O pão com manteiga nosso de cada dia

Editor da Zumbido
Zumbido
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12 min readJul 22, 2021

Bruxas, micróbios e átomos num episódio perdido do rock progressivo nacional

A sugestiva capa de Pão com Manteiga por Oscar Paolillo e Walmir Teixeira | Foto: Reprodução

Com carreira meteórica e história pouco conhecida, a banda paulista Pão com Manteiga ganha relançamento em vinil e a lenda reacende.

Tão importante quanto um pão com manteiga no café da manhã dos brasileiros, uma banda paulista dos anos 70 conseguiu um disputado lugar no Olimpo do rock progressivo nacional mesmo tendo tido uma carreira meteórica que durou exatamente um disco.

Formado em 1976 por uma dupla de músicos de São Vicente (Paulo Som e Pierre), com integrantes de Praia Grande e São Paulo (Johnny, Gilberto e Edison Edisol), o grupo Pão com Manteiga lançou um disco, homônimo, no mesmo ano de sua formação. O álbum trouxe para o primeiro plano em suas letras assuntos místicos e temas medievais, com arranjos que vão da sofisticação da música clássica à psicodelia tão característica de bandas dos anos 70, brasileiras ou gringas.

Com direção de estúdio e produção musical de Waldyr Santos, o disco tem 12 faixas com nomes que já sugerem a viagem que começa com um giro pela Idade Média, visita festas de bruxas, analisa micróbios e átomos, festeja personagens como Merlin e Lancelot e, como não poderia faltar, traz para a conversa a galáxia de Andrômeda, tão revisitada pela música pop viajandona.

Do lado A da bolacha lançada pela gravadora Continental, as músicas são “Mister Drá”, “Merlin”, “Flor Felicidade”, “Micróbio do Universo”, “Montanha Púrpura” e “Multi-Átomos”. Do outro lado do disco, “Serzinho Sem Medo”, “Cavaleiro Lancelot”, “História do Futuro”, “A Feiticeira”, “Fugindo do Planeta” e “Virgem de Andrômeda”. Exótico na medida, o som poderia surfar na onda do Secos & Molhados, banda lançada em 1973, três anos antes, portanto, do surgimento do Pão com Manteiga, aposta da mesma gravadora, a Continental. Note-se que até a capa do primeiro disco da banda de Ney Matogrosso serve de inspiração para a imagem que ilustra o álbum Pão com Manteiga, criada por Oscar Paolillo e Walmir Teixeira.

Assim como aconteceu com os Secos & Molhados, de formação clássica (João Ricardo, Ney Matogrosso e Gérson Conrad), o Pão com Manteiga teve uma formação que se desmantelou em pouquíssimo tempo, ruindo os planos da gravadora para dar continuidade à trilha aberta pelo trio original dos Secos, que, com apresentações ousadas, aliadas a um figurino e maquiagem extravagantes, chegaram a vender mais de um milhão de cópias do primeiro disco. Detalhe: imagine o que era ver Ney Matogrosso rebolando, com o corpo coberto de glíter e plumas na cabeça, isso em plena ditadura militar! E o pior (melhor!), eles faziam sucesso com crianças, jovens e até velhinhos, que se divertiam com toda aquela teatralidade e afronta.

“Isso nos leva ao óbvio questionamento: como um disco vira objeto de desejo de colecionadores? Seria pela tiragem reduzida, pelo conteúdo musical, por um hype no mercado?”

Fato é que, apesar de não ter passado nem perto do estrondoso sucesso dos Secos & Molhados, banda que frequentava a casa dos brasileiros de bem, com direito a videoclipe no Fantástico, o álbum Pão com Manteiga caiu nas graças dos colecionadores e se tornou um cult. O vinil lançado em 1976 se tornou nos últimos anos um objeto raro e desejado por colecionadores mundo afora, mesmo que seu conteúdo não seja tido por alguns como obra primorosa do ponto de vista da produção musical.

Isso nos leva ao óbvio questionamento: como um disco vira objeto de desejo de colecionadores? Seria pela tiragem reduzida, pelo conteúdo musical, por um hype no mercado? Para Pena Schmidt, produtor de discos e ex-executivo de gravadoras que ficou conhecido ao inovar como técnico de som dos Mutantes, não há muito critério para que um álbum exploda na bolsa de valores das bolachas.

“Achei no Discogs, estão pedindo R$ 7.000 num original. Tô ouvindo pela primeira vez. A Continental lançava muita coisa na época, passou batido [pra mim]. O som é sem carisma, vozinhas em falsete, meio Secos & Molhados, galáxias e magos, essas coisas. Ficou meio notório por ter sido mencionado no livro Lindo Sonho Delirante Vol 2: 100 Discos Audaciosos do Brasil, do Bento Araujo”, avalia Pena.

Contracapa do LP relançado pela Polysom em 2019| Imagem: Reprodução

Resgatado pela medusa

Por causa de tanta procura em lojas e sebos — e graças a uma forte movimentação da loja Medusa Records, em São Paulo –, o álbum ganhou em 2019 relançamento em vinil de 180 gramas pela coleção Clássicos em Vinil, da fábrica carioca Polysom, em parceria com a gravadora Warner. Portanto, agora, quem optar pela reedição do disco vai desembolsar algo em torno de R$ 180.

Para o lançamento da Polysom, o disco foi masterizado especialmente para vinil por Ricardo Garcia, no estúdio Magic Master, no Rio de Janeiro, a partir de tapes originais, com artes na íntegra, vinil de 180 gramas (gramatura que impede a interferência de vibrações externas).

“Mesmo com o disco relançado nas lojas, os originais continuam custando milhares de reais em sites especializados. Isso mostra o quanto o fator ‘cópia original’ conta na hora de dar valor a um disco de vinil raro.”

Rafael Ramos, consultor da Polysom, conta o que os levou a prensar o vinil: “É um disco muito procurado nas lojas de SP, galerias, na Locomotiva [Discos, uma das mais conhecidas da cidade]. Foi uma unanimidade entre os lojistas, que nos ajudam à beça nessa curadoria”, conta o consultor da primeira fábrica brasileira a investir no resgate do vinil — e atualmente também no retorno das fitas cassetes.

Mesmo com o disco relançado nas lojas, os originais continuam custando milhares de reais em sites especializados. Isso mostra o quanto o fator “cópia original” conta na hora de dar valor a um disco de vinil raro.

Agora vale uma análise do terreno onde se criou o Pão com Manteiga, especialmente se você gosta do estilo de som da banda. Como faria um bom algoritmo ao analisar a sonoridade do disco da banda paulista, indico a audição de grupos como Terreno Baldio, O Som Nosso de Cada Dia, Módulo 1000, Recordando o Vale das Maçãs, O Terço, Pholhas, Som Imaginário, Casa das Máquinas, Apokalypsis, Moto Perpétuo (da qual Guilherme Arantes foi integrante), Spectro e, claro, as mais famosas Mutantes e Secos & Molhados.

Influenciado pela viagem e psicodelia de bandas inglesas como Gentle Giant, Pink Floyd, Genesis, Yes, Jethro Tull e Led Zepellin, só para citar as mais famosas, e com a mesma vontade de juntar instrumentos pouco comuns na fórmula do rock’n’roll (como flauta, banjo, bandolim, violoncelo, viola), o rock psicodélico brasileiro fez história e viveu seu auge no Festival de Águas Claras (SP), especialmente na primeira edição, em 1975. Uma loucura, bicho, que você pode reviver assistindo ao documentário O Barato de Iacanga, de Thiago Mattar, lançado em 2019.

O garimpo atrás da banda

Encontrar informações seguras sobre uma banda que quase não deixou registros em vídeo ou livros no Brasil não é tarefa das mais fáceis. Sei disso por experiência, quando arregacei as mangas para encontrar quem teria sido o primeiro DJ do Brasil, ao apurar informações para escrever o livro Todo DJ Já Sambou, lançado em 2003. Quase sem bibliografia nesse sentido e com pouca informação (na época) na internet, o jeito foi buscar recortes de revistas e jornais antigos, bater perna por sebos e lojas de discos e entrevistar mais de 100 pessoas, até encontrar quem me desse uma pista quente para chegar até o pioneiro da discotecagem no Brasil, seu Osvaldo Pereira, informação que foi publicada no livro e ajudou a dar o devido crédito a tão importante personagem.

Com a banda Pão com Manteiga não foi muito diferente. Apesar de existir em inúmeros sites informações sobre o conteúdo do disco, o único integrante da banda a ter dado entrevistas recentemente foi o guitarrista Johnny, aka Diógenes Rondon. Apesar de eu ter tentando contato através do Facebook por várias semanas, infelizmente não consegui retorno. O jeito foi levantar informações garimpadas de outras entrevistas, as mais importantes vou compilar aqui. Soube através de uma dessas entrevistas, por exemplo, que o vocalista Paulo Som e o baixista Pierre já faleceram (Paulo em 2005, e Pierre em 2014). Então vamos ao histórico dessa meteórica banda.

Formada por Paulo Som, nos vocais, viola e violão; Johnny (o nosso Diógenes Rondon), nos vocais e guitarra; Pierre, no baixo e vocais; Gilberto, nos teclados e banjo; e Edison Edisol, na bateria e efeitos, o grupo foi responsável por todos os arranjos das músicas do álbum. Em entrevista ao blog 2112, Diógenes contou que a banda chegou a ganhar, em meados dos anos 1970, o quarto lugar no prêmio Rock Brabo, em São Paulo. E de quem eles teriam perdido? Apenas para Os Novos Baianos, que ficaram com a primeira colocação. A banda O Terço ficou em segundo lugar, e Os Mutantes, já devidamente migrados para o som progressivo, ficaram com o terceiro.

Reza a lenda que o Pão com Manteiga chegou a gravar um videoclipe para o Fantástico, programa que segue no ar até hoje, mas que, nos anos 1970 e 1980, tinha uma enorme relevância na cena de música nacional, funcionando como uma plataforma de lançamentos para as gravadoras e artistas. Infelizmente, assim como aconteceu com outras bandas, como a Violeta de Outono, por exemplo, o clipe do Pão com Manteiga para o programa nunca chegou a ir ao ar.

“O pão, um alimento singelo, que está em todas as mesas do mundo, é também alimento espiritual, de paz, esperança e valores morais.”

Após a saída do vocalista Paulo Som, a banda começou a se desintegrar, como contou Diógenes ao blog. Formado como topógrafo, Diógenes se mudou para o Pará e, durante dez anos, não quis saber de encostar as mãos numa guitarra.

Informações sobre os primórdios da banda são raras, portanto reproduzo aqui a fala de Diógenes sobre a formação original da Pão com Manteiga, para que fique para a posteridade.

“Eu comecei na música tocando desde a adolescência. Na juventude formei bandas de bailes e apresentações. Nessa ocasião fui procurado pelos fundadores (Pierre e Paulo Som) para ajudá-los nesta obra. Eles já tinham firmado contato com o produtor Waldyr Santos, que nos serviu de ponte para chegar à gravadora Continental. O disco foi lançado no início de 1976, e a banda encerrou naquele mesmo ano”, relatou o guitarrista ao blog. Sobre a escolha do nome do grupo, ele conta que foi o baixista Pierre que, certa vez, disse num ensaio: “O pão, um alimento singelo, que está em todas as mesas do mundo, é também alimento espiritual, de paz, esperança e valores morais.” A partir daí se chamariam Pão com Manteiga.

É bom contextualizar que o disco foi gravado bem no auge da ditadura militar no Brasil, regime instaurado em 1964 que durou até 1985, sob comando de sucessivos governos militares. Durante todos aqueles anos, artistas eram obrigados a submeter suas obras à censura, devido a uma das ações mais notórias do Regime Militar, a instauração, em dezembro de 1968, do Ato Institucional nº 5, que ficou conhecido como AI-5, impondo atos de recolher, proibição de reuniões secretas e censura a obras artísticas e ao jornalismo livre.

Portanto, falar mal do governo em músicas, revistas, jornais, livros e filmes estava simplesmente fora de cogitação. Nesse contexto, receitas de bolo começaram a ser publicadas no lugar de reportagens censuradas, como uma mensagem clara aos leitores de que, naquele espaço, uma informação do jornal havia sido suprimida.

Vários artistas, escrevendo nas entrelinhas, conseguiam comunicar sua insatisfação com a vida no país, como a letra de “Micróbio do Universo, uma balada com pegada de Yes, em que o vocal de Paulo Som fica entre o de Ney Matogrosso e o de Arnaldo Baptista, duas referências claras no som.

Eu quero voltar para as estrelas

Falar com os deuses

Quem sabe até um dia foram astronautas

Eu, um micróbio no universo, homem da terra

Uma raça que um dia falou com anjos

Eu, só quero ser regresso

Uma prece ao universo

Deuses, anjos, astronautas

Venha me ensinar tudo de novo

Deuses, anjos, astronautas

Venha me ensinar tudo de novo

Um jeitão bem na moita de falar que estava tudo péssimo no Brasil, não é? Assim como tantas outras letras com mensagens subliminares de outros artistas brasileiros, o Pão Com Manteiga passou batido pelo Serviço de Censura às Diversões Públicas e pôde falar, camufladamente, sobre seus sentimentos no disco.

Um raro registro sem crédito da banda | Fonte: Baixada de Fato

Universo das maçãs

A grande recorrência nas letras do Pão com Manteiga é o misticismo por trás de Avalon, nome dado à ilha do Rei Arthur, famosa por suas belas maçãs — daí músicas como “Cavaleiro Lancelot, com sua levada inicial que bebe de “Five To One, dos Doors, e letra inspirada no mais famoso dos Cavaleiros da Távola Redonda. Historicamente, Avalon seria o lugar onde a espada do Rei Arthur, Excalibur, foi cravada.

“As ideias sobre essas lendas sempre vieram do Paulo. Ele me apresentava a música, com sua respectiva base, para que eu pudesse fazer os arranjos de guitarra”, disse Diógenes em entrevista ao podcast Trilhas, de Felipe Zangrandi, na época do relançamento do álbum.

Merlin, outra música do disco diretamente inspirada em Avalon, faz referência ao famoso mago, profeta e conselheiro do Rei Arthur. A faixa “Mister Drá mistura a fissura pela Idade Média com bom humor, um cruzamento que nos faz lembrar “Gato Preto, dos Secos & Molhados.

Num castelo da idade média que velhice um velhinho falava

Que o bobo da corte era o conde, que o conde era o bobo

Que o bobo da corte era o conde, que o conde era o bobo

Será que era ele? Cruz credo

Na noite escura vendo a neve cair o velhinho falava

Cadê meu alho, meu espeto de pau, minha espada de prata?

Cadê meu alho, meu espeto de pau, minha espada de prata?

Será que era ele? cruz credo

Talvez a faixa mais intensa do disco seja a instrumental “Montanha Púrpura”, com suas mudanças de dinâmica ao longo de três minutos, que flertam com o Krautrock alemão de bandas como NEU!

Efeitos e órgãos

A reta final do disco é marcada por “Fugindo do Planeta”, em que os efeitos e uma cama dramática de órgão Hammond sustentam as vozes de Paulo Som e dos demais integrantes como se eles estivessem partindo para uma viagem ao espaço. É fechar os olhos para acompanhar a decolagem do quinteto. O disco encerra com a instrumental “Virgem de Andrômeda”, onde mais uma vez a banda reitera sua vontade de ver o Brasil bem de longe, a partir de outra galáxia, aliás, e musicalmente flertando forte com a psicodelia de Pink Floyd.

Depois que o Pão com Manteiga se dissolveu, no próprio ano de lançamento do disco, 1976, Diógenes se dedicou a outras atividades, mas, 23 anos depois, voltou a se reunir com Pierre, um dos criadores da banda, e com outro compositor, Tadeu, e os três passaram a ensaiar com frequência até o falecimento de Pierre.

Sem possibilidades de uma volta do grupo, resta nos deliciarmos com a possibilidade de degustar esse clássico: um grande disco que conta uma história de fuga deste plano, passeia por gêneros à frente de sua época, chega até a flertar com o heavy metal e deixa sua marca no vasto terreno do rock progressivo brasileiro. E o melhor: agora acessível para todo mundo que o quiser ter em casa.

Claudia Assef é jornalista de música. Trabalhou nos principais jornais, revistas e sites brasileiros, entre eles a Folha de S. Paulo, onde foi correspondente em Paris (FRA), e O Estado de S. Paulo, onde manteve uma coluna sobre música durante três anos. Claudia é autora dos livros Todo DJ Já Sambou, Ondas Tropicais e O Barulho da Lua. Esteve envolvida na criação e/ou produção das duas primeiras edições do Sónar São Paulo, Skol Beats, Nokia Trends, Motomix, Absolut Nights, Dia da Música Eletrônica, entre outras. É sócia-fundadora do WME — Women’s Music Event, projeto com foco na mulher na música, incluindo um festival e uma premiação anual, e está à frente do Music Non Stop. É também DJ, produtora musical e atualmente coordena o Centro Cultural Olido, onde será inaugurada a Galeria do DJ, primeiro centro expositivo de um equipamento público na América Latina dedicado à cultura da discotecagem e de festas e bailes.

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