O velho (rádio) e eu
De ouvinte fanático de rádio a apresentador de podcast, Matias Pinto conta sua trajetória entre as ondas e a internet
Desde que eu me entendo por gente, o rádio está presente na minha vida. Hábito que eu herdei indiretamente do meu pai. Nascido e criado na fronteira entre Brasil e Uruguai, no começo dos anos 50, ele utilizava as ondas curtas para saber o que acontecia no Rio de Janeiro ou no Rio da Prata. Ao se mudar para São Paulo no final da década de 1970, o que era diversão virou profissão, tendo trabalhado nos bastidores de diversos veículos de comunicação sediados na capital paulista ou em sucursais locais. Como vendedor de espaço publicitário, passava horas do seu tempo livre escutando rádio, seja em casa ou no carro, para checar se os reclames haviam ido ao ar no horário combinado com os clientes.
Lembro da primeira vez que eu o acompanhei à “cidade”, mais precisamente no então escritório da Rádio Transcontinental FM, emissora de Mogi das Cruzes que se tornou a principal referência do pagode — variante mais comercial do samba. Aos meus 7 anos, próximo da aurora da minha vida, foi lançado o LP Raio-X do Brasil dos Racionais MC’s, em 1993, e eu fiquei bastante impressionado com a segunda faixa Fim de Semana no Parque, que contava com a participação de Netinho de Paula, do Negritude Junior. A música chegou a tocar algumas vezes na Trans por conta deste “feat”. Meu velho me confidenciou, quando eu já tinha mais idade para compreender estas questões, que por conta da duração e da temática abordada por Edi Rock e Mano Brown, o hit foi motivo de debate interno e subsequentemente cortado da programação por ordens de cima.
Dois anos depois, o seu Zeca estava trampando em uma nova estação: a Jovem Pan. Como o próprio nome indica, este era o braço mais jovial do grupo adquirido por Paulo Machado de Carvalho e comandado pelo seu neto, mais conhecido como Tutinha — hoje um dos principais aliados midiáticos do governo federal. O carro-chefe da programação regada à dance music era o humorístico Pânico, que segue no ar desde então, e curiosamente foi a primeira vez que eu visitei um estúdio, um pouco assustado com adultos gritando impropérios, que certamente seriam repreendidos pela minha mãe em casa.
Mas o que marcou definitivamente minha relação com o rádio eram as jornadas esportivas, sempre acompanhando o narrador José Silvério, o “pai do gol”, em qualquer emissora em que ele estivesse. Em uma era em que a internet e a TV a cabo estavam engantinhando, o dial do AM era o principal aliado de um pequeno torcedor que não possuía os meios de ir frequentemente aos estádios. Passava horas no banco traseiro do Opala 73 da família acompanhando a transmissão antes, durante e depois dos jogos do meu clube e dos rivais. Foi essa conexão que despertou meu interesse pelo jornalismo esportivo, que depois seria complementado pela imprensa escrita.
Quando concluí o Ensino Médio, ainda tinha dúvidas sobre qual carreira escolher no vestibular. Por orientação materna me inscrevi em um curso de locução oferecido gratuitamente pela Oficina Cultural Oswald de Andrade, localizada no Bom Retiro. Eu era um dos mais novos da turma, formada majoritariamente por atrizes e atores em formação, o que me ensinou a perder um pouco o medo de falar em público.
Desde que eu me entendo por gente, o rádio está presente na minha vida. Hábito que eu herdei indiretamente do meu pai.
Em uma das tantas quartas-feiras à noite, em que eu voltava pela Linha Azul do Metrô, estava ouvindo em um radinho de pilha a partida entre São Paulo x São Caetano, válida pelo Brasileirão, quando os repórteres direto do Morumbi tiveram a dura de missão de relatar os últimos minutos de vida do zagueiro Serginho, que defendia a equipe do ABC Paulista. O atleta teve um mal súbito durante o 2º tempo e morreria cerca de uma hora depois no Hospital São Luiz. Este talvez seja o principal exemplo que eu vivenciei do dinamismo da informação através do rádio em comparação as demais mídias até então.
Aconselhado por alguns amigos dos meus pais que trabalhavam com comunicação, acabei optando pelo curso de História, pois a maioria deles era taxativo de que uma formação na área de humanidades seria um diferencial para o mercado de trabalho. Como pano de fundo havia um debate sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista para atuar no meio, situação que chegou ao ponto final com a resolução do STF em 2009.
Nesta época eu estava no 7º semestre da graduação e participava desde o ano anterior do programa Futebol & Resistência veiculado pela Rádio Livre Várzea do Rio Pinheiros, que operava em uma sala do Espaço Aquário, centro de convivência estudantil do prédio de História & Geografia da Universidade de São Paulo. A Várzea, como era mais conhecida, questionava o oligopólio midiático e ocupava o dial das FMs sempre procurando frequências improdutivas na região da Cidade Universitária. O alcance não era tão grande, dada à precariedade dos equipamentos que eram constantemente apreendidos pelas autoridades de dentro e fora do campus do Butantã.
Além da pauta macro sobre o questionamento do acesso aos meios de comunicação, restrito a uma pequena casta social, no plano micro estava a própria extensão universitária. No caso uspiano e na maioria das universidades públicas, esse costuma ser o pilar menos desenvolvido do tripé universitário, composto ainda por ensino e pesquisa. Sendo assim, as dezenas de estudantes que colaboravam direta ou indiretamente com a Rádio Várzea organizavam diversos eventos e oficinas para além do feudo que se transformou a USP.
Em meio ao ciclo de megaeventos esportivos que teve início com os Jogos Panamericanos sediados no Rio de Janeiro, em 2007, o Futebol & Resistência se focava mais nas movimentações do COI e FIFA do que dos atletas nos campos, quadras, pistas etc. O tom do programa era bastante informal, mas tinha um acúmulo de dados e pesquisa que não era nada desprezíveis. E por mais que travássemos uma batalha praticamente perdida em todas as frentes que lutávamos, foi uma grande escola de comunicação para mim e meus colegas, que pela própria natureza do curso seguiram em sua maioria para o ensino.
Ironicamente, minha experiência “profissional” no rádio — as aspas são por conta da falta de pagamento — foi em uma emissora sazonal criada por um dos patrocinadores masters dos Jogos Olímpicos de 2016, que durou praticamente entre o ciclo de Londres ao Rio de Janeiro. Nesta breve experiência, comentei meu primeiro jogo ao vivo, no segundo semestre de 2012, mas, como não tinha o credenciamento da Associação de Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo, tive que fazê-lo do estúdio, enquanto narrador e repórteres estavam no Pacaembu. Por conta do delay entre a transmissão da televisão em que eu acompanhava a partida e dos meus colegas na cabine do Estádio Municipal, tive que comentar um lance duvidoso da arbitragem quase concomitante ao ocorrido.
O alcance não era tão grande, dada à precariedade dos equipamentos que eram constantemente apreendidos pelas autoridades de dentro e fora do campus do Butantã.
Depois de mais três partidas comentadas — em uma delas tendo encontrado meu ídolo José Silvério nos corredores do estúdio — e algumas entradas ao vivo — a última delas em pleno Natal — perguntei sobre um eventual cachê, que havia ficado no ar, e não obtive mais resposta.
Algumas semanas depois, a Várzea me botou pra jogo novamente! Mas não a rádio uspiana e sim um companheiro de zaga do Autônomos FC, equipe varzeana de São Paulo formada por punks e anarquistas em 2006. Eu fazia parte dos quadros do Auto desde 2010 e o Leandro Iamin, que jogava à minha esquerda, estava dando o pontapé inicial da Central3, uma web rádio de olho no crescimento dos podcasts mundo afora. “Pod o quê?” foi minha primeira reação.
Nesta época, meu aparelho de celular mal fazia ligação e eu não tinha quase nenhuma afinidade com as novas mídias. Mas o Iamin não estava me chamando pelos meus conhecimentos tecnológicos, mas sim para ajudar na pesquisa do Som das Torcidas (SDT), programa autoral que seria o abre-alas da nova empreitada, mesclando música e futebol em um formato original no Brasil.
No estúdio Sócrates Brasileiro, eu encontrei o melhor das minhas duas experiências anteriores na radiodifusão: o espírito anárquico da rádio livre e a estrutura profissional de uma produtora de conteúdo.
A Central3 surgiu da iniciativa do Francisco Pati, que tocava o SDT comigo e o Leandro, e que pagou o meu primeiro cachê como jornalista. Nas duas primeiras temporadas da firma, eu atuava como freelancer e também ajudei na concepção do Conexão Sudaca, podcast bilíngue que tratava do noticiário sul-americano a partir do futebol, somado aos jornalistas Felipe Bigliazzi Dominguez e Gabriel Brito — este também jogador do Auto — e que trazia todas as sextas-feiras convidados de diversas partes do nosso subcontinente.
No terceiro ano, eu pedi demissão do meu emprego anterior e passei a fazer parte da equipe fixa da Central3, que já contava com o cineasta Paulo Junior nos seus quadros, outro companheiro de Autônomos.
Foi neste momento que eu fiz um convite para o Filipe Nobre Figueiredo, meu amigo e colega de gestão da Associação Atlética Acadêmica Oswald de Andrade, que tocava desde o fatídico junho de 2013 o blog sobre política Xadrez Verbal. O Filipe sempre deixou o espaço aberto para eu escrever, mas com a minha rotina de então eu não tinha tempo suficiente para produzir algo da qualidade que ele já havia imprimido no site e que começava a se arriscar em seu canal de YouTube.
Depois de mapear a incipiente podosfera em meados da década passada, constatamos que não havia nenhum produto dedicado exclusivamente à política internacional. Sendo assim, sugeri que transformássemos o Xadrez Verbal em podcast e ocupássemos este vazio, além de uma crítica conjunta à cobertura dos grandes veículos ao noticiário fora do eixo EUA-Europa Ocidental.
O programa começou de forma bastante despretensiosa, pois não achávamos que haveria uma resposta imediata dos ouvintes. Ledo engano, já na primeira temporada do XV ele se tornou um dos podcasts mais ouvidos do Brasil — forçando inclusive uma troca de servidor por parte da Central3 — e logo virou uma referência do debate político na internet, sendo compartilhado por diplomatas, divulgadores científicos e jornalistas, que muitas vezes serviam de fonte para nós dois.
O sucesso de audiência quase que instantâneo serviu de catalisador para criamos um novo programa ainda em 2015: o Fronteiras Invisíveis do Futebol, podcast que surgiu a partir da série de textos Fronteiras Invisíveis da Europa — sobre os movimentos separatistas europeus — publicada pelo Filipe no blog do Xadrez Verbal, e tendo o esporte bretão como fio condutor neste novo formato.
Apesar da resposta positiva do público e crítica, tanto a Central3 quanto o Xadrez Verbal não eram procurados por anunciantes como outras produtoras e podcasts, que tratavam de temas mais amenos, em sua maioria sobre cultura pop e correlatos. A forma de subsistência encontrada foi a do financiamento coletivo recorrente, ferramenta imprescindível para criadores independentes de conteúdo neste novo momento da comunicação, na qual inclusive os grandes veículos lançaram mão de assinaturas digitais. Contudo, o nosso material segue disponibilizado integralmente de forma gratuita.
Hoje o podcast já é uma realidade no Brasil, saindo dos nichos e alcançando milhões de ouvintes, sendo o nosso país um dos maiores mercados mundiais. Os grandes players entraram em cena também, o que não significou uma dispersão da audiência, acostumada a um modelo mais intimista, sendo bastante fidelizada e crescendo de forma orgânica, principalmente durante a pandemia do Coronavírus, que continua um período bastante desafiador para todos nós.
Matias Pinto, formado em História pela Universidade de São Paulo (USP), atua como apresentador, editor e produtor de podcasts desde 2013 sempre pela Central3.
Ilustrações por Bruna Kater. Formada em Comunicação Social pela ECA-USP, atualmente trabalha como designer gráfica e ilustradora em São Paulo. Seu trabalho tem cores vibrantes, uma essência artesanal e percorre temas como a brasilidade e representação da mulher nas artes visuais.