No seu radinho

Editor da Zumbido
Zumbido
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16 min readJun 1, 2022

Um passeio pelas frequências radiofônicas do Brasil. Por Nina Rocha

Ilustração: Xiloceasa/João Amorim

Quando Maria Luiza Ferreira acorda, o rádio já está sintonizado na moda de viola. Seu pai de 67 anos sempre teve o costume de deixar as suas estações prediletas tocando o tempo todo. O aparelho fica ligado ao longo do dia e a programação varia de acordo com o gosto e o humor do ouvinte: do sertanejo antigo às pegadinhas de humor, notícias frescas e transmissões de partidas de futebol, todo tipo de conteúdo é consumido pelas ondas eletromagnéticas que chegam nos dispositivos espalhados em cada cômodo da casa.

O hábito familiar acabou virando uma herança: mesmo quando está sozinha em casa, o rádio desempenha o papel de som ambiente. Nem sempre Maria Luiza presta atenção no que está tocando, mas o aparelho está sempre ali, fazendo companhia. “Acho que as pessoas se sentem às vezes até amigas dos locutores. Você se acostuma com aquela pessoa ‘conversando’ com você todo dia”.

Além do convívio com a mídia, a estudante de 25 anos gosta da possibilidade de conhecer canções que não escutaria em outros lugares. “Tem umas músicas que são do momento e ficam tocando repetidas vezes. Várias eu sei inteira porque toca no rádio o dia todo, fica na minha cabeça. Não são o tipo de música que escuto geralmente, mas acho bem interessante.”

Furar essa bolha musical é o que mais encanta Piero Sá, de 32 anos. Ouvinte fiel de estações paulistas há quase duas décadas, o apicultor coloca o veículo como o grande responsável pela formação do seu repertório sonoro. Da música erudita ao jazz contemporâneo e à MPB, são as frequências de rádio que permitem que ele acesse canções que não escutaria em outras plataformas.

“Quando descubro um artista ou uma música nova, são momentos muito bons. Sinto que se parar de escutar rádio, vou deixar de aprender muita coisa. É uma fonte de formação gigantesca”.

Piero começou escutando rádio no carro e nunca mais parou: a mídia era a trilha sonora das viagens que fazia em família a lazer e a trabalho. Em seu veículo, carrega sempre um bloco para registrar novas descobertas. “O caderninho fica na porta do carro para anotar o nome de músicas que gostei. Eu tava ouvindo a Cultura Jazz de madrugada e descobri um músico africano chamado Lekan Babalola. As músicas dele tem poucos milhares de escutas no Spotify. Eu nunca descobriria se não fosse pela rádio.”

Com a pandemia e a consequente diminuição nos trajetos diários, o aparelho automotivo foi substituído pelo player online de suas estações de rádio favoritas. O rádio, que antes era sinônimo de estar em trânsito, tornou-se também membro da rotina do trabalho remoto, e segue estimulando o acervo musical de Piero a expandir-se cada vez mais. “Quando descubro um artista ou uma música nova, são momentos muito bons. Sinto que se parar de escutar rádio, vou deixar de aprender muita coisa. É uma fonte de formação gigantesca”.

Arte do CD Songs of Icon do percussionista de jazz e músico nigeriano Lekan Babalola

Seja para conhecer as músicas mais tocadas, aumentar o repertório ou consumir informações, Maria Luiza, Piero e outros milhares de ouvintes espalhados no país não estão sozinhos. Segundo a pesquisa Inside Radio, realizada pelo Ibope em 2021, 80% da população de 13 diferentes regiões metropolitanas no Brasil é ouvinte de rádio, sendo que 3 a cada 5 pessoas consomem a mídia todos os dias.

A popularidade de uma mídia gratuita, acessível e sempre no ar reflete bastante no perfil de quem escuta: os dados praticamente equivalem ao censo demográfico da população das regiões metropolitanas onde as pesquisas foram realizadas. O público é composto por 52% de mulheres, as faixas etárias são diversas e a classe C representa 43% dos ouvintes que escutam uma média de mais de 4h de rádio por dia.

Ao pé do ouvido

O rádio começou a ser introduzido no cotidiano do brasileiro há pelo menos 100 anos. A primeira transmissão reconhecida pelo Ministério das Comunicações aconteceu no centenário da Independência do Brasil, no dia 7 de setembro de 1922. Pelas ondas sonoras emitidas de um transmissor de 500 watts instalado no alto do Corcovado, o discurso do então presidente da república, Epitácio Pessoa, foi transmitido para as cidades do Rio de Janeiro, Niterói e Petrópolis. As 80 residências que acompanharam o pronunciamento do governante também escutaram a ópera do campinense Carlos Gomes, O Guarani — música que até hoje chega obrigatoriamente a todas as emissoras do país como abertura do noticiário estatal A Voz do Brasil.

Pesquisadores da comunicação contestam a data oficial como a primeira experiência radiofônica brasileira e destacam a importância de considerarmos as transmissões experimentais realizadas antes de 1922, embora os registros históricos que ajudam a recuperar a memória da época sejam escassos. Se o rádio é caracterizado por uma transmissão de mensagens sonoras por ondas eletromagnéticas, não se pode desprezar os esforços experimentais e coletivos — duas características marcantes na mídia até hoje — de emissoras como a Rádio Clube de Pernambuco, que começou suas experimentações em 1919, e outras iniciativas semelhantes que surgiram em outros cantos do país.

“Com a explosão dos podcasts, por exemplo, temos uma oralidade e espontaneidade que dialoga muito com o que é a rádio AM e que a FM vem tentando incorporar.”

A “era de ouro” do rádio no Brasil, na década de 1940, não aconteceu no mandato de Getúlio Vargas por acaso: ao observar o poder do rádio e o seu aproveitamento por líderes de países como Alemanha e Itália, o presidente transformou uma mídia que ainda se restringia à elite em um meio de comunicação de massa, usando as transmissões radiofônicas para consolidar os ideais nacionalistas e exaltar suas decisões como chefe de Estado. Combinando movimentações políticas e econômicas que apoiavam o fortalecimento de fábricas nacionais e a expansão da indústria elétrica, a rádio foi uma das grandes aliadas políticas de Vargas, que estatizou a Rádio Nacional em 1940, tornando-a o meio de comunicação oficial do governo.

Com preços mais acessíveis, os rádios entraram pela porta da frente nas casas brasileiras — com as vozes de Cauby Peixoto, Carmem Miranda e Dorival Caymmi ou com o anúncio da implementação do Estado Novo. Nesse período, a mídia começava a conquistar um espaço cativo na rotina da população. Seja por conta do poder político na difusão da informação ou pela sua capacidade de entretenimento com canções, radionovelas e programas de auditório, o veículo logo foi acumulando a relevância que reverbera até hoje. A popularidade da rádio naquela época também está muito relacionada à oralidade e sua predisposição de ser compreendida. Em terras de uma população majoritariamente analfabeta, quem conseguia se comunicar direto com o público por meio de uma linguagem tão simples quanto a fala, logo se consolidava como um potente veículo de massa, como pontua o pesquisador e professor de Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais, Nísio Teixeira: “A rádio possui uma textualidade própria. Isso está presente desde sempre e vemos muito do que é derivado do rádio em outras mídias. Com a explosão dos podcasts, por exemplo, temos uma oralidade e espontaneidade que dialoga muito com o que é a rádio AM e que a FM vem tentando incorporar.”

O rádio tornou-se central até como objeto nos lares brasileiros. Com a multiplicação do aparelho, veio também um lugar de protagonismo nas residências, assim como acontece hoje em dia com a televisão nas salas de famílias de diferentes classes sociais. Os móveis de madeira com portas, pés, rádio-vitrolas e um custo elevado se modernizaram conforme a tecnologia evoluiu. Nas casas mais abastadas, aparelhos sofisticados nos cômodos de lazer e estar substituíram a posição do piano e outros instrumentos musicais. Para as habitações mais modernas, o rádio ficava em áreas de convivência, em cima de um aparador ou até dos armários, servindo como companhia durante almoços e jantares.

“Havia uma relação de poder em torno do objeto, e hoje ele segue sendo algo que pontua o cotidiano das pessoas.“

Mesmo antes dos rádios portáteis, o aparelho migrou para copas e cozinhas, quando o público predominantemente feminino escutava telenovelas, músicas e propagandas enquanto executava tarefas domésticas. No artigo A casa brasileira nas ondas do rádio, o gerente do Núcleo de Preservação, Pesquisa e Documentação do Museu da Casa Brasileira, Wilton Guerra, reforça a presença do rádio na rotina das mulheres que ficavam em casa, tornando a escuta praticamente uma atividade secundária ao trabalho e ao descanso. Como principal interlocutora, a mulher ouvinte também passou a ser o grande alvo das propagandas, responsáveis por introduzir novos produtos e hábitos nos lares brasileiros.

A experiência radiofônica coletiva e de partilha foi, aos poucos, caminhando para uma vivência individual. Os radinhos de pilhas e os fones de ouvido, popularizados no final da década de 1970, facilitaram que o rádio se tornasse companheiro da rotina, como reforça Nísio. “O rádio de pilha, que a gente associa hoje ao jogo de futebol, é uma revolução, porque antes era comandado pelo chefe da casa e existia o ritual da família ao redor para se informar, escutar música. Havia uma relação de poder em torno do objeto, e hoje ele segue sendo algo que pontua o cotidiano das pessoas.”

As barreiras da AM e FM

Os móveis pesados de antigamente foram ficando para trás e o rádio foi ganhando novas dimensões até chegar aos aparelhos portáteis e ser incorporado inclusive nos telefones celulares. Embora 80% das audições ainda sejam nos aparelhos “tradicionais”, 25% dos ouvintes acompanham também as transmissões de rádio no celular e 3% no computador. A facilidade de estar conectado em múltiplos dispositivos permite que 26% do público escute rádio no carro ou no trabalho, ainda que 71% das pessoas ainda acompanhem suas estações favoritas de casa.

Ilustração: Xiloceasa/João Amorim

Em 2021, o consumo de rádio aumentou 2%, contrapondo uma perspectiva de que a mídia radiofônica se tornaria obsoleta — uma lenda urbana que persegue o veículo desde a chegada da televisão. A credibilidade em alta do meio de comunicação indica o caminho oposto, com um aumento de 43% em relação a 2020, e é uma das motivações para esse crescimento: a pesquisadora e professora da Universidade Federal de Brasília, Cristiane Parente, destaca que o rádio sempre foi um parceiro da população no acesso à informação. “As pessoas tinham e têm necessidade de receber informação de qualidade e com rapidez, especialmente em momentos mais críticos. O rádio é a mídia mais ágil e mais democrática que existe, que consegue oferecer informações de forma quase instantânea a um maior número de pessoas”.

Além do viés informativo, a onipresença do rádio também é importante para cativar o ouvinte. “O rádio está onde o ouvinte está e o acompanha ao longo do dia, fazendo com que, de certa forma, seja seu companheiro, ‘converse’ com ele”, pontua Cristiane. “Não é à toa que o locutor da rádio tem uma proximidade com seu interlocutor diferente de outros veículos. O rádio tem uma característica ‘camaleônica’ que o faz sobreviver até hoje a todos os prognósticos de que morreria diante da chegada da tv ou internet. Ele tem se aproveitado para se reinventar e alcançar ainda mais interatividade”, afirma.

É buscando esta reinvenção que pequenas e grandes estações de rádio procuraram se adaptar ao formato digital e incorporar tocadores em suas páginas. Se a acessibilidade já era grande por meio das transmissões locais, ao ganhar espaço na Internet, o ouvinte pode acompanhar a programação de sua estação mais querida independente de onde esteja geograficamente. Mesmo em Brasília, a mineira Flávia Simão segue sintonizada em sua rádio favorita, em Belo Horizonte. “Escuto outras rádios, mas como eu sou louca por MPB, a Rádio Inconfidência é perfeita pra mim. Sempre escutei por influência de uma tia. Mantenho ela por ter a música que eu gosto e ter notícias de casa. É engraçado porque estou sempre atualizada sobre uma cidade que não é a que eu moro”, comenta a advogada.

Existem ainda as rádios que estão disponíveis só no ambiente virtual. Seja em transmissões pelo YouTube, redes sociais, ou widgets incorporados em uma página na Internet, as web rádios são acessadas por 10% de uma população que consome uma média de 2h44 por dia — um número que parece tímido, mas ganha força quando pensamos que o ouvinte poderia consumir músicas ou informações em qualquer outro tipo de mídia, incluindo aplicativos de streaming.

“Com a internet, não temos mais bolhas territoriais, e sim de interesse. (…) Ao mesmo tempo que posso chegar na China, meu vizinho não ouve o que produzo aqui.“

A Rádio CT é um destes veículos que existem exclusivamente no ambiente virtual. O Sindicato da Cultura é uma das atrações da programação. Apresentado pelo jornalista Rafael Gonzá, o programa surgiu com a proposta de levar visibilidade ao trabalho de profissionais de toda cadeia artística do Vale do Paraíba, destacando também a agenda cultural da região. Ao longo de quase 350 edições, o Sindicato da Cultura vem buscando possibilitar um espaço que artistas independentes não acessam com facilidade em mídias mais tradicionais.

No ar desde 2017, o Sindicato da Cultura já recebeu artistas do rap, da viola, do folclore, hardcore, sertanejo e até música instrumental e infantil. Ter representantes de diferentes vertentes culturais é parte da proposta do programa. “Essa diversidade das manifestações culturais é importante, e tentamos dar prioridade aos artistas regionais. Construímos um espaço interessante dentro da cultura na cidade”, comenta Gonzá.

“Esse tipo de programa ajuda a girar o conteúdo e criar pontos de circulação. Com a internet, não temos mais bolhas territoriais, e sim de interesse. Ao mesmo tempo que é muito legal que um som possa ser ouvido em qualquer lugar do mundo, muitas vezes existem cenas independentes fortes na cidade que não são conhecidas porque é um acesso cada vez mais difuso e dependente do marketing digital. Ao mesmo tempo que posso chegar na China, meu vizinho não ouve o que produzo aqui”, explica Rafael.

Essa é pra tocar no rádio

Entre estações de AM e FM, mais de dez mil emissoras estão ativas no Brasil. Assim como outros veículos de comunicação, cada rádio pode escolher qual linha editorial seguir. É isso que possibilita que existam programações inteiras dedicadas a certos estilos musicais, da música clássica ao samba, rock ou forró. Determinar o que está alinhado ao perfil do ouvinte, montando um setlist que intercale sucessos consolidados com novos hits é a função dos programadores.

“A rádio é democrática com a questão do alcance e do acesso, mas o que está dentro da programação não é democrático porque são as pessoas que têm um poder econômico que definem o que vai tocar”

Luciene Calegari é a responsável pela coordenação de programação da Antena 1, uma das estações musicais mais escutadas do país. A proposta da rádio é levar ao ouvinte músicas que “marcaram época”, da década de 1970 até os dias atuais. Para isso, é necessário ter uma “personalidade” da estação muito bem estabelecida. “A gente brinca muito dessa coisa da rádio ser como uma pessoa, ela tem que ter uma característica. O ouvinte tem que ligar e reconhecer que é a rádio”, esclarece. A programadora explica que o trabalho do profissional responsável pelas sequências musicais transmitidas pelas ondas da rádio muitas vezes sonoriza a vida dos ouvintes e ainda é capaz de transportá-los para momentos importantes. “A gente traz a memória afetiva das pessoas através da programação musical”.

Selecionar canções com as quais o público se identifique não é o único desafio dos programadores: é necessário conduzir o ritmo do dia de acordo com a rotina do ouvinte, como sinaliza Luciene. “No horário em que as pessoas começam a acordar, que é às 5 da manhã, evitamos colocar músicas lentas, não podemos colocar algo que deixe o ouvinte mais sonolento. Cada horário tem uma energia diferente.”

São nuances como esta que diferenciam a rádio dos aplicativos de streaming: a programação é feita por um humano e não por um algoritmo. “No início da pandemia mesmo, não tocamos coisas muito para baixo. Tem também toda uma questão de ritmo. Tentamos não deixar a rádio tão linear, sendo algo mais balanceado. Quando a gente tem uma música nova, por exemplo, a gente cerca ela com outros sucessos. Se de repente entra um artista que ninguém conhece, o ouvinte tem que ter algo familiar em seguida para não sentir o impacto e estranhar”, conta Luciene.

Ainda que a programação musical combine autonomia, conhecimento e técnica para escolher o que tocar, alguns estilos musicais acabam monopolizando as caixas de som espalhadas pelo país: é o caso, por exemplo, do sertanejo e suas vertentes que dominou a lista das músicas mais executadas nas rádios brasileiras entre janeiro e setembro de 2021 segundo o ECAD. Os motivos por trás dessa popularidade são diversos e dizem mais da indústria fonográfica e seu poder de investimento em distribuição do que de alguma particularidade da mídia em si — não é a toa que as mesmas canções que estão nas mais executadas nas rádios são praticamente as mesmas de aplicativos como Deezer e Spotify.

Por mais que seja considerada uma mídia popular pela facilidade de difusão, essa predominância de gêneros musicais abre espaços para questionamentos sobre o acesso para artistas independentes ou iniciantes que não contam com o mesmo esforço de divulgação que nomes já reconhecidos têm, como observa o produtor cultural Marcelo Santiago. “A rádio é democrática com a questão do alcance e do acesso, mas o que está dentro da programação não é democrático porque são as pessoas que têm um poder econômico que definem o que vai tocar”, comenta.

Entrevista da empresária Kamilla Fialho no Podcast de Música

As consequências dessa lógica não impactam só a carreira de artistas alternativos ou independentes: em uma entrevista recente ao Podcast de Música, a empresária Kamilla Fialho, que já trabalhou com artistas como Kevin o Chris e Anitta, expôs a dificuldade de trabalhar gêneros musicais como o pop e o funk diante da competitividade financeira que o sertanejo possui para comprar espaços na programação das rádios. Seguindo esse modelo de funcionamento, o mercado da música acaba se retroalimentando: quem tem dinheiro para investir em estratégias de divulgação e influência acaba sempre entre os mais tocados das emissoras mais conhecidas — e o espaço que sobra é restrito e disputado.

A cantora mineira Maíra Baldaia destaca que as rádios que possuem um perfil mais comercial não conseguem representar a diversidade da produção cultural no Brasil. Nesse sentido, as rádios alternativas, públicas e comunitárias têm um papel fundamental ao abrir portas — e ouvidos — para artistas que não estão no mainstream. “Quando você consegue chegar nas rádios de uma forma viral, tem uma proporção imensa em termos de sustentabilidade do trabalho e também de alcance”, comenta a artista.

Sempre que uma de suas canções é tocada, Maíra recebe o feedback de ouvintes. E não é raro que novos fãs apareçam depois de terem conhecido seu trabalho em alguma rádio. “A arte só faz sentido quando a gente coloca ela em contato com outras pessoas. É muito bom saber que alguém conheceu sua música na rádio, prestou atenção e aquilo mexeu de alguma forma. A gente tem tanta democracia com a internet, mas ao mesmo tempo é uma briga por espaço, tá todo mundo tentando um lugarzinho ao sol para mostrar o seu trabalho. É importante se sentir ouvida. Se não tiver alguém escutando, a arte não vai estar cumprindo o seu papel”.

“A matéria prima do rádio é a música e a informação, e a música mainstream já está tocando nas rádios comerciais. Nosso trabalho é ajudar a difundir novos artistas.”

Foi justamente com a ideia de criar uma programação onde pudesse divulgar a música brasileira que Valéria Becker criou a Rádio Graviola, em 2008. A proposta da web rádio é viabilizar um espaço plural e diverso — um espaço que a própria jornalista sentia falta quando trabalhou com divulgação musical para um selo de música independente na década de 1990. “Tínhamos muita dificuldade de dar entrada aos artistas independentes nas rádios comerciais. Na época não haviam muitas alternativas, no máximo tínhamos as rádios comunitárias. Ouvi muito não, muita porta batendo na cara e fui trabalhar com outra coisa”.

A afinidade e o gosto pela rádio enquanto mídia seguiu acompanhando Val em sua trajetória até o boom do surgimento de blogs no início dos anos 2000. Com um conhecimento básico de edição de HTML e o incentivo de um colega que trabalhava com tecnologia, veio a ideia de ter sua própria rádio. A Rádio Graviola surgiu praticamente de forma artesanal: era necessário criar a programação, fazer upload em um serviço de hospedagem de podcasts e ainda incorporar o player na página criada para a rádio.

“Comecei a gravar locuções, vinhetas, colocar como um arquivo de música, fazer outras experimentações e até fazer transmissões ao vivo. Levava o meu notebook que captava o áudio da mesa de som de shows e assim a rádio foi crescendo”, conta Val. Hoje, a Graviola tem cerca de 15 programas voltados para a música independente, é acompanhada por cerca de 50 mil ouvintes mensais e venceu a categoria de web rádio do Prêmio Profissionais da Música por três anos consecutivos.

“A matéria-prima do rádio é a música e a informação, e a música mainstream já está tocando nas rádios comerciais. Nosso trabalho é ajudar a difundir novos artistas”, explica a fundadora da rádio. Toda a seleção passa por uma curadoria, que pensa não só na qualidade do que está sendo executado, mas também na sequência musical e na possibilidade de surpreender o ouvinte com combinações inusitadas. “Os aplicativos de streaming raramente vão te mostrar algo que você não conheça ou goste, porque ele quer audiência. Se o algoritmo entende que algo não está no seu gosto, não vai entrar”.

Os frutos são colhidos tanto pelo público quanto pelos artistas. “É muito bom para uma banda ou um artista saber que eles passaram pelo crivo de alguém e ter uma visibilidade que talvez não seja a mesma da sua bolha. É um incentivo que aumenta até a autoestima porque mostra que ali teve um movimento de várias pessoas ouvindo, gostando e divulgando aquele trabalho”, complementa Val. O ouvinte ganha com a possibilidade de ter contato com músicas que não chegaria aos fones de ouvido ou caixinhas de som com a mesma facilidade. “Você aumenta cada vez mais a rede de alcance”, seja para o ouvinte do interior, o rapaz da loja, ou o chofer de táxi vencer o tédio quando aparecer.

Nina Rocha é jornalista freelancer e escritora em Belo Horizonte, Minas Gerais. Publicou os livros Em Obras (2020) e Papéis (2021) e já escreveu sobre comportamento, cultura, meio ambiente e direitos humanos para Uol, Piauí, Modefica, Joio e o Trigo, Elástica e Colabora.

Ilustrações por João Amorim/Xiloceasa. Xiloceasa, do Instituto Acaia, é um grupo formado em 2005 por adolescentes da oficina de xilogravura que na sua maioria residiam nas redondezas da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp).

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