Perfil: Rita Lee

Editor da Zumbido
Zumbido
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16 min readNov 13, 2020

A rainha da música brasileira e das mulheres do Brasil por Chris Fuscaldo

Rita Lee pousando para propaganda do jeans US TOP em 1983 | Imagem: Acervo Pessoal/Flickr Rita Lee

O ano é 2020 e Rita Lee, prestes a completar 73 anos de vida (em 31 de dezembro) e com 54 de carreira, acumula em seu currículo dezoito álbuns de estúdio, um pacote com mais de 20 discos ao vivo, DVDs, além dos clássicos com Mutantes e com Tutti Frutti e um LP pirata que circula por aí com Lúcia Turnbull. É muito, ainda mais para uma mulher de sua geração, para uma mulher que compõe. Rita também é lembrada por muitas aparições no cinema e na televisão e, recentemente, ela se tornou uma das maiores vendedoras de livros do país. Desde 1986, a cantora vinha escrevendo historinhas infantis, mas o boom de sua carreira literária aconteceu em 2016, quando a escritora lançou sua “Rita Lee: Uma autobiografia”. O livro teve grande repercussão, apesar dos erros provavelmente decorrentes da falha de memória. “É só você me mandar suas perguntas neste mesmo bat endereço que eu lhe respondo no ato, isto é, se eu não estiver na estrada… Minha memória do passado não é lá uma Brastemp, mas talvez suas perguntas mais objetivas me ajudem a lembrar certos detalhes interessantes”, disse-me Rita no primeiro e-mail que lhe enviei na vida, quando ainda era uma estudante de jornalismo e queria avançar com uma pesquisa sobre a sua antiga banda, Mutantes, que acabou virando tema de minha monografia de faculdade.

“Minha memória é tão ruim. Então, quando me perguntam alguma coisa dessa época, eu não me lembro e eu invento. Eu minto”.

Com sua história de vida contada pela própria protagonista insistindo em ficar nas listas de não-ficção mais vendidas do país durante meses, a Editora Globo resolveu apostar em outros títulos e resgatar uma coleção infantil intitulada “Dr. Alex” publicada entre 1986 e 1992. Ao todo, somam-se nove títulos assinados pela artista multifacetada, que, ali pelos idos de 2002, falou o que pensava das biografias nessa mesma entrevista concedida a mim: “História real não existe, o que há é a interpretação pessoal de cada um que a vivenciou”. A autobiografia é a interpretação pessoal de Rita sobre a própria história, e é a ela que, hoje em dia, a artista prefere que os perguntadores de plantão recorram quando querem saber um pouco mais de sua existência, mesmo que ali não tenha uma resposta exata. Explicou Rita em entrevista a Sarah Oliveira para o programa “Viva a Voz”, do GNT: “Minha memória é tão ruim. Então, quando me perguntam alguma coisa dessa época, eu não me lembro e eu invento. Eu minto”.

Eu nasci em agosto de 1980 e tinha menos de um mês quando “Rita Lee” — álbum que mudou a concepção do pop rock nacional trazendo sucessos como “Lança Perfume” — foi lançado, já se firmando como um dos maiores clássicos da história discográfica da cantora e compositora. Eu desenvolvi meus sentidos ouvindo “Baila Comigo”, “Caso Sério”, “Nem Luxo, Nem Lixo” e “Ôrra Meu!”, que saía das rádios ou da vitrola de casa, naquela época. O disco veio na esteira do “Rita Lee” de 1979, que marcou a estreia da parceria de Rita com o marido Roberto de Carvalho, uma das mais bem-sucedidas do mercado brasileiro e a grande virada na vida profissional de Rita. Com o multi-instrumentista e compositor, Rita fez do rock um pop palatável ao grande público e produziu uma quantidade enorme de hits românticos e/ou sarcásticos e debochados. Sem explorar sua feminilidade ou abusar de qualquer sensualidade, Rita Lee virou, por sua atitude, a Rainha do Rock, tornando-se, na verdade, o maior nome do pop rock brasileiro. No ano em que eu e o LP que mais gosto de Rita Lee (ou um deles, porque sempre achei difícil escolher) completamos 40 anos, defendi uma tese de doutorado sobre as “cantautoras”, termo usado na maioria dos países de língua neolatina para designar as cantoras e compositoras.

“Rita Lee”, de 1979 e “Lança-Perfume”, de 1980 alçaram Rita ao posto de rainha do rock no Brasil | Imagem: Reprodução/Wikipedia

Nesse trabalho de pesquisa, que em breve vai virar livro, narro a trajetória de cantautoras brasileiras e mostro como sempre foi mais difícil para as mulheres gravarem suas próprias composições e viverem de música em um mercado dominado por um conservadorismo machista. Rita Lee deixou de ser o destaque do capítulo sobre o rock porque não teve tempo para entrevistas desde que virou o que eu já era: autora de textos. Ameacei ficar triste por não ter minha ídola em meu trabalho mais sério até agora — porque, além de música, aprofunda questões de gênero e, de alguma forma, busca fazer política ao levantar dados alarmantes — mas depois agradeci a “Ritz” — como ela assinava nas respostas que enviava a mim em nossas trocas de e-mails — por ela ter me tirado da zona de conforto. Minha caixola começou a trabalhar e logo lembrei de uma mulher que, de fato foi a primeira a cantar suas próprias composições no mundo do rock e ficar famosa por isso.

Martinha se destacou mais especificamente no programa Jovem Guarda, que marcou a explosão da segunda onda do rock no Brasil, ditando moda e inspirando outras mulheres a se dedicarem ao gênero musical. Primeira cantautora do gênero, a mineira foi apadrinhada por Roberto Carlos no programa que ele comandava junto a Erasmo Carlos e Wanderléa, e teve uma carreira de sucesso, mas com pouca oportunidade de renovação artística e nenhuma possibilidade de conciliar o trabalho com sua vida amorosa, algo bastante comum entre as mulheres no mercado da música: no rock, exemplo clássico é Celly Campello, que explodiu pouco antes da Jovem Guarda como intérprete de “Estúpido Cupido” e “Banho de Lua”, entre outras, e acabou trocando o sucesso pelo marido. Curiosamente, Rita regravou “Banho de Lua” junto ao primeiro marido, Arnaldo Baptista, no segundo álbum de sua banda, “Mutantes”, de 1969, no qual ela apareceu vestida de noiva na foto da capa, tirada em 1968, em um dos festivais nos quais Mutantes se apresentou.

Regravação de Banho de Lua no segundo disco dos Mutantes

No meu segundo livro, “Discobiografia Mutante”, eu conto que a travessura de Rita foi uma manobra para ironizar os concorrentes indignados que faziam pressão para que Mutantes fosse desclassificada.: “Quando a cantora chegou para escolher o figurino do show no guarda-roupa da TV Globo, liberado pelo diretor do Festival Internacional da Canção Augusto Marzagão, Leila Diniz já havia deixado combinado com a camareira de entregar-lhe um vestido de noiva que ela havia usado na novela O Sheik de Agadir. A entrada da cantora no palco foi um escândalo. A foto do francês Richard Sasso do trio se apresentando virou capa do álbum ‘Mutantes’, de 1969. Nela, ainda estão Sérgio de toureiro e Arnaldo de arlequim”. Em 1969, os Mutantes foram atração do Festival Internacional, com “Ando Meio Desligado”, quando Rita entrou no palco com o mesmo vestido de noiva do festival anterior, só que cultivando uma barriga falsa de grávida. A atitude apavorou a própria mãe: “Na segunda apresentação, tratei de ‘engravidar minha noiva’ e, nessas, minha mãe quase desmaiou assistindo a cena pela TV”, contou-me Rita. Mães, maridos, empresários e executivos de gravadora foram os maiores assediadores nas histórias da maioria das cantautoras brasileiras. Não na de Rita, que aprendeu desde cedo a impor um comportamento transgressor.

“[…] abria portas, arrombava a festa e, como uma Chiquinha Gonzaga dos novos tempos, seria o exemplo pioneiro para novas gerações de cantoras e compositoras brasileiras”

Rita Lee é mesmo uma rainha em um país em que as cantoras e compositoras que arrecadam direitos autorais — ou seja, vivem de música — são 26.048 (7,60%), enquanto os cantores e compositores são 282.672 (82,46%). Quer se impressionar mais? Então, durma (ou acorde) com essa: as mulheres que trabalham com música no Brasil ganham aproximadamente 12 vezes menos que os homens e são apenas cinco na lista dos maiores arrecadadores, na qual os homens são 93, segundo dados do Ecad, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (as porcentagens não atingem 100 por cento porque nem todos os cadastrados apontaram gênero ao se inscrever). Se no início do século XX Chiquinha Gonzaga abriu alas para as mulheres começarem a viver de suas composições, nos anos 1980, segundo o jornalista Antônio Carlos Miguel em postagem no Facebook, Rita Lee “abria portas, arrombava a festa e, como uma Chiquinha Gonzaga dos novos tempos, seria o exemplo pioneiro para novas gerações de cantoras e compositoras brasileiras”. Só não foi tão fácil para ela também… Os números de hoje não refletem todo um histórico responsável por levá-la ao lugar onde nossa rainha chegou.

No mesmo ano em que Martinha gravava seu primeiro álbum, 1967, o cantor e compositor Gilberto Gil apadrinhava Os Mutantes, levando-os para o estúdio e para o palco de um festival da canção e, com eles, engrossando o caldo do movimento tropicalista liderado pelo baiano e pelo amigo e conterrâneo Caetano Veloso. Entre 1967 e 1972, Rita e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias inovaram a música popular brasileira ao introduzir instrumentos elétricos nos festivais da canção e ao cantar letras bem humoradas e, a uma certa altura, um tanto lisérgicas (junto a eles, o “quarto mutante” Cláudio César Dias Baptista, irmão mais velho de Arnaldo e Sérgio). O primeiro álbum foi lançado em 1968 e grande parte das ideias e inovações na música do trio eram propostas por Rita Lee, que após ser expulsa da banda pelo primeiro marido, Arnaldo, em 1972, levou o bom humor de suas sacadas às canções que compôs para seu novo grupo, Tutti Frutti, e depois para seus trabalhos em carreira solo. “Sem querer me ‘gambá’, durante um tempão fui uma das poucas almas femininas brasileiras (no exterior também não existiam muitas) que compunham letra, música, arranjos e era figura de frente nos palcos da vida. Faz relativamente pouco tempo que esse panorama mudou. De uma maneira geral, as garotas brasileiras de hoje estão com a bola toda em matéria de band leaders/cantoras/compositoras”, reconheceu Rita Lee em entrevista ao jornalista Marcus Preto para matéria publicada na revista Rolling Stone de setembro de 2008.

Rita Lee Jones nasceu em 31 de dezembro de 1947, numa casa da Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo. Filha de Romilda Padula, descendente de italianos que cresceu em Rio Claro, interior de São Paulo, e de Charley Fenley Jones, bisneto de uma índia Cherokee e descendente de americanos, Rita tinha duas irmãs, Mary Lee e Virgínia Lee. Em sua autobiografia, Rita falou pela primeira vez sobre o abuso que sofreu na infância e o relacionou à liberdade que a tornou a irmã mais arrojada da família Jones: aos quatro anos, um técnico que foi à sua casa consertar a máquina de costura de sua mãe enfiou uma chave de fenda em sua vagina após Chesa (apelido de Romilda) pedir licença e se retirar para atender o telefone. “Quando voltou, me encontrou sozinha no mesmo lugar, olhando petrificada para o cabo de uma chave de fenda enfiada fundo na minha vagina, de onde escorria uma gosma vermelha. O filho da puta do técnico fez aquilo e sumiu do mapa. Foi o grito alucinante da minha mãe que me tirou o torpor e, vendo ela se desesperar, eu abri mó berreiro também. Não lembro de ter sentido dor, nem do que aconteceu em seguida, certamente deletei esse capítulo. Só sei que desse dia em diante as mulheres olhavam para mim como a pequena órfã”, narra Rita, acrescentando que “foi a partir daquele momento que las mujeres passaram a relevar meus desajustes comportamentais. Nunca me castigaram, nem mesmo com aquele eventual tapinha na bunda que minhas irmãs volta e meia levavam. Me tratavam como uma espécie de aleijadinha psicológica”. Para Rita, as saias justas pelas quais passou com drogas, prisão, críticas e boatos “foram entendidas como ‘a dor que ela carrega na alma por causa ‘daquilo’, tadinha’”.

“Nos anos 60, o rock’n’roll era coisa de menino, de homem. Tinha até um bordão que falava assim: ‘Pra fazer rock’n’roll, tem que ter colhão.’ Aí eu falei: ‘Ah é? Eu vou fazer com meus ovários e com meu útero!’”

O que Rita chama de “desajustes comportamentais” parecem ser o que, hoje, entendemos como anseios e desejos que, naquela época, não era qualquer mulher que conseguia realizar. Se por um lado, o abuso causou um trauma na família, por outro libertou a filha caçula da criação machista que as irmãs tiveram. Rita chegou a fazer aulas de piano como a maioria das moças de sua geração, mas começou a despontar no meio musical com a voz: aos 15 anos montou o quarteto vocal de rhythm n’blues Teenage Singers, com colegas de escola. Foi nessa época, mais especificamente em 1964, que ela conheceu Arnaldo Dias Baptista, baixista da The Wooden Faces. A banda fazia cover dos Beatles em uma época em que o quarteto britânico era uma febre no mundo. Os dois combinaram de trocar aulas de baixo por técnica vocal e isso acabou dando à luz uma nova banda de rock, a Six Sided Rockers. Em entrevista à jornalista Renata Ceribelli para o Fantástico, em maio desde ano, ela explicou: “Nos anos 60, o rock’n’roll era coisa de menino, de homem. Tinha até um bordão que falava assim: ‘Pra fazer rock’n’roll, tem que ter colhão.’ Aí eu falei: ‘Ah é? Eu vou fazer com meus ovários e com meu útero!’”

Em 1966, a banda foi rebatizada pela gravadora Continental como O’Seis e gravou um compacto. Foi nessa época que Arnaldo e Rita começaram a namorar. Dissolvido o grupo, o trio — já com Sérgio Dias — tentou seguir como Os Bruxos, mas acabou rebatizado com o nome de Os Mutantes por Ronnie Von, em 1966. Os Mutantes acompanharam Gilberto Gil na gravação de “Domingo no Parque” e na apresentação da canção no III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, realizado 1967. Um ano depois, no III Festival Internacional da Canção Popular, foram a banda de apoio de Caetano Veloso quando ele tentou cantar “É proibido proibir” — e, após ser vaiado, acabou fazendo um happening — e apresentaram “Caminhante Noturno”, composição de Arnaldo e Rita. Ainda em 1968, a banda lançou seu primeiro álbum.

Os Mutantes viraram Mutantes — sem o artigo definido — e lançaram cinco álbuns, além de terem deixado um disco gravado na França em 1970, o “Tecnicolor”, só conhecido pelos fãs somente quando lançado, em 2000. Entre um álbum e outro da banda, Arnaldo acompanhou Rita em dois álbuns solo que o presidente da Philips, André Midani, com quem ela diz em sua autobiografia que teve um romance, convenceu-a a gravar. Na época em que começou a planejar o primeiro deles, “Build Up”, Rita e Arnaldo estavam em um dos muitos momentos de separação que tiveram. No entanto, quando ela estava prestes a entrar em estúdio, ele colou na amada e “topou, meio a contragosto, ser o diretor musical do disco”, conforme conto em “Discobiografia Mutante”: “Sérgio Dias não gostou da ideia e se recusou a participar do projeto. Entre um show e outro da turnê de lançamento de (o álbum) ‘A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado’, que tinha chegado às lojas em março, Arnaldo e Rita entravam em estúdio para trabalhar na produção de Build Up, que seria lançado seis meses depois, e ela ensaiava o (desfile-show) ‘Build Up Eletronic Fashion Show’. Para não sair por baixo, em maio de 1970, em uma entrevista à revista O Cruzeiro, Arnaldo disse que, além de estar construindo uma motocicleta com um motor Harley-Davidson, também estava preparando um álbum solo: ‘Não tenho a menor ideia do que vai acontecer. Será um disco pouco elaborado, mas bem autêntico’”. Lançado em 1970, “Build Up” ganhou o mesmo nome do desfile-show da Rhodia no qual ela interpretava uma menina ingênua do interior que sonhava subir em uma passarela para desfilar. Arnaldo Baptista participou das gravações, mas esse passou a ser considerado o primeiro disco solo de Rita.

Capa e encarte do LP “Build Up”, o primeiro de Rita Lee, lançado em 1970 | Imagem: Reprodução/Genius

O segundo solo de Rita, “Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida”, de 1972, é visto por muitos como um álbum dos Mutantes, pois contou com os integrantes da banda — Arnaldo Baptista no piano, sintetizador e piano Hohner, Sérgio Dias na guitarra, Arnolpho Lima (Liminha) no baixo e Ronaldo Leme (Dinho) na bateria — nas gravações. O então marido de Rita assinou todas as faixas, sendo que ela foi coautora em sete. Nesse mesmo ano, depois de algumas separações, brigas e traições, Arnaldo expulsou Rita da banda, que começara a enveredar pelo caminho do rock progressivo e, segundo ele, só admitia músicos virtuosos, coisa que Rita não era. O episódio deprimiu Rita e fez com que ela resgatasse um sentimento de rejeição já velho conhecido, conforme contou a Marcus Preto na mesma entrevista à Rolling Stone: “Essa sensação eu carrego desde pequena. Sempre fui persona non grata na escola. Quando comecei na música, diziam que eu era uma gringa riquinha fazendo rock imperialista. Quando saí dos Mutantes e parti para carreira solo, os manos torciam para minha derrota. Com Roberto, fui taxada de traidora do rock porque entrei no pop, na bossa, no bolero. Sobrevivi todos estes anos com críticas duras ao meu trabalho. O que me faz tocar o barquinho adiante é o público que sempre me prestigiou e continua enchendo meus shows”.

Depois de sair dos Mutantes e de separar de vez de Arnaldo, Rita lançou dois álbuns com a banda Tutti Frutti e conheceu o guitarrista Roberto de Carvalho. Com ele, a partir de 1979 escreveu seus mais bem-sucedidos sucessos. Segundo o último boletim sobre Rita divulgado pelo Ecad, ela contabiliza 327 obras musicais e 566 fonogramas cadastrados no banco de dados: nesse documento de 2017, “Mania de Você” aparece em primeiro lugar entre as músicas de sua autoria mais tocadas em shows e em segundo nas rádios; nas apresentações ao vivo, o ranking ainda é composto por “Agora Só Falta Você”, “Ando Meio Desligado”, “Dias Melhores Virão” e “Top Top”; entre as canções mais gravadas, “Mania de Você” também encabeça a listagem, seguida por “Mutante”, “Agora Só Falta Você”, “Ando Meio Desligado” e “Desculpe o Auê”.

Rita Lee & Tutti Frutti na década de 70 | Imagem: Reprodução/Flickr Rita Lee

Segundo a cantautora, com Roberto ela se permitiu viver sua faceta esposa e mãe sem precisar sempre ter que reagir. “Não nasci para casar e lavar cuecas. Queria a mesma liberdade dos moleques que brincavam na rua com carrinho de rolimã. Quando entrei para a música, percebi que a ‘tchurma’ dos culhões reinava absoluta, ainda mais no rock. ‘Oba’, dizia eu, ‘é aqui mesmo que vou soltar a franga e, literalmente, encher o saco deles’. Depois que provei a mim mesma que era capaz de conseguir as mesmas vitórias, sosseguei um pouco o facho. Principalmente depois que Roberto entrou na minha vida feito um Lancelot. Minha Guinevere pôde então exercer a função de namorada, amante e mãe. No palco, sou mais macho do que fora dele, não posso negar que minhas influências como figura de frente foram Jagger, Bowie, Tyler, Rod Stewart”, disse Rita na entrevista a Marcus Preto. Curioso é que, depois de se estabelecer como a rainha do rock e se tornar um dos maiores expoentes da música brasileira, o feitiço virou contra o feiticeiro, ou melhor, o machismo virou contra o macho (que, nesse caso, sendo o Roberto, nunca fez uma mulher sofrer): “Os mais burros diziam que ele estava dando um golpe para aparecer às minhas custas. Entre nós dois, Roberto e eu, não rolavam saias-justas. Sabíamos o potencial um do outro. O que enchia o saco era gente de fora dando opiniões babacas e tentando semear a discórdia. Eles ladravam e nós dois desfilávamos”. Esse embate com as burocracias é antigo, e Rita já enfrentava nos tempos de Mutantes. Quando em 2002 perguntei se gravadora, produtor, empresário, alguém tinha influência sobre as capas de discos da banda, ela me disse: “Tudo ficava sob nosso controle para desespero geral dos burocratas”.

Rita Lee sempre foi como “um dos caras”, certamente tendo atitudes instintivas de autodefesa para conseguir sobreviver em um mercado onde o próprio marido (Arnaldo) a expulsou de sua banda, o produtor (Midani) era apaixonado por ela, e deve ter enfrentados tantos outros obstáculos. “As questões do feminino também são retratadas nas suas músicas, em termos bem libertários. Como você tem visto o empoderamento das mulheres hoje?”, perguntou o jornalista Renato Vieira em uma matéria para o jornal O Estado de S. Paulo publicada em 2017, tentando resgatar o ponto de vista da cantautora sobre o debate no qual eu resolvi me meter em meu doutorado. “Para mim, as questões mais urgentes das fêmeas continuam sendo: ganhar o mesmo que os machos e ter direito ao próprio corpo”, definiu Rita Lee, curta e direta.

Rita é uma das poucas mulheres no mercado da música que conseguiu respeito, admiração e reconhecimento de público e financeiro. Prova disso é o fluxo de lançamentos de livros que sua editora mantém rodando — em 2020, foi a vez dos relançamentos “Dr. Alex e os Reis de Angra” (1988) e “Dr. Alex e o Phantom” (novo título para “Dr. Alex e o Oráculo de Quartz”, de 1992) e a enorme torcida de fãs e profissionais do mercado para que ela volte aos palcos. Neste ano, Rita não caiu no mesmo limbo de praticamente todos os músicos quando a pandemia do coronavírus fez com que as casas de shows fechassem e os projetos artísticos fora do meio digital fossem suspensos. Ela já estava acostumada ao isolamento, uma escolha feita há oito anos e muito bem aproveitada junto ao marido, em um sítio no estado de São Paulo, onde convive com “dois cachorros, três gatos, 30 carpas, três tartarugas d’água, cinco jabutis, macaquinhos, tucanos, maritacas, beija-flores que vivem solto no jardim encantado que nós temos”, como disse ao Fantástico. “Fiquei com vontade de viver a minha velhice solitária”, declarou à Renata Ceribelli, na mesma entrevista em que deixou em aberto a possibilidade de presentar seus fãs com algo novo: “O Beto faz músicas, ele toca, eu faço letra. De repente, se a preguiça deixar, a gente até grava um disco novo.” Se lá em “Nem luxo, nem lixo” Rita Lee cantava que seu sonho era ser imortal, ela não só já conseguiu isso em vida, como segue sendo e sempre será a rainha da música brasileira e das mulheres do Brasil.

Rita Lee no Rolling Stone Live em 2011 | Foto: Carol Mendonça

Chris Fuscaldo é escritora, jornalista e cantautora, além de mestra e doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. Trabalhou nos jornais Extra e O Globo, e colaborou para diversas revistas brasileiras, entre elas MTV e Rolling Stone. Além de editar o blog GarotaFM em seu site, produz conteúdo para artistas e gravadoras e atua como mediadora de debates em eventos ligados à música. Em 2015, foi responsável pela pesquisa do livro “Rock in Rio 30 Anos” (Ed. 5W). No ano seguinte, estreou como escritora em “Discobiografia Legionária” (Ed. LeYa), em que conta a história da Legião Urbana através de seus álbuns. Em 2017, estreou como cantora e compositora no álbum “Mundo Ficção”. Em 2018 lançou o livro “Discobiografia Mutante: Álbuns que Revolucionaram a Música Brasileira” (troféu Prêmio Profissionais da Música) e, com ele, fundou sua própria editora, a Garota FM Books.

ilustração por Alexandre Calderero — “de boa”

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