Como surgiu o Lira Paulistana

Editor da Zumbido
Zumbido
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9 min readApr 19, 2019

Dago Donato entrevista Wilson Souto Jr. do Lira Paulistana sobre a missão de abrir espaço para a música autoral

Fachada do Lira Paulistana no início dos anos 80 | Foto: Calil Neto

Como proprietário de uma casa para shows independentes em São Paulo, o Breve, na Pompeia, recebi a missão de entrevistar os fundadores de três espaços fundamentais, cada um a seu modo e em seu momento, para a cena musical da cidade. Conversei com Wilson Souto Junior, do Lira Paulista, Marco Badin, do Hangar 110, e Mancha, da Casa do Mancha, para entender as motivações, as dificuldades, os processos, as alegrias e os perrengues de quem se aventura a abrir um espaço para música autoral. Encontrei três caras movidos antes de tudo pela paixão pela música. Todos tiveram que aprender a ser empresários na marra. E, na marra, deixaram sua marca no panorama cultural da cidade.

Wilson Souto Junior, do Lira Paulistana

Consagrado como berço da geração conhecida como Vanguarda Paulista, O Teatro Lira Paulistana foi fundado em 1979 em frente à Praça Benedito Calixto. O espaço, concebido como um teatro, foi muito mais que apenas uma casa de shows. Recebeu exposições, peças de teatro adulto e infantil, aulas de música, abriu sua própria gravadora e lançou seu próprio jornal. Mas é principalmente na memória musical da cidade que ele ficou registrado. Pelo palco passaram nomes como Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Premeditando o Breque, Rumo e muitos outros. Wilson Souto Junior, fundador do Lira Paulistana, segue trabalhando com música. Hoje é proprietário da gravadora Atração Fonográfica.

Antes do Lira, o que você fazia?

Era músico, fazia vocal pro Tom Zé, participava da orquestra da Gota D’Água (musical de Chico Buarque). Era uma moçada que tava começando a carreira de músico. A gente tocou quase um ano fazendo ao vivo o som da Gota D’Água. Essa vivência foi muito intensa porque a rotina do teatro era muito interessante. De a gente chegar às seis da tarde e montar os instrumentos, aí ver a Bibi Ferreira chegando, fazendo exercício de técnica vocal…

Bibi Ferreira em Gota D'Água

Isso era em que ano?

Em algum momento dos anos 70? Eu não vou conseguir te localizar corretamente (risos). Esse é um problema que eu sempre vou ter. Então, essa rotina do teatro fico muito marcada em mim. Eu fiz engenharia e acabei não terminando o curso. E fui percebendo cada vez mais que esse não era meu caminho. Eu também tinha um quarteto vocal que fazia muito trabalho de estúdio. Isso tudo antes do Lira Paulistana. Eu tinha uma atuação como músico modesta, mas uma atuação que me levou a conhecer o estúdio, a vida de artista, e as necessidades absurdas de se ter um espaço pra tocar em que o foco principal fosse a banda em vez de a banda fazer a trilha para uma outra história.

E a ideia de abrir o Lira surgiu como?

Eu encontrei com um amigo que não era músico, era administrador de empresas, mas era extremamente emocionado com a coisa musical, chamado Valdir Galiano. Ele trabalhava na Suzano Papéis, ou alguma coisa assim. Aí ele me disse “vou largar a Suzano e quero fazer alguma coisa na música. Se a gente tivesse um lugar que pudesse funcionar de estacionamento de dia e conseguíssemos colocar bandas de noite seria legal”. Aquilo ficou e começamos a procurar um lugar. Num dos anúncios tinha um espaço na Teodoro Sampaio, número 1091-A, que falava em 400 metros quadrados. Achamos estranho e fomos ver. Era um porão com pé direito extremamente generoso, de 4,20 metros e com outra vantagem, uma viela sanitária que terminava nos fundos do imóvel, na qual pudemos abrir uma porta muito grande e construir uma escada muito grande. Então você não dependia só da entrada da Teodoro Sampaio, que era super pequena. Aí começamos a reformar junto com uns amigos porque o lugar estava completamente detonado. Aí um dia andando na Teodoro pra comprar material, encontramos o pessoal da banda da Gota D’Água que tava vindo de um ensaio. Falei pra eles que tava fazendo um teatro, ou um circo, ainda não sabemos o que vai ser, mas é um espaço com uma arquibancada. E eles me disseram “pô, o Sérvulo (Augusto) tá escrevendo uma peça junto com o (José Rubens) Chachá chamada É Fogo Paulista, que é um musical”. Falei pra eles “por que vocês não vão conhecer o lugar e quem sabe a gente não monta lá?”. Na hora que eles viram eles se apaixonaram e trouxeram o diretor Mario Masetti, uma das pessoas mais incríveis que eu conheci, que topou na hora o desafio de fazer e reuniu um elenco muito importante. A peça foi um sucesso quase que imediato.

Matéria da Gazeta de Pinheiros com Mario Masetti e Sérvulo Augusto

Como foi feita a divulgação desse novo espaço?

Imprensa. A gente conhecia alguns jornalistas. A gente teve muito apoio da Gazeta de Pinheiros, que deu manchete “Enfim Pinheiros Tem um Teatro”. E o editor chefe, que era o Fernando Alexandre, deu um espaço muito grande para nós. Depois ele acabou largando a Gazeta e virando nosso sócio. Foi o terceiro a entrar.

A sociedade inicial era só você e o Valdir Galiano?

Sim. Só que dois meses depois de abrirmos ele arranjou uma namorada entre as frequentadoras do Lira e foi morar em Ilhabela com ela. Um dia ele virou e falou “o teatro é seu” (risos). O Mario Masetti chamou pra peça um iluminador que fazia filosofia na USP chamado Chico Pardal. O Chico começou a iluminar o teatro e eu me vi meio que sozinho com ele. Ofereci a ele “Chico, o Valdir saiu, quer ser meu sócio?”. E ele “mas eu não tenho dinheiro”. E eu “não preciso de dinheiro, preciso de alguém pra ajudar a tocar o trabalho”. O lugar já estava constituído.

O lugar acabou sendo mais que um teatro.

Além do palco e da arquibancada, tínhamos um espaço para exposição de quadros, uma pequena livraria em que algumas editoras colocavam livros de contracultura, e a gente tinha um freezer com cerveja e refrigerante. O mesmo cara que vendia as bebidas também cuidava de um carrinho de pipoca. Abríamos as portas para a rua de serviço, então tínhamos uma área maravilhosa.

Aí vocês tinham a peça rolando…

Sim, o que deixava o teatro com segunda e terça livres, além de sexta e sábado depois da meia noite. Os caras da Vila Madalena começaram a me propor shows nesses dias. A coisa foi muito rápida. Fizemos uma conta que chegamos a ter 1,4 espetáculos por dia. Começamos a fazer teatro infantil de sábado a tarde. Depois tinha a peça às nove e show à meia noite.

Como funcionava com os artistas?

A gente tinha uma maneira de levar o negócio em que o artista se responsabilizava por um pequeno custo, equivalente a mais ou menos 25% da bilheteria, e a gente entregava pra ele som, luz, técnico. Eventualmente o artista não tinha esse dinheiro pra dar, então deixava um cheque caução. Invariavelmente ele era devolvido porque sempre dava gente o suficiente. A gente tinha um certo trabalho de escutar os artistas.

O Lira era financeiramente viável?

Por incrível que pareça, nunca tivemos problemas financeiros. Todo mundo conseguia ter uma retirada que dava pra viver. A gente tinha um funcionamento meio informal mas muito harmônico. Era uma estrutura de quatro ou cinco pessoas trabalhando.

Basicamente de entradas e bebidas?

Basicamente disso. Não existia nada que fosse além disso. Nas peças de teatro haviam alguns subsídios, mas eles ficavam com a companhia.

Como veio a ligação com a Vanguarda Paulistana?

Me convidaram pra ser jurado da Feira da Vila, foi onde conheci o Itamar Assumpção, que por sua vez era músico do Arrigo. Essas coisas iam se juntando na Vila. Mas o espaço tinha tantas facetas de funcionamento que fica difícil de estabelecer. O Arrigo foi altamente inspirador e frequentava a gente. Mas não dava pra ele tocar lá porque era muito pequeno pra ele. Essa fama de um espaço lançador e a vivência do Arrigo me fizeram ter vontade de montar uma gravadora. O primeiro disco da gravadora foi exatamente do Itamar Assunção, que eu produzi. E isso foi movimentando. Veio Rumo, veio Premeditando o Breque, veio todo movimento dessa moçada que tava produzindo de uma maneira esparsa. A gente ia do Paranga de São Luiz do Paraitinga ao pessoal de Pernambuco, passando por toda a vanguarda da época. Então começou a ter de fato um conceito de Vanguarda Paulistana, mas era um nome genérico. Não tinha um estilo. Era muito mais uma história comportamental e de oportunidade.

Era sempre o mesmo público?

Não. Variava muito. Mas existia a coisa do pessoal chegar na porta e perguntar “o que tá passando hoje?”. Não faço ideia de quanto custaria hoje pra entrar, mas era uma coisa módica. E depois do show o pessoal enchia aqueles bares da Benedito Calixto.

Dentro do processo de abrir o Lira, vocês chegaram a pensar na parte burocrática?

A gente tinha o contador. Tentar conseguir o alvará de fato na prefeitura seria dificílimo porque eles exigiriam coisas que não faziam o menor sentido. A gente começou a ter algum tipo de problema na época do Jânio (Quadros), porque ele descobriu que fechar o Lira Paulistana pessoalmente dava manchete. Então ele ia lá, lacrava, a gente deslacrava no dia seguinte, abria e não acontecia nada (risos).

Aconteceu muito?

Pelo menos três vezes. Mas a imprensa entendia aquilo como um novo ar depois dos piores anos de ditadura, algo que de fato germinou. Não estava no nosso plano. Então a imprensa abraçou. Claro que não posso negar a sensibilidade que envolvia as pessoas que eram do núcleo mais próximo do Lira: eu, o Chico, o Plínio (Chaves), depois o Fernando Alexandre e por fim o Ribamar de Castro, um artista gráfico que foi o último a entrar na sociedade e acabou fazendo um trabalho de documentação. Chegamos a fazer um jornalzinho que era um projeto muito pretensioso num tempo em que você não tinha computador, e chegou a circular doze números.

Surgindo nos momentos finais da ditatura, o vocês chegaram a sofrer algum tipo de repressão?

Nunca. A ditadura já tava muito abrandada. E a imprensa nos dava uma importância que nos dava quase que um salvo conduto. Claro, tínhamos que seguir todas as normas da época. Todo show e toda peça que a gente ia fazer, o Chico, que morava na Praça Roosevelt, tinha que passar no departamento de censura pra pegar o carimbo. Até que isso foi abolido. As peças chegaram a ter censores assistindo antes pra liberar. Mas foi um período muito curto. Diria que um ano depois de abrir essas coisas já começaram a se desmobilizar. Uma coisa muito interessante é que o João Carlos Martins foi secretário da cultura do estado. Em um determinado momento ele teve a sensibilidade de perceber que aquilo tinha que sair do porão. Então um dia ele ligou lá, se apresentou e me chamou na secretaria. Então ele disse que queria que os independentes fizessem a virada do ano na Paulista e os festivais no Guarujá e Campos de Jordão. Ele foi extremamente sagaz porque foi manchete em todo lugar: “Independentes Invadem a Paulista”. Temos relação até hoje.

Qual o momento mais memorável da trajetória do Lira?

Cada estreia era uma celebração. Teve a história do jornal também e show de lançamento, grátis, na praça. De maneira triste, foi na quinzena da morte da Elis Regina. A praça ficou completamente lotada e foi uma consagração. Mas, principalmente, o movimento de duas pessoas que foram pregar madeira pra montar uma arquibancada, duas que queriam fazer alguma coisa. E aquilo tava tão latente que a gente não conduziu. Fomos conduzidos. E isso marcou toda minha vida profissional.

Dago Donato atua no mercado independente desde o final dos anos 90, produzindo shows e festas. Uma delas é a célebre Peligro, que em cinco anos de história no início dos anos 2000 ajudou revelar uma série de nomes relevantes do atual cenário musical. De 2009 até 2016 foi sócio do Neu Club, casa fundamental na cena paulistana nos anos recentes. Desde 2016 é um dos sócios do Breve, casa de shows independentes no bairro da Pompeia.

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