No fluxo dos paredões

Editor da Zumbido
Zumbido
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25 min readApr 12, 2019

Mundos sonoros nos limites da cidade, por Meno Del Picchia

“Era dia 15 de dezembro de 2017, uma sexta-feira num bairro periférico da capital paulista. Saímos eu e Bonito, por volta das 23:30 em busca dos fluxos de funk da quebrada. Paramos próximos a um paredão estacionado na frente do bar Hi Tech, rua 4 de Junho, bem perto da casa do Bonito. Não era exatamente um paredão, era um carro com aparelhagem de som bem potente, tocando funks num volume muito alto. Um youtuber conhecido meu, que faz uma série de vídeos dos bailes que frequenta em Sampa, vem encontrar a gente hoje porque dei a dica, via whatsapp, desse fluxo que estava começando perto do Hi Tech. Tinha outra camionete com som estacionada perto, mas o som do carro no Hi Tech era mais potente e engolia o som da camionete. Ficamos por ali observando, dançando e bebendo, eu, Bonito e a Lara, sua namorada. O som é ensurdecedor.

Andamos mais um pouco ao redor. Muitos carros com som tocando ao mesmo tempo em alto volume. Voltamos pro fluxo da 4 de Junho. Estava começando a estralar. O público formado por jovens, que me parecem ter entre 15 a 25 anos em sua maioria, lotava a rua nos dois lados, deixando um espaço mínimo no meio para veículos e motos atravessarem. As mulheres dançavam em geral mais que os homens, mas em alguns lugares o aperto era tanto que não dava para dançar direito. Uma cena me chamou a atenção: quatro motos se emparelharam no meio da multidão do fluxo e seus respectivos donos ficaram acelerando alto. Começaram acelerar com ritmo como se estivessem tocando as motos e disputando o volume com os sistemas de som dos carros. O escapamento das motos eram como alto-falantes, e que junto com os alto falantes dos carros compunham a polifonia caótica da noite.

De volta para casa, por volta das duas da manhã, paramos num sistema de som de carro tocando forró bem perto da casa do Bonito. Bonito gosta mais de forró. Assim como os jovens, as pessoas mais velhas também botam sistemas de som na rua num volume ensurdecedor, mas normalmente tocam forró eletrônico ao invés de funk. Me ocorreu que existe uma questão geracional. Os mais jovens tocam funk e os mais velhos tocam forró eletrônico. Não é uma divisão rígida, é apenas uma percepção andando pelo bairro. O funk e o forró eletrônico produzem a paisagem sonora polifônica da favela. Tem artista famoso, como Wesley Safadão, fazendo versão de funk em forró. Os dois universos estão muito misturados.

A unanimidade é que todas as gerações gostam de botar sistemas de som potentes pra funcionar, especialmente de quinta a domingo. Os sistemas de som fazem a festa do bairro, fazem as pessoas irem para as ruas, fazem os bares encherem, produzem as aglomerações. Ao mesmo tempo, incomodam muitos moradores que não estão querendo festa. A Dona Odete, mãe de Bonito, é uma dessas moradoras que fica bem estressada nos finais de semana. Nas palavras dela, “é muita bagunça na favela, som alto, barulho, drogas, o povo bebendo… Quero sair daqui, não aguento mais. Quero vender essa casa!”

Meu amigo youtuber me chamou pelo whatsapp pra colar no fluxo do Hi Tech de novo, mas eu preferi não ir sozinho porque o Bonito já queria ir para sua casa onde estou hospedado. O youtuber me disse depois que a polícia tinha colado no fluxo, tinha molhado o baile, como se costuma dizer, e que depois foi embora e o fluxo retomou até 6 ou 7 da manhã.” (Diário de Campo, etnografia do funk, 15/12/2017).

O trecho acima é do diário de campo da etnografia que estou realizando em São Paulo, cujo objetivo é entender as agências sociais da música funk. Trago aqui, um pouco dessa vivência etnográfica e espero aproximar você — que está lendo e que talvez nunca tenha ido a um baile funk — desse universo tão sonoro. Vale dizer, que por questões éticas resolvi adotar nomes fictícios no caso de algumas ruas e personagens para não expor indevidamente ninguém.

É uma festa de rua que se inicia normalmente ao redor de um paredão de som ou de um carro com sistema de som potente, que normalmente estaciona em frente a um bar.

Quem mora ou frequenta os bairros periféricos da capital paulista, nas bordas limítrofes da cidade, com certeza já se deparou com os fluxos de funk que acontecem nas ruas. O fluxo é a atual configuração dos bailes funk de rua que reúnem milhares de jovens todos os finais de semana em diversas quebradas, em praticamente todas as regiões de São Paulo. Para citar alguns, tem o famoso baile da Dz7 em Paraisópolis, tem o baile do Helipa em Heliópolis, o baile do Iraque na Brasilândia e o baile do Pantanal em Cidade Júlia, na Zona Sul da cidade. É um fenômeno cultural muito forte para passar desapercebido; um fenômeno que envolve música, juventude, carros, motos, álcool, paquera, dança, identidade, sexualidade, machismo, feminismo, lazer, lei do silêncio, polícia, política, violência, criminalidade e uma espécie de culto ao que se costuma chamar de paredões de som. Cada um desses elementos mereceria atenção detalhada e poderia render uma boa discussão, entretanto vou me ater a um deles como astro principal do texto, tentando trazer os outros elementos como satélites ao redor.

Quero explorar aqui, a agência social dos sistemas de som nessas festas de rua, explorar a importância, os significados e o lugar desses sistemas de som no mundo no funk paulistano. Eles são peça chave para entendermos um pouco melhor a sociabilidade periférica urbana e para entendermos um tipo específico de fazer musical contemporâneo responsável por um modo específico de fruição musical coletiva. Vou tratar aqui do contexto paulistano, porque é onde tenho circulado e onde tenho conhecido alguns territórios do funk, mas sei que essa cultura dos sistemas de som existe em outras partes do Brasil e do mundo (as festas de aparelhagem do brega no Pará, os paredões de forró em todo Nordeste, os sound systems de reggae surgidos na Jamaica, as festas de kuduro nas ruas de Angola, entre outros).

Este pequeno recorte etnográfico nos revela alguns aspectos fundamentais do fluxo. É uma festa de rua que se inicia normalmente ao redor de um paredão de som ou de um carro com sistema de som potente, que normalmente estaciona em frente a um bar. Reúne um público predominantemente jovem, das localidades periféricas da cidade. A comunicação para divulgar e encontrar as pessoas nessas festas é quase toda feita via whatsapp como foi meu caso com o jovem youtuber. Os frequentadores dos fluxos se falam via whatsapp. Quando meu amigo contou que a polícia molhou o fluxo, se evidenciou outro aspecto importante, a capacidade de se dispersar rapidamente em caso de repressão, e a capacidade de ser retomado na mesma noite, na mesma rua depois que a polícia vai embora.

Proponho então uma definição (ainda que provisória, porque é uma coisa viva que muda o tempo todo) do que é um fluxo de funk: é uma aglomeração festiva de rua formada de modo espontâneo a partir da ativação elétrica de paredões de som, sistemas de som fixos customizados, sistemas de som automotivos customizados e/ou sistemas de som de fábrica operando em alto volume. Por acontecer na rua, o fluxo de funk é aberto e gratuito, o que tem uma influência na forma como a música funk se propaga.

Por exemplo, é muito raro haver espaço para um MC se apresentar ao vivo num fluxo, justamente pela impossibilidade de se cobrar um ingresso para pagar o cachê do artista.[1] Como é aberto, outros sistemas de som podem ser ligados numa mesma rua, um ao lado do outro, construindo uma paisagem sonora polifônica composta de diversas músicas tocadas ao mesmo tempo.

[1] Muitos MCs que conheci falaram dessa questão do fluxo de rua competir com os shows prejudicando seus trabalhos artísticos. Ao mesmo tempo, os MCs querem ouvir suas músicas tocando na rua nos paredões de som e nos sons dos carros. Seus clipes retratam os fluxos de rua. É uma relação contraditória.

Os paredões são pessoas

Para se ter uma ideia da importância dos sistemas de som no mundo do funk, a maioria dos paredões de som tem nome próprio: Megatron, Magnata, Samuca, Azaração e Galo de Ouro são alguns. O Megatron, por exemplo, tem até canal de youtube, o Oficial Megatron[2]. Os sistemas de som são coloridos e ornamentados com luzes cintilantes. O antropólogo francês Marcel Mauss já dizia que um dos principais aspectos da noção de pessoa é o nome, ou seja, uma nomeação específica faz parte do processo de individuação e de pessoalização de algo.

Normalmente, a gente pensa que somente humanos são pessoas, mas a observação dos sistemas de som na quebrada começou a me instigar a olhá-los como pessoas — no caso pessoas elétricas musicais não-humanas. Porque além de receberem um nome próprio e único, um corpo, uma pintura, um cuidado diário, esses equipamentos são agentes sociais do fluxo. Eles agem no sentido de possibilitarem e/ou promoverem a aglomeração. Sem som alto não tem festa na rua. Sem sistema de som não tem som alto. Os sistemas de som se apresentam então ao observador atento como pessoas elétricas musicais com nome e com capacidade de ação social sobre o ambiente ao redor. Essa ação é sensível aos corpos humanos que dançam nas ruas, produz sensações novas, transforma a realidade num nível corpóreo.

Ouvir um funk batendo num paredão é uma experiência completamente diferente de ouvir o mesmo funk num fone de ouvido, num lap top ou num celular. A gama de frequências reproduzidas, a força das frequências graves, os ataques das frequências agudas, enfim, a fidelidade sonora de um paredão são muito mais intensas. Como disse o músico e produtor Victor Rice no documentário “Grave Na Caixa! O Sound System de Kingston a SP”:

"O Sound System é uma oportunidade de ouvir som Hi Fi… o grave é a parte que todo mundo sente igual porque bate no corpo inteiro… é terapia física… chega lá se você encostar num sub grande grave, essa vibração é muito saudável."

Rice falava sobre os sound systems de reggae, mas podemos dizer algo parecido sobre o paredão de funk, mesmo sabendo que existem muitas diferenças entre os dois contextos. O grave no funk também é extremamente valorizado. DJ FB, um produtor de funk que conheci nas andanças etnográficas, ouviu uma mixagem minha para um funk que eu estava produzindo do MC Tiiga, e disse que faltava grave.

"Mano eu deixo os graves estourarem mesmo, porque senão não toca nos carros, senão a galera não toca no fluxo. Tem que bombar o grave!!"

(DJ FB, comentando a mixagem dos kicks[3] na produção do funk “Calabouço da Ganância” de MC Tiiga, dia 30/11/2016)

Essa fala do DJ FB revela o quanto ele deixa que seu processo técnico musical de mixagem dentro do estúdio seja influenciado diretamente pela forma como as pessoas estão ouvindo o funk nas ruas. Ele sabe das dinâmicas dos fluxos e das dinâmicas dos paredões de som que ocupam as ruas das periferias da cidade. Quando ele valoriza o grave em seu processo técnico ele explicita a ligação entre fazer musical e musicar local do funk na rua. O fazer musical é o processo de criar a gravação dentro de estúdio; o musicar local é tudo que envolve a fruição dessa música numa determinada localidade.

Mas se os paredões agem e recebem nomes como pessoas, o que podemos dizer dos inúmeros tipos de sistemas de som que encontramos espalhados na quebrada? A paisagem sonora de um bairro nos limites da cidade de São Paulo é produzida também por sons automotivos customizados, sistemas de som fixos customizados e sistemas de som mais tradicionais desses que compramos prontos em qualquer loja. E vale dizer, que o forró eletrônico disputa com o funk as listas de reprodução dessa rede de sistemas de som. Esses outros tipos de som não recebem o mesmo tratamento que os paredões. Mas são também extremamente valorizados. Talvez não sejam pessoas, mas com certeza são partes importantes das pessoas humanas que os operam. Um garoto no fluxo passando com um carro tunado não é qualquer garoto; ele adquire um status diferente ali no fluxo. A nave é como uma extensão de seu corpo e de sua pessoa. Vou a seguir me debruçar um pouco sobre esses diferentes tipos de sistema de som.

[3] Kick é a palavra inglesa para chute. Na música, kick normalmente é termo para o bumbo da bateria, que é a peça mais grave e normalmente é tocada com um pedal no pé. O baterista “chuta” o bumbo com o pedal, por isso kick. Na produção musical do funk, kick é toda e qualquer peça percussiva cujo som ocupe as frequências mais graves.

Sistemas de som nas bordas da cidade

Dentre a complexa e gigantesca rede de sistemas de som da quebrada, optei por classificá-los em 4 tipos principais: A. Sistemas de Som Customizados Fixos; B. Paredões de Som; C. Sons de Carro; D. Sistemas de Sons de Fábrica. Vale dizer que na fala cotidiana das pessoas encontramos as expressões “paredão de som” e “som de carro”, ninguém fala sistema de som customizado fixo ou sistema de som de fábrica. Esses dois tipos de equipamento são chamados puramente de “som” e/ou “equipamento de som”.

Estou propondo uma forma de classificar esses tipos diferentes de equipamento de som que leva em consideração as habilidades técnicas de customização de sons presentes dentre os próprios moradores. A customização de alguns sons é um fato que não pode passar desapercebido e que reforça meu argumento de que os sistemas de som são agentes sociais musicais fundamentais. Sons de carro são autoexplicativos e é dessa forma que são chamados, mas os sons de carro customizados são os que chamam mais a atenção e são mais valorizados. Um carro que tem um sistema de som customizado se torna uma nave. Paredão de som é um termo nativo e todo paredão de som é customizado. O que estou chamando de customizado é o sistema de som que é montado sob encomenda ou é montado pelo próprio dono, recebe uma pintura especial, luzes, uma configuração de alto-falantes única e vimos que pode receber um nome. Essa customização dos sistemas de som é comum tanto no funk de São Paulo, quanto no brega do Pará e no reggae jamaicano.

A. Sistemas de Som Customizados Fixos

Vou iniciar a descrição por um sistema de som bem básico que será a matriz primordial para entendermos os outros tipos de sistemas mais complexos. Esses sistemas normalmente são encontrados em bares, restaurantes, lojinhas, barbearias, tabacarias. Chamei de fixos porque não circulam como os paredões e os sons automotivos. Chamei de customizados porque são montados pelos próprios moradores do bairro. Não são sistemas de som de fábrica desses que se vendem em lojas. O exemplo que vou utilizar aqui encontrei na Pastelaria Silva. Caminhando uma manhã pelo bairro, vi o sistema de som numa pastelaria e fui falar com o dono, Marcelo. Perguntei quem havia montado para ele o som. A seguir, reproduzo um trecho do nosso diálogo que revela como existe uma rica cultura dos alto falantes espalhada pela quebrada.

Eu: Quem montou esse som para você
Marcelo (fritando um pastel): Eu mesmo.
Eu: Como você aprendeu a montar som?
Marcelo: Eu trabalhava com elétrica numa firma, então já sabia das coisas, sabia como fazer. Eu mesmo fiz.
Eu: Você faz por encomenda também?
Marcelo: Faço sim.
Eu: Quanto custaria um desse tipo aqui?
Marcelo: Na faixa de uns 2.500 reais. Você compra as peças e eu monto pra você. Você quer de 15 ou 18? Depende de como você quer?
Eu: Como assim?
Marcelo: O falante grave, o subgrave, tem de 15 e de 18. Daí tem os falantes de 12 pro médio, as cornetas e o tuiter de agudo. A caixa de madeira eu mando fazer aqui mesmo. Daí você precisa da potência de amplificação, dos cabos e do receiver.” (Diário de Campo, etnografia do funk, 16/01/18).

Vejam o que pode surgir numa conversa com um dono de pastelaria. Um conhecimento técnico riquíssimo sobre sistemas de som que engloba noções de elétrica, eletrônica e áudio. Marcelo parece entender muito mais desses assuntos do que eu que sou músico desde os 12 anos de idade. Ele ainda comentou que nos finais de semana liga o som bem alto para fazer a festa na rua. A amplificação sonora é um valor dentro da cultura local. Essa valorização do som alto é o que caracteriza uma espécie de culto aos alto falantes.

Foto 1: Sistema de Som da Pastelaria Silva, montado pelo Marcelo.

Na foto acima, podemos observar, bem embaixo, o falante grave de 15 polegadas, no meio o médio de 12 polegadas, logo acima uma corneta de agudo e por último o receiver (desses que colocamos no carro que tem entrada para CDs, pendrive, USB e bluetooth). Escolhi descrever essa configuração porque ela sintetiza o que um bom sistema de som precisa oferecer, é uma mini parede de som, uma paredinha de som. O sistema precisa ser capaz de reproduzir as três grandes regiões do espectro de frequências sonoras: as graves e subgraves, as médias e as agudas.

Normalmente, os sons não customizados não possuem um falante capaz de reproduzir as frequências mais graves e nem as mais agudas. Eles operam mais nas regiões médias. Os extremos de grave e agudo são mais difíceis de serem reproduzidos sem distorção sonora. Por isso, a customização dos equipamentos de som não pode passar desapercebida. A pessoa que monta um som tem um papel ativo no musicar local. Ele determina qual o espectro de frequência que será reproduzido na hora da festa de rua. Marcelo disse que costuma ligar o som alto nos finais de semana tocando principalmente forró eletrônico.

B. Paredões de Som

Como o próprio nome já indica, um paredão de som é uma parede de alto-falantes. Normalmente, ele é montado em cima de um reboque para que possa ser transportado para os locais onde vai atuar. Sua montagem é complexa e cara. No exemplo da foto abaixo, vemos quatro falantes de grave, doze falantes de médio, oito tuiters, dezesseis cornetas de agudo. Além desse conjunto de falantes, lembremos que são necessárias potências de amplificação, receiver, luzes, estrutura de madeira onde os falantes são encaixados. Um paredão de som como esse não sai por menos de 10 mil reais. É a somatória de diversos sistemas mais simples como o descrito anteriormente.

Dentro da própria quebrada, existem alguns fabricantes desses paredões. Julinho é um desses jovens que monta paredão de som. Ele têm 21 anos e possui alguns paredões que aluga nos finais de semana, dentre os quais o Paredão Mandela. O valor do aluguel varia de acordo com o tamanho do paredão. Um paredão médio custa em torno de 500 reais o aluguel. Um paredão maior pode custar 1.000 reais ou mais para ser alugado. Quem arca com o aluguel dos paredões de som normalmente é um dono de bar local. O paredão fica estacionado em frente ao bar tocando em alto volume aglutinando pessoas, promovendo os fluxos de rua, aumentando o consumo de bebidas e o lucro do dono do bar. As músicas que tocam normalmente estão num pendrive comprado em lojas, bares, bancas, e que já vêm com centenas de músicas. Não existe a figura do seletor como no sound system de reggae.

Foto 2: Típico paredão de som estacionado em frente de um bar numa tarde de Domingo, 26/03/2017.

Como eu já disse, os paredões de som possuem nomes e são conhecidos dentro da quebrada. O paredão Azaração, por exemplo, fica todos os domingos num fluxo de funk específico. O paredão as vezes nomeia o fluxo. As pessoas falavam “ah, hoje vou no fluxo do Azaração”. Na foto acima, podemos ver um típico paredão, ornado com luzes, pintura branca e roxa, e um led superior onde é possível inserir textos cintilantes.

Apesar de receber esse nome e de efetivamente ser formado por uma parede de alto-falantes de diversos tamanhos, os paredões se locomovem. A ideia de parede pressupõem uma total fixidez. Ninguém transporta uma parede de tijolos ou de concreto ou mesmo de madeira. Normalmente, quando se constrói uma parede ela é fixa. Os paredões carregam essa ambiguidade, são paredes que se locomovem, são acoplados num carreto que pode ser transportado. Durante a semana eles ficam estacionados em alguma garagem, e de quinta a domingo são transportados para os pontos de fluxo de funk ou para eventos que exijam potência sonora amplificada. Os paredões são fixos quando comparados com os sistemas de som automotivos que grande parte dos jovens com carro instalam e que chamei aqui de sons de carro. São fixos também pela potência elétrica que demandam para operar, ou seja, eles precisam estar ligados numa tomada ao invés de uma simples bateria de carro como no caso dos sons automotivos.

Foto 3: Um jovem próximo a uma nave vermelha no Nitro Point, Mauá 04/03/2018.

C. Sons de Carro

Os sons de carro podem ser divididos em dois tipos: sistemas de som automotivo originais de fábrica ou sistemas de som automotivos customizados. Os primeiros são os equipamentos de som normais que já vêm junto com o carro de fábrica e dispensam grandes explanações. Um som de carro para um jovem do funk é na verdade o que estou chamando de sistema de som automotivo customizado, sendo essa customização o diferencial da cultura funk. Eles são pequenos paredões instalados na parte traseira dos carros. Um carro com um sistema de som desse tipo passa a ser chamado de nave. De fato, alguns desses sistemas de sons são tão grandes que parecem turbinas.

Foto 4: Delorean do filme “De Volta Para o Futuro”.

Os falantes instalados na parte traseira lembram turbinas de uma nave espacial. Alguns sistemas de som desse tipo deixam os carros parecendo muito o “Delorean” do filme “De Volta Para o Futuro”. O Delorean é uma nave. É uma máquina do tempo. É um carro transformado que no segundo filme da série (são três filmes no total) passa a voar. Os carros que circulam nos fluxos de funk também são transformados. São transformados em máquinas de som. Máquinas que amplificam o som e que podem circular transportando o som por diversos locais, e que, eventualmente, podem fugir da polícia quando esta molha o baile.

Um carro no funk é muito mais do que um carro. Existe uma valorização dos carros, e um amplo conhecimento dos tipos, modelos e marcas de carro. Essa valorização ficou evidente no dia em que ofereci carona para um grupo de jovens que estava indo participar da gravação de um clipe de um MC, numa mansão na Zona Norte. Enchi meu Fiat Uno preto 2008 com quatro jovens. No caminho, eles comentavam a marca, o modelo, a velocidade e a beleza dos carros. Sabiam todos os nomes e conheciam muito mais do que eu sobre o universo dos carros. Quando viam um carro mais chamativo eles diziam: “Esse é nave!”. No caso, as naves eram os carros caros, os carros esportivos, os carros transformados e/ou rebaixados. No fluxo de funk, um carro que não é de luxo mas que é transformado com sistema de som customizado, passa a ser chamado também de nave. Meu Uno não era considerado uma nave. Mas se eu tunasse o som dele, eu passaria a ter uma nave. Tunasse vem de tunar que significa colocar um sistema de som potente para bombar no fluxo. Costuma-se dizer: “Esse carro tá tunado!”

Tunar o carro ou transforma-lo numa nave é uma prática cultural típica desses bairros periféricos. O auge dessa prática cultural é o encontro mensal conhecido como “Nitro Point”. O Nitro Point é um encontro de carros com sistemas de som customizados num local fechado especialmente para isso. Em novembro de 2017, fui num desses encontros em São Bernardo do Campo. Aconteceu num grande espaço afastado da cidade, com capacidade para milhares de pessoas. O lugar parecia um estacionamento gigante com um grande galpão de área coberta e uma área externa. Começou as 8 da manhã e terminava às 17 horas. É como se fosse um fluxo de funk fora da rua. É cobrada entrada de 20 reais. Milhares de jovens e de carros compunham uma frenética paisagem sonora formada pelos sistemas de som automotivos tocando em altíssimo volume. O volume é tão alto que não consegui ficar mais do que uma hora dentro do local. Os ouvidos e a cabeça começam a doer para um turista não acostumado como eu.

Em março de 2018, fui em outro desses encontros, dessa vez numa fábrica abandonada em Mauá. A prefeitura de São Bernardo do Campo proibiu o Nitro Point que agora passa a acontecer em Mauá. Esse encontro também reuniu milhares de pessoas, de carros e algumas dezenas de paredões de som. Reparei que alguns dos frequentadores usavam protetores de ouvido e pensei que da próxima vez preciso fazer o mesmo. O volume dos sistemas de som é ensurdecedor e machuca os ouvidos. Dentro da balada, conversei com um homem que trabalhava na organização da competição que acontece em cada edição. Ele me informou que tem competição de volume de som, ou seja, de qual sistema de som toca mais alto. E existe a competição de carro rebaixado. São as duas categorias principais da Nitro Point.

D. Sistemas de Som de Fábrica

Estou chamando de Sistemas de Som de Fábrica todos os sistemas que não são customizados, ou seja, os que não são produzidos pelos próprios usuários ou moradores ou sob encomenda. Os sons de fábrica podem ser automotivos ou podem ser desses sons mais comuns que todos temos em casa. São sistemas de som mais fáceis de encontrar em lojas do ramo ou em grandes lojas de departamento como Casas Bahia e Lojas Americanas. Apresentam grande variedade, mas costumam ter uma potência sonora menor do que a dos sons customizados especialmente no que diz respeito às frequências graves. Em relação ao funk, esses sons de fábrica cumprem a função normal de reprodução sonora que estamos mais acostumados a encontrar em qualquer outro lugar. Criei esse tópico para agrupar esses sistemas e mencionar que eles existem também no bairro e convivem com os outros tipos. Até mesmo os celulares e computadores podem ser considerados sistemas de som desse tipo, já que hoje em dia, muitas pessoas escutam som diretamente nesses aparelhos. Por serem aparelhos com potência sonora bem abaixo da potência dos sons customizados eles não “chamam atenção” no baile funk, sendo assim os sistemas de som menos valorizados e cultuados.

Os fluxos de funk são festas de rua onde podemos encontrar todos esses tipos de sistemas de som ativados ao mesmo tempo. A esses tipos que descrevi acima, ainda acrescentaria os escapamentos das motos tocadas nos fluxos por seus motoristas como se fossem cornetas potentes. É a somatória desse amplo conjunto de alto falantes que compõem a paisagem sonora polifônica da festa. Mas é também muito comum ouvir esses sistemas ativos durante o dia — mesmo antes dos fluxos noturnos começarem — nas lojas, bares, tabacarias, padarias e barbearias da quebrada. As vezes parece que em cada cantinho tem uma paredinha de som escondida esperando para ser ligada. O convívio com tamanha potência sonora não é simples, e muitas vezes vira caso de polícia.

Descida do baile em resposta à chegada da polícia

Na polifonia do fluxo a polícia mixa o som

“O fluxo pra mim seria uma festa barata tá ligado, você curte e tira uma onda já que a gente não tem um local onde possa curtir de forma barata e de fácil acesso… essa aglomeração de pessoas com a mesma ideia, a mesma vontade de curtir, de se divertir. Isso é o que acaba movendo as pessoas pro fluxo. Você tá ali com seus amigos, com som alto, funk, ou qualquer outro tipo de música, e isso que forma o fluxo, as pessoas aglomerando pra curtir um baile. E quem acaba não gostando ou vai se adaptando ou vai ficar contra mesmo. Eu vejo muita gente que acaba sobrevivendo vendendo bebida na sua própria casa. Quem não gosta não tá errado de não gostar, por causa da bagunça, baderna, droga, então… não sei como lidar com isso!” (Hiiits, youtuber, frequentador de fluxos de funk)

"O fluxo é um jeito de se divertir. Tem gente que paga R$ 100 só para entrar numa balada. Com R$ 100 você faz a festa do fluxo. Sei que fica ruim para quem quer dormir na região, mas também virou uma fonte de renda para a comunidade."

(MC João em entrevista com o G1)

As falas acima, de um frequentador de fluxos e de um MC de funk, são muito parecidas e muito recorrentes. O fluxo se apresenta como uma alternativa disponível para quem não tem tanta grana. Quando a festa é na rua ninguém paga para entrar, um detalhe fundamental entre jovens de baixa renda. Num cotidiano marcado pela escassez de ofertas de trabalho, de educação e de espaços públicos de lazer, a prática de se colocar o som na rua ganha uma dimensão importante. E quando nos discursos sobre o fluxo a questão do preço da diversão é levantada, o som na rua ganha um contorno quase político no sentido de que essas pessoas estão fazendo o que os governos deveriam fazer, oferecendo um local acessível para a juventude das periferias se divertir. As falas também chamam atenção para a possibilidade de geração de renda para os moradores que se adaptam ao fluxo. A massa de jovens que frequenta os fluxos gasta com bebidas e comida nos entornos da festa movimentando o comércio local.

“Cara, as pessoas na comunidade estão acostumadas a trabalhar de segunda a sexta-feira sem parar. E aí chega sexta, sábado e até domingo às vezes o pessoal quer tirar lazer, né! Ouvir um sonzão, ouvir uma música alta, o paredão, é bom pra caramba também. Você pode perceber que a favela tá sempre tocando música, cara. Sempre!! Qualquer beco que você passar, qualquer rua, qualquer esquina vai tá tocando música alta. A favela nunca dorme, né! A gente adora ouvir música alta sim, sentir as paredes da casa tremendo, se sentir dentro da música sabe, sentir a adrenalina da música, a gente gosta de ouvir música alta mesmo.” (Mariana, moradora da Zona Leste, frequentadora de fluxos).

Essa fala de Mariana, uma jovem de 19 anos, revela o quanto a música é importante e presente na favela. E tem que ser música com som alto, que faz você sentir as paredes da casa tremendo e se sentir dentro da música. Repito esse refrão: se sentir dentro da música. A rua, o sistema de som, a cervejinha no bar, os amigos reunidos caracterizam os momentos de tirar lazer, de festa, de relaxamento e também de fortalecimento de laços sociais. Formam um tipo de sociabilidade onde a rua e a música são centrais; uma sociabilidade sonora no espaço público. É como um ritual semanal onde todas as tensões e pressões que o cotidiano produz são descomprimidas e extravasadas.

Durante quase todo texto, foquei meu olhar nos sistemas de som buscando pensá-los como pessoas elétricas musicais não-humanas. Esse olhar vem de uma perspectiva contemporânea da antropologia, que analisa os laços humanos a partir dos objetos e coisas que produzimos, tentando pensar a vida social a partir da nossa ligação com esses “não-humanos”. Busquei então, descrever tipos e características técnicas dessas pessoas elétricas mostrando sua importância no mundo do funk. Sem elas esse mundo sonoro não existe. Essas pessoas elétricas agem socialmente. Elas criam uma demarcação sonora do tempo da favela; o som na rua começa se intensificar nas quintas-feiras e se estende até o domingo. Segunda-feira, os faders de volume são baixados. Elas também criam uma demarcação sonora do espaço da favela enquanto localidade; o funk dos fluxos em alto volume cria uma paisagem sonora típica dos bairros periféricos, que não é encontrada nas regiões centrais onde os moradores só se divertem em baladas fechadas.

Mas quando trazemos o que as pessoas humanas afetadas por essas pessoas não-humanas sentem e dizem, esse mundo sonoro se torna mais complexo. Assim como no fluxo diversos sistemas de som tocam músicas diferentes ao mesmo tempo, diversas opiniões e pontos de vistas emergem. A convivência com essa cultura dos sistemas de som não é simples. Se por um lado descomprimem certas tensões, por outro produzem outras. Tem muita gente que não aguenta o som alto; muita gente que não consegue se adaptar (como gostaria Hiiits, que reconhece não saber lidar com isso) descansar, nem dormir, que briga e que chama a polícia. Tem gente que não curte as letras de funk putaria e que nem considera o funk música.

“Eu não conseguiria dançar no fluxo porque eu não vejo um discurso. Porque lá eu seria mais um objeto, uma mulher objetificada, um pedaço de carne, para ver qual dos caras iria me escolher para pagar uma bebiba.”

(Carla, moradora da Zona Leste, comentando sobre os fluxos de funk do seu bairro).

“Eu tenho 21 anos, frequentava o funk. No começo, achava que era uma coisa divertida, que era um lazer, que era só sair com os amigos se divertir e tudo… mas não era isso. Quando você vai para uma balada, a balada tem que ser fechada pra não incomodar os moradores… baile funk é feito na rua, o pessoal vem com carro, com paredão, coloca na frente da casa do morador que vai trabalhar a semana toda e no final de semana quer descansar. E baile funk agora é um lugar pra se usar droga, beber, ficar doidão, tem morte… a polícia vem na primeira vez pra conversar pedir pra abaixar, na segunda vez dá dura, na terceira vez já vem tacar bomba, jogar tiro, até espancar o pessoal que fica no baile.” (Rafael, morador da Zona Leste, comentando sobre os fluxos de funk do seu bairro).

Essas falas de dois moradores de um mesmo bairro periférico, na Zona Leste da cidade, revelam as tensões presentes. Rafael durante nossas conversas me contou que parou de ir nos fluxos depois que começou a frequentar a igreja. E a polifonia de vozes é tamanha que já ouvi gente dizendo que o som das igrejas incomoda tanto quanto o funk. Sim, nas igrejas também tem música alta, também tem sistema de amplificação de som com pastores, pastoras e fiéis cantando em alto e bom tom os hinos de louvor. Mas o som religioso cristão, mesmo incomodando alguns, não é visto como algo criminoso; já o funk é algo passível de ser criminalizado. O funk propaga o discurso da putaria, do sexo, do crime, da ostentação. As letras são polêmicas e incomodam, mas tem gente que só vai no fluxo para dançar e se divertir.

“Pra ser bem sincera eu às vezes nem reparo muito na letra, o que me pega mesmo é a batida. Sabe aquele da surubinha que foi censurado? Eu adorava dançar porque a batida era genial!”

(Mariana, moradora da Zona Leste, frequentadora de fluxos, comentando sobre as letras de funk putaria).

As letras por vezes machistas e violentas passam desapercebidas por quem só quer dançar e ser pego pela batida. A batida que pega Mariana bate de frente com Carla e Rafael, todos moradores do mesmo bairro. Quanto mais alta a batida, mais ela chama a atenção, mais ela pega e mais ela bate de frente. O fluxo dos paredões de som batendo alto gera uma resposta repressiva. No início desse ano, pude observar o aumento massivo da repressão policial nesse mesmo bairro. O fluxo desafia a Lei do Psiu que prevê a redução do som nos espaços públicos após às 22 horas. A polícia quando circula em suas viaturas pela quebrada vai de certa forma mixando o som; sempre que ela se aproxima os sistemas de som reduzem os volumes, quando ela se afasta eles sobem de novo até o momento em que uma repressão mais violenta pode acontecer (como nos contou Rafael) com bombas de efeito moral sendo usadas.

Os paredões são alguns dos agentes envolvidos numa disputa sonora do espaço público. De um lado, temos uma coletividade ativando continuamente uma gigantesca rede de sistemas de som exercendo uma ocupação festiva e livre do espaço público; de outro, as viaturas policiais representando o poder do Estado, das leis e de um outro coletivo que não participa da ocupação sonora desse mesmo espaço. De um lado, uma massa de jovens de baixa renda querendo um espaço para se divertirem sem precisarem arcar com os altos custos de uma balada fechada; de outro moradores dessas comunidades que precisam dormir e descansar para aguentarem o cotidiano de trabalho desgastante que levam. Nessa disputa, não me parece que vai haver um vencedor; vai haver uma re-mixagem contínua dos alto-falantes que ecoam essa multiplicidade de vozes. Essas vozes serão ora expandidas, ora reprimidas, ora aglomeradas, ora dispersas, ora amplificadas, ora diminuídas, mas nunca totalmente silenciadas.

Meno Del Picchia é músico e antropólogo. Seu trabalho atravessa o universo sonoro pela arte, a pesquisa acadêmica e a produção musical. Realiza sua pesquisa musical no Doutorado da Antropologia Social da USP, investigando o Funk em São Paulo.

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