia, mas também não são parte do fluxo de música europeia que apesar de antes estar dividida em neoclassicismo e dodecafonismo tornou-se uma só na América sob o termo de Arthur Berger — consolidação: consolidação das aquisições de Schoenberg e Stravinsky. (Cage, 1959/61, p.73)

A mera introdução de um elemento novo não é suficiente para que Cage considere algo como música experimental, nem a introdução de elementos que poderiam ser atribuídos, na verdade, ao ecletismo:

O que mais há para dizer sobre a história da música experimental na América? Provavelmente muito. Mas não precisamos falar sobre o neoclassicismo […] nem sobre o sistema dodecafônico. […] O interesse atual de Cowell nas várias tradições, das orientais às antigas americanas, não é experimental mas sim eclético. O jazz per se provém da música séria. E quando a música séria provém dele, a situação torna-se bastante tola. (idem, p.72)

Se o que pode ser considerado “vanguarda”, no sentido de reconhecido oficialmente, não é experimental, e mesmo o que outros consideram experimental não o é para Cage, já que elementos novos e ecletismo não bastam, o que então é música experimental em seu entender? Novamente, nada melhor do que recorrer diretamente ao próprio Cage:

Qual é a natureza de uma ação experimental? É simplesmente uma ação cujo resultado não está previsto. Ela é, portanto, muito útil se tivermos decidido que os sons devem ter seus direitos, mais do que ser explorados para expressar sentimentos ou ideias de ordem. Entre essas ações cujos resultados não estão previstos, as ações resultantes de operações de acaso são úteis. (idem, p.69)

Ainda em 1957, em Música Experimental, Cage lembrava como anteriormente ele se opusera a que chamassem sua música “experimental”, já que as experiências teriam tido lugar antes de as obras terem sido terminadas (“obra terminada” — outro conceito que depois viria a questionar) e que os compositores sabiam o que faziam. Ele relembra o fato e continua: “a música mudou, e eu não mais me oponho à palavra ‘experimental’. De fato, eu a uso para descrever toda a música que me interessa especialmente e à qual me dedico, seja escrita por outra pessoa ou por mim mesmo” (Cage, 1957/61, p.7).

Se por um lado há semelhanças entre música experimental e música de vanguarda, por outro interessa compreender as diferenças que os termos habitualmente implicam (diferenças históricas, geografias e entre compositores),[3] e mais ainda, para este trabalho, interessa ser precisos em relação ao que Cage entendia como música experimental, a “sua” música: Cage relaciona, pelas suas palavras, o conceito de música experimental ao conceito de acaso, ao imprevisto, a certo grau de liberdade, pondo em xeque o próprio conceito de obra, não somente em seus textos mas por meio de sua obra musical. Nesse sentido e pelas suas definições é que temos Cage como expoente da música experimental.

Cage na casa de Dorothea Tannin em Paris (1981)| Foto: Marion Kalter

Bibliografia

CAGE, John. Silence: Lectures and Writings. Middletown: Wesleyan University Press, 1961.

______. An Autobiographical Statement. Apresentado como palestra pelo recebimento do prêmio de Kyoto em novembro de 1989 e publicada por primeira vez em Southwest Review, 1991. Disponível em: http://www.newalbion.com/artists/cagej/autobiog.html.

GRIFFITHS, Paul. Modern Music and After. Oxford: Oxford University Press, 1995.

______. “Aleatory”. In: THE NEW GROVE Dictionary of Music and Musicians. Washington: MacMillan, 1980. p.237–42.

PRITCHETT, James. The Music of John Cage. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

RICH, Alan. American Pioneers. Londres: Phaidon, 1995.

[1] termo referente a Charles Baudelaire (1821–1867), poeta francês.

[2] International Society for Contemporary Music (nota minha).

[3] Cage afirmava então que a música experimental norte-americana e as operações de acaso estavam sendo introduzidas na música europeia, mas que “não [seria] fácil, no entanto, para a Europa deixar de ser Europa. Mas ela o fará, porém, e deve fazê-lo: pois o mundo é um mundo agora” (Cage, 1959/61, p.75).

Esta série faz parte do especial JOHN CAGE, figura proeminente no campo da música experimental norte-americana, a personagem de maior destaque da chamada Escola de Nova Iorque e seu mais prolífico escritor. Esses textos nasceram da tradução de uma seleção de textos de autoria do próprio Cage, organizados por Gabriela Garcia.

Leia também: John Cage: Renovação na Música e John Cage: A Escola de Nova Iorque — Músicos e Pintores

Gabriela Garcia é formada em Produção Editorial pela ECA- USP e em Música pelo Instituto de Artes da Unesp. Fez preparações e revisões de texto para a Edusp e Edunesp e traduções e versões de inglês e espanhol para outros projetos. Especializou-se em textos de música e artes (Mestrado em Estética Musical, com a dissertação “Silêncio, sons e acaso, uma pesquisa, seleção, tradução e comentário de textos de John Cage”, também pela Unesp). Trabalhou por um ano para a Revista Concerto e em projetos para a Santa Marcelina Cultura/Emesp. Redigiu um dos textos do projeto do Selo Sesc para o CD Cage+ e fez as versões em inglês do respectivo site e encarte. Segue realizando trabalhos para editoras e particulares (sobretudo professores universitários e seus orientandos) e, especialmente, para a Edunesp e o Selo Sesc.

ilustrações por Rodrigo Visca — artista plástico e ilustrador, vive e trabalha na cidade de São Paulo, onde nasceu. Desde 2003 atua como artista visual e colaborador do Jornal Folha de São Paulo e possui trabalhos publicados nas principais revistas e veículos de comunicação do Brasil e exterior. Participa de ex­posições coletivas, individuais, feiras, projetos de arte, comunicação e educação. O comportamento humano contemporâneo atualmente é uma de suas principais fontes de referência para a produção de seu trabalho.

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