Elementos poético-musicais

Editor da Zumbido
Zumbido
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6 min readApr 13, 2018

Produzido dentro do Sesc: inquietações sobre música. Nesta edição, elementos poético-musicais por Evandro Alves Maciel

Para acompanhar a leitura.:

Elementos Poético-Musicais.:

(2018)

Forjar um espaço de visão — uma perspectiva dentre perspectivas — que unificasse determinados anseios imaginários onde o som, mágico como ele mesmo, produzisse as compreensões mais íntimas, intensas e efetivas de que meu corpo tivesse notícia.

Nem sei bem se sei, na verdade, ou mais possivelmente esteja tratando de sobrepor-me a uma das grandes lacunas de minha vida,

(o que seria de uma vida sem suas grandes lacunas?) e a que mais me sensibiliza: ter deixado de estudar música. De qualquer modo, isso deixou de ser relevante faz tempo.

O que sabia antes disso? Melhor dizendo, como algo tão elementar como o som pôde conformar-se com meu corpo de tal modo que despiu, após um primeiro grande encontro, minha primeira pele, festejando o susto que é viver em carne viva?

Antes jamais sustentaria forjar eu mesmo um espaço de visão; ao contrário, era eu quem estava sendo forjado por aquela potência inescapável. Passei a refletir mais detidamente sobre os significados de ambas as perspectivas e de como isso determina nossos modos de relação com o outro, com o mundo e com nossos próprios eus.

Estou começando pelo final, não é de propósito, mas vem bem a calhar.

Um pouco mais de ordem, mas não muita. Vejamos. O tempo tem acepções bastante diversas. De modo que se eu disser: “quando eu tinha dezesseis anos ouvi Pink Floyd pela primeira vez e morri”, isso talvez signifique, embora seja verdadeiro, algo demasiado pessoal — o que importaria muito pouco, portanto. Se eu disser: “comecei a escrever poemas aos dezessete e nasci”, igualmente estaria tratando de um aspecto biográfico que só haveria de interessar a mim ou, no máximo, aos meus amigos próximos.

… (se fazemos de Cronos nosso mestre maior, mas o reduzimos a uma série de sucessões aparentemente desconectadas umas das outras que vão se somando e compondo aquilo a que chamamos Vida, muito provavelmente deixaremos de perceber o próprio movimento do tempo; deixaremos de perceber nosso próprio movimento no tempo. E no espaço. A perspectiva se achata, se apequena) …

Mas, se eu dissesse:

“quando ouvi Beethoven pela primeira vez, descobri que cavalos podem voar”

ou

“a primeira nota que sustentei, engendrou meu corpo”,

talvez já pudesse iludir uma outra realidade menos pessoal, mais comum, mais… poética (?).

(Olha, sobre o que me perguntou, por mais difícil que seja, as palavras não são o objeto da Poesia — não há objeto da Poesia — há a produção contínua de intensidades e acontecimentos que a conformam e a confirmam num tipo determinado de expressão).

Sobre o outro tempo, o kairos.

É como o gozo de Cronos. É o cerne mesmo do acontecimento poético; sua expressão determinada. O escape da regularidade da linha; o assalto performático do tempo a ele mesmo; a devolução sanguínea daquilo que se rouba do velho hábito e instaura o acontecimento;

o bom encontro; o tempo oportuno.

O gozo de Cronos.

E a palavra?

(Veja bem, o escrito está saindo uma confusão terrível. Não é proposital, mas vem bem a calhar).

E a palavra?

Dias atrás pensei muito em você, e me perguntava: “ora, mas o que é poesia, então”? — e ouvimos muitos silêncios como pausas musicais que antecedessem outros sons mais audíveis

– depois de respirar um pouco, você me respondia:

“esqueça os velhos hábitos, Poesia não tem nada a ver com a palavra; tem a ver com Música”. Precisei de mais uma cerveja para antever a conclusão a que chegava; meu velho hábito dizia: “poesia é arte da palavra”; “música é a arte dos sons”; repetindo um mantra contemporâneo tão repetido e equivocado que não me admira que tenhamos nos tornado tão medíocres. Então, me disse:

“mas as palavras não são, acaso, feitas de sons”?

(Veja, incontáveis vezes te disse, a Música foi meu acontecimento originário. Não o fato de ter estudado música. Mas a música ela mesma, sustentando meu corpo de um modo inédito, unificando determinados anseios imaginários onde o som, mágico como ele mesmo, produzisse as compreensões mais íntimas, intensas e efetivas de que meu corpo tivesse notícia. Veja, incontáveis vezes te disse, se não fosse a Poesia, estaria morto. Não sabia, mas estava sendo engendrado por sua potência inescapável) — adiantei-me em espírito mil anos. Meu espírito é minha carne vibrando. O mundo é realmente um lugar grande demais. Quando olho para a noite, suspendo meus juízos e me encontro com minha porção musical, isto é, com minha porção poética.

Forjar um espaço de visão, irredutível; cumprir no espaço uma expressão não linear. Compor o tempo oportunamente: vibração; ritmo; movimento; repouso; proporção; tensão; simultaneidade; corpos; expressão; Vida. No entanto, são apenas palavras (?). Porém, as palavras são feitas de sons. O som é o átomo vital.

A familiaridade ancestral que temos com a Música; a familiar ancestralidade da qual a Poesia é a expressão mais contundente, talvez indique algo importante e ativo. Uma fonte originária que geraria, se não as coisas mesmas, ao menos o modo como as sentimos; se não os corpos existentes e suas complexas relações, ao menos os múltiplos e variados modos de como produzem sentido. Sentido é o que se sente. As cores que se formam quando tal encontro de sons as produz. As formas que se engendram quando determinadas palavras produzem um cheiro tão extasiante que fazem vibrar em nós uma pele debaixo da pele que arrepia os pelos e faz os olhos se fecharem cegos, abrindo caminhos para uma nova realidade dentre tantas realidades presentes conformando-se feito frases dentro de uma peça ou imagens dentro de um filme ou alienígenas visagens que nos atravessam e tendem a perturbar aquilo que chamamos de “normalidade”. Que temos nós a ver com a normalidade?

Abandone os velhos hábitos. Faça Cronos gozar. O tempo não é uma linha, é um emaranhado. O Cosmos é um grito desesperado desde o Caos originário e recorrente com a intenção de performar o grito necessário em desespero medicável em nome de uma normatividade passiva garantidamente eficaz em tornar nossos ouvidos surdos para a Poesia e nossa pele insensível para a Música. É um jogo de poder porque é um jogo de forças. Separá-las e acreditá-las separadas (poesia e música) é um “erro proposital” para que estejamos decerto calados dentro de nossos corpos controlados. Cuidado! O som é o átomo vital; as palavras são feitas de sons; compor o tempo oportunamente, fazer Cronos gozar quer dizer fazer vibrar o ritmo de nossa singularidade, seu gesto, movimento, repouso e proporção; afirmá-lo simultaneamente em meio a outros corpos existentes em seu direito natural à expressão. Compor a Vida poética e musicalmente, isto é, pertencer à sua potência originária. Podemos.

Evandro Alves Maciel é poeta, graduando em Filosofia pela Faculdade de São Bento, de São Paulo e fotógrafo amador. É autor do livro de poemas “Veneno de Ornitorrinco” (Ed. Patuá, 2016). Trabalha no Sesc desde 2005, com passagens pelas unidades Pompeia, Cinesesc e atualmente no 24 de Maio.

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