Uma dicção muito peculiar

Editor da Zumbido
Zumbido
Published in
22 min readMay 14, 2021

Tem free jazz (macarrônico?) na retaguarda da tal vanguarda, si signore. A Divina Increnca por Fábio Giorgio

O trio formado por Rodolfo Stroeter, Azael Rodrigues e Félix Wagner na caricatura de Miécio Caffé estampada na capa do LP | Foto: Reprodução

O ouvido não tem preferência particular por um “ponto de vista”. Nós somos envolvidos pelo som. Este forma uma rede sem costuras em torno de nós. Costumamos dizer: “A música encherá o ar”. Nunca dizemos: “A música encherá um segmento particular do ar”. Ouvimos sons vindos de toda parte, sem jamais haver um foco. Os sons vêm de “cima”, de “baixo”, da “frente”, de “trás”, da “direita”, da “esquerda”. Não podemos fechar a porta aos sons automaticamente. Simplesmente não possuímos pálpebras auditivas. Enquanto espaço visual é um continuum organizado de uma espécie uniformemente interligada, o mundo auditivo é um mundo de relações simultâneas.

(Marshall McLuhan)[1]

Atenção sonora essencial

Neste átimo caótico por demais, importa muito estar atento e ouvir os apelos de quem, antes de colapsos sistêmicos e malditos afogamentos, testemunha a própria fragilidade — principalmente quando se encharca o espaço público do sonoro jorro (discurso institucional?) autoritário de ódio e negação, GENERALizado desde cima e multiplicado em ambientes virtuais. Melhor formulando: sempre é preciso ouvir o que importa. Mas o que importa? E como fazê-lo? Pois até o silêncio costuma fugir ao contexto quando dele se necessita com urgência. Empatia e solidariedade para quem sabe (ou quer aprender a) valorizar… empatia e solidariedade! Mais o quê? A prática contemplativa, que, em meio a ações dedicadas a timbrar o mal-estar entre nós, talvez (re)aproxime todos e cada um à dimensão coletiva da vida, à virtude? Frisa-se: não apenas da mera percepção — e do convencional — a audição se faz. Com tanto ruído (não só acústico) e distorção (dos fatos) pululando dos canais não necessariamente competentes, a escuta é cada vez mais rara.

Por isso, em plena pandemia, ao estabelecer voluntário ensimesmamento (distanciamento não define bem o estado anímico atual) também pela subsequente fadiga cognitiva, que tem desmobilizado atitudes e reações, e não considerando, ainda, a espetacularização da estupidez como marca (civilizacional?) definitiva no efêmero de nossos dias no planeta, fazem-se oportunas algumas observações estratégicas e sensíveis de sobrevivência — inclusive cultural.

Sim. Em detrimento da irresponsabilidade política e econômica culminada no surto sociopata que vemos no país, representado na banalização não só da morte, mas nos índices de desigualdade jamais vistos, que têm relação com a lógica (abjeta) do mercado e o descarte do lixo industrial — que se retroalimenta dos dejetos que produz –, torna-se premente, com a maior abrangência possível, afirmar valores humanos, artísticos, protegê-los da indiferença federal e do consumismo de manada. Sob pena de nos barbarizarmos, categoricamente, ao ser lançados no abismo da desmemória, da indigência mental, emocional e afetiva.

E é contra todo conteúdo embrutecedor, destinado a excitar “somente o corporal: tem de divertir os preguiçosos ou os que estão cansados e nada mais”[2] — cuja existência não se pode desconhecer, em hipótese alguma, sob risco de engrossarem as fileiras neofascistas –, que urge enunciar: entre a treta do contemporâneo e o embate permanente, reverbera algo além da algazarra ignara e do arrebatamento mi(s)tificador. A música d’A Divina Increnca, por exemplo. Compilada mais amplamente, em 2007, no relançamento em CD do único item discográfico de sua trajetória intermitente.

Dos poucos registros da reunião do Divina em 2016 no projeto “Lira Paulistana: 30 anos” no Sesc Ipiranga | Foto: Acervo Sesc Ipiranga

“Increnca” pouca é bobagem

Um arco temporal de 101 anos conecta a primeira edição, produção independente, de La Divina Increnca (1915), de Juó Bananére, à última formação do grupo paulistano de música instrumental A Divina Increnca, reunida para show no Sesc Ipiranga, São Paulo, em 22 de janeiro de 2016.

Denominação (quase) idêntica à obra de Bananére, inicialmente um duo — constituído e nomeado em outubro de 1976 pelo baterista Azael Rodrigues, ao encontrar no pianista alemão Felix Wagner, residindo no país à época, as qualidades necessárias à sua proposta de “fazer música improvisada, base jazz com direito a novos procedimentos”[3] –, a estreia do A Divina Increnca ocorreria bem depois, no final de 1977, no Teatro de Cultura Artística[4], também na capital paulista. Mas foi como trio, com a adição do contrabaixista Rodolfo Stroeter, que o grupo produziu seu repertório autoral registrado em LP independente autointitulado A Divina Increnca (Studio JV, 1980); reeditado em CD (Editio Princeps, 2007) com faixas bônus.

Persona artística do engenheiro Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (Pindamonhangaba, 1892 — São Paulo, 1933), Juó Bananére corporificou-se articulista e cronista, a partir de 1911, nas páginas da revista literária e política O Pirralho — fundada por um ainda jovem Oswald de Andrade em parceria com Dolor de Brito. Porém, com a publicação de La Divina Increnca, volume que reúne parte de sua iconoclasta obra poética, o intrépido escriba pôde apresentar mais amplamente sua estética da “insgulhambaçó”, alçando ao status de arte, por estas plagas, uma dicção muito peculiar:

Mas por que usava Juó Bananére, para esse fim, o dialeto ítalo-português? Não é dialeto. Essa mistura intencional e literária de duas línguas para fins parodísticos chama-se macarronismo. Entre nós usa-se essa expressão quando alguém fala uma língua que não conhece bem, estropiando-a: “Fulano falou num francês macarrônico”. Também se alude ao “latim macarrônico” da Idade Média. Mas é uso inexato do termo. O verdadeiro macarronismo é uma técnica literária que foi antigamente usada em muitos países, sobretudo no século XVI e XVII na França, na Espanha e especialmente na Itália, onde chegou a surgir um grande poeta macarrônico: Teofilo Folengo, autor de uma epopeia herói-cômica, Baldus, em língua misturada de italiano e latim, livro que exerceu profunda influência sobre Rabelais e Cervantes.[5]

Dadas as peripécias linguísticas (e de linguagem) da criatura Bananére — o cronista mais popular da São Paulo da segunda década do século 20, de acordo com o modernista Antônio de Alcântara Machado, em texto publicado poucos dias após a morte do criador Alexandre R. M. Machado — e o empréstimo prestimoso pelo grupo paulistano do título da obra mais conhecida do primeiro, percebe-se que a filiação entre as increncas ultrapassa o caráter bem-humorado e nada ortodoxo de amba(o)s.

“A Divina Increnca parecia fadada a ampliar o interesse da prática — densa, porém nada sisuda ou hermética.”

São muitos os questionamentos decorrentes das duas trajetórias que merecem estudo mais detalhado e, quem sabe, comparativo. Sintetizando: de um lado, a pena contundente e o approach de Juó Bananére, um inventor prosódico, polemista, que, por meio de sua “voz, talvez a primeira, da democracia paulista”[6], em prosa, verso, fosse na política, nos costumes ou nas artes, não poupava nada nem ninguém que se interpusesse ao seu progressismo. Do outro, explorando a aparente contradição entre o adjetivo “divina” e o substantivo estropiado “increnca” da referência literária, valores musicais eram revistos em prol de algo mais orgânico, mas, ao engajar-se com o “pensamento neo-oswaldiano na recriação de novidades”[7], A Divina Increnca parecia fadada a ampliar o interesse da prática — densa, porém nada sisuda ou hermética, com uma sintaxe híbrida, moderna — instrumental em um país que desde os anos 1970 vê, imposta ao grande público, a monocultura da canção imperar ou, mais controverso ainda, há décadas consagra ídolos de vento. Ao que consta, os concertos foram auspiciosos no propósito de divulgar as intensidades de sua música.

Sobre a “forma de interpretar ou, melhor ainda, de interagir do trio”[8], é bastante significativo reproduzir as palavras de Azael Rodrigues (1955–2016), posto que sintetizam conceitualmente o processo estabelecido pelos então jovens instrumentistas, algo como um núcleo de criação com viés universalista, desde a gênese do trabalho:

O que eu queria dizer é que a estrutura tema, impro, tema se esgotara e podia dar lugar à interação entre solista e acompanhante, [na qual] os […] músicos têm a possibilidade de serem a voz da vez. Todo mundo sola, todo mundo acompanha, tudo depende do estímulo sonoro. Num primeiro momento a reticência de quem tocou anos temas do hard bop (Warne Marsh etc.) ficou patente. E toca ouvir Coltrane. Muito Mingus (the real pré-free jazz), um pouco de Ornette, sem esquecer do John Cage e Stockhausen, eruditos com ideias afins. E muito piano: Cecil Taylor (que eu tinha visto ao vivo na Europa), McCoy Tyner (Coltrane’s Keys), Bill Evans e Keith Jarret. E depois de meses ouvindo, discutindo e tocando, ficou claro que o tempo marcado (beat regular) tinha o mesmo valor expressivo do tempo que vem a partir de estímulo não predeterminado — o que importava era a base sólida de mais de ano ouvindo e conversando para que pudéssemos usar essa vivência como guia de nossas “conversas musicais” com a cumplicidade da plateia.[9]

Acrescente-se, ainda, que A Divina Increnca flertou com os ditames vanguardistas, mas sem abandonar o feeling de jazz (acústico) — mesmo não soando tão formalmente radical como o Grupo Um, seu companheiro de geração, que não se furtou ao uso de timbres eletrônicos — e sua veia iconoclasta: fruir com sua produção mesmo hoje demanda sair da zona de conforto, não importa se mediado pelo entendimento de que

[…] os sons são emissões pulsantes, que são por sua vez interpretadas segundo os pulsos corporais, somáticos e psíquicos. As músicas se fazem nesse ligamento em que diferentes frequências se combinam e se interpretam porque se interpenetram.[10]

O sentido fidalgo e etéreo reiterado no poema que o increnqueiro mor parodia (na sequência), o soneto XIII de Via Láctea, obra do parnasiano Olavo Bilac, ilustra um “mundo de relações simultâneas”, de enunciado rigoroso na forma, porém inconsistente de conteúdo; Bananére, no entanto, parece estabelecer ao seu modo crítico-cínico que a instância da interlocução, mesmo na blague, requer partícipes atentos, sob risco de se perder o timing da piada:

Che scuitá strella, né meia strella!

Vucê stá maluco! e o io ti diró intanto,

Chi p’ra iscuitalas moltas veiz levanto,

I vô dá una spiada na gianella.

I passo as notte acunversáno c’oella,

Inguanto che as outra lá d’um canto

Stó mi spiano. I o sol come um briglianto

Naçe. Oglio p’ru çéu: — Cadê strella!?

Direis intó: — Ó migno inlustre amigo!

O chi é chi as strellas ti dizia

Quano illas viéro acunversá contigo?

E io ti diró: — Studi p’ra intendela,

Pois só chi giá studô Astrolonia,

É capaiz di intendê istas strella.[11]

Relações (nada aleatórias e não necessariamente) simultâneas

Em um dos textos do fascículo 2 da coleção História da Música Popular Brasileira, o maestro Júlio Medaglia celebra o papel disseminador de Pixinguinha e o processo que estabeleceu alguns parâmetros de nossa música. Um dos aspectos destacados, entre outros dignos de repercussão, como a absorção dos elementos melódicos da música portuguesa e a cadência africana, é que os instrumentos de origem europeia (violão, flauta e piano), no Brasil do início do século XX, foram adaptados à

[…] variedade rítmica produzida por frigideiras, cuícas ou tamborins — feitos com couro de gato.

Nesse período destacou-se então a figura de Alfredo Vianna Filho (para os cartórios e registros de imposto de renda) ou, mais simplesmente, de Pixinguinha (para a música popular brasileira). Virtuose de seu instrumento — a flauta –, foi o principal responsável pela concretização daquela nova realidade musical popular, baseada na formação de pequenos conjuntos, uma espécie de execução camerística que se tornou famosa a partir do trinômio flauta-violão-cavaquinho.

De início, a presença dos instrumentos de pele era dispensada, pois todo aquele calor rítmico da percussão havia sido transportado para instrumentos de corda e sopro. […]

Em Pixinguinha nota-se claramente a escrita orquestral da época, presente em óperas e operetas e que capitalizou para sua técnica e forneceu os dados básicos para a formação de uma linguagem instrumental caracteristicamente brasileira. [12]

Como as gentes simples do país, desde aquela época, experienciavam intuitivamente o tipo de transposição detalhado, reconhecia-se, por consequência, na difusão do progresso técnico, a capacidade de fazer daquele impulso mais primitivo associado à necessidade expressiva um acontecimento estruturante. Assim, do virtuosismo pioneiro dos chorões, anteriores até mesmo a Pixinguinha, passando por Noel Rosa, pela Era de Ouro do Rádio e chegando à televisão e à bossa nova, demarcaram-se itinerários da linguagem musical popular no país, porém, com a última, a produção se sofisticou, modernizou e internacionalizou — ao renovar o samba, o gênero definidor do formato cancionista nacional. Mais do que isso, na verdade, a bossa nova também estabeleceu um marco determinante da música instrumental brasileira.

Mais uma vez, das observações de Azael Rodrigues, delineia-se um painel de acontecimentos para narrar não apenas sua história, mas, por extensão, a do A Divina Increnca e de todo um ambiente sociocultural que moldou uma das músicas mais influentes do mundo contemporâneo:

Flash Back. “O Fino da Bossa” 1966. Os cantores Elis Regina e Jair Rodrigues eram os apresentadores desse programa de auditório que fazia enorme sucesso e eram acompanhados por Hamilton Godoy, Luís Chaves e Rubinho Barsotti, o Zimbo Trio. Tamba Trio com Luizinho Eça (técnica apuradíssima ao piano), Bebeto e Hélcio Milito na bateria e Jongo Trio (Cido Bianchi no piano, Sabá no contrabaixo e Toninho “Calça Justa” Pinheiro na bateria) também se apresentavam regularmente no programa. A visibilidade da música instrumental na TV era incrível. Presenciar o Zimbo com sua musicalidade, os solos de Rubinho com a mão nos tambores, uma aula.

Um pouco antes, no “Beco das Garrafas”, Edson Machado apresentava o Samba Jazz (que o competente Daniel D’Alcântara, trompetista e autor do play along com mesmo nome, chama de hard bop brasileiro) junto com o Milton Banana, criador da levada de Bossa (tão tentada pelos americanos, é duro eles pensarem em dois), imortalizada na voz de João Gilberto.

Por que a música instrumental brasileira não tem público? Porque às vezes ela gosta de posar de coitada e voltar pra casa se lamentando. O “fazer” é acontecer perante os olhos do público. Como, por exemplo, o Eumir Deodato. Foi para os Estados Unidos, gravou Zaratustra (1972, com Ron Carter no baixo e Billy Cobham na bateria) e vendeu milhões de cópias. Genial. Continua trabalhando com arranjos. Competência.[13]

Ainda hoje, com a disponibilização de gravações das mais variadas — e raras — em plataformas digitais, é curioso notar trocas estabelecidas entre bossa nova e jazz, em alguma instância, apesar da amplitude inegável do último como manifestação musical das mais profícuas em dimensão global. Inclusive, dando voz a um dos pais de uma das crianças eternas, Tom Jobim, destaca-se que, mesmo bastante transformada, a novidade oceânica do passado continua desaguando, ondulante e caudalosa, nas praias do futuro:

O americano chama tudo o que balança de jazz. Nós poderíamos então dizer que o samba é o jazz brasileiro, porque tem também […] a influência africana, a influência europeia. Todos os elementos que causaram o jazz lá nós temos aqui.[14]

O crítico musical e historiador Carlos Calado vai além, identificando essa via de mão dupla com trânsito incessante de ícones:

Trata-se, na verdade, de um caso de influência recíproca. Os músicos de jazz foram seduzidos pelo ritmo sincopado e pelas harmonias sofisticadas da bossa nova, assim como a geração de músicos e compositores que a criou, na década de 50, havia sido influenciada tanto pelo jazz moderno de Shorty Rogers, Barney Kessell e Chet Baker como por mestres da canção norte-americana, como Gershwin, Cole Porter e Richard Rodgers.

Assim é fácil entender como a bossa foi integrada ao repertório de standards do jazz, relida por clássicos vocalistas e músicos, como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Oscar Peterson ou Joe Pass. Mesmo que ela tenha sumido um pouco da cena do jazz, nos anos 70 e 80, desde a década passada novos cantores e instrumentistas, como Diana Krall, John Pizzarelli, Cassandra Wilson, Brad Mehldau, Karrin Allyson, Jane Monheit e Carmen Lundy, voltaram a namorar as clássicas canções de Jobim e seus parceiros. Pelo quanto é cultuada, a bossa parece ter ainda uma longa carreira internacional pela frente.[15]

O também crítico e jornalista especializado Tárik de Souza é mais radical em sua tese, atribuindo à lavra de Tom Jobim outro parentesco, quiçá alguma originalidade dinástica, tanto com a música estadunidense quanto com a de outras nacionalidades e culturas:

É provável que uma auditoria comparativa do acervo do maestro com a parcela do jazz que lhe é contemporânea ou posterior na matriz daria um resultado curiosamente inverso ao anátema. Ou seja: tomando por base a pedra inaugural — o registro de Stan Getz (sax) e Charlie Bird (guitarra), que vendeu um milhão de cópias de “Desafinado” (compacto do disco Jazz samba) no princípio dos anos 60 –, a partir de um determinado momento a influência de Jobim sobre o cenário do jazz já é proporcionalmente maior que o movimento inverso. […]

A ocorrência dos procedimentos do jazz na obra jobiniana é inferior ao estigma. O mais correto seria anotar sua sincronia com a American song exportada para o planeta no pós-guerra. Afinal, Cole Porter e Berlin já haviam filtrado do jazz harmonizações modernas para suas baladas encharcadas de swing e torch songs com veneno dissonante. […]

Também seria redutor estacionar o universalismo jobiniano na praia ianque. Debussy e Ravel fizeram mais a cabeça do compositor que a dupla Rodgers & Hart. Sem falar de Stravinsky e do planetário brasileiro Villa-Lobos, de quem Jobim é uma espécie de epígono na música popular, embora, se analisando do ponto de vista da carpintaria estética, também esse carimbo perca a nitidez.[16]

O melhor dessa história toda é que A Divina Increnca constituiu muito particularmente sua formação de trio de jazz não apenas incorporando altas doses de improviso coletivo derivativas de intensa (con)vivência, do estudo comum de música erudita e contemporânea. Mas, sobretudo, rompendo com as matrizes convencionais (da bossa nova e do jazz ortodoxo foram preservadas, com muita parcimônia, algumas poucas “levadas” e o balanço), no intuito de realçar seu ecletismo experimental, sua filiação inventiva, percutindo latas e introduzindo timbres da música indiana e até indígena — por exemplo, ao interpretar a composição de Felix Wagner “Ainda bem que não flalta fauta” –, estabelecendo descontinuidades e sonoridades outras decalcadas da instrumentação mais livre (sem partituras) e, talvez, de outras tantas vozes não necessariamente entoadas como música: a poesia ou a prosa prosódica de Bananére?

Contracapa do LP homônimo lançado em 1980 | Foto: Reprodução

Retaguarda da vanguarda

A qualidade artística envolvida, a abrangência de linguagens e a repercussão midiática massiva fizeram do teatro Lira Paulistana um dos polos aglutinadores mais importantes de São Paulo durante sua existência, de 1979 a 1986. Com a publicação de seu próprio jornal, o lançamento de um selo fonográfico, uma editora, uma loja e distribuidora de discos, e com a ampliação de seus projetos de apresentações musicais para espaços abertos, os tentáculos do porão da Teodoro Sampaio se prolongaram com uma potência irradiadora chegando muito mais longe que na comunidade estudantil uspiana residente na Vila Madalena e adjacências — a “periferia” de Pinheiros.

Assim como a São Paulo do final dos anos 1970 aspirava a uma conjuntura sociopolítica menos opressora — talvez fosse realmente uma cidade menos conservadora à época –, a classe artística encontrou no Lira um efetivo ambiente de criação, trocas afetivas e simbólicas, ações diretas. Por ali passaram mais que centenas de nomes e diversas propostas estéticas — ousou-se o sonho de um país plural e democrático. No Lira o novo som foi praticado e aclamado enfaticamente, como observou Carlos Calado em texto publicado no site do grupo Pau Brasil:

Rotulada pela imprensa de Vanguarda Paulista, essa geração tinha como expoentes, na área da canção, grupos como Rumo, Premeditando o Breque, Língua de Trapo e Sossega Leão, compositores como Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé (cuja banda Sabor de Veneno não chegou a se apresentar no Teatro Lira Paulistana porque o palco era pequeno demais para comportá-la), além de cantoras como Eliete Negreiros, Tetê Espíndola, Neuza Pinheiro, Vania Bastos, Suzana Salles, Virginia Rosa e Ná Ozzetti.

Embora esses nomes sejam os mais lembrados até hoje, quem teve a sorte de frequentar o Lira Paulistana (assim como a Sala Guiomar Novaes da Funarte, o auditório do Masp ou o Centro Cultural São Paulo), sabe que, praticamente, as mesmas plateias que acompanhavam os shows desses grupos e artistas citados acima também aplaudiam as apresentações de uma nova geração de grupos de música instrumental produzida em São Paulo, como o D’Alma, o Pé Ante Pé, o Freelarmônica, a Banda Metalurgia, o Acaru, o Alquimia, o Papavento, o Syncro Jazz e os já mencionados Grupo Um e Divina Increnca, além do Pau Brasil.[17]

O projeto “Instrumental” do Lira, preferencialmente às segundas e terças, reuniu desde os trabalhos mais vanguardistas, experimentais, até aqueles com características fusion ou apelo mais popular. Além de shows no Masp, Sala Guiomar Novaes, participação na segunda edição do Festival Internacional de Jazz de São Paulo, em 1980, parceria com o suíço Montreux Jazz Festival, no Palácio das Convenções do Anhembi, e duas idas ao Rio de Janeiro, A Divina Increnca era habitué do porão mais famoso de São Paulo — foram muitas temporadas ali.

No entanto, cabe salientar, mesmo grupos e músicos com trabalhos instrumentais sólidos e amplamente envolvidos nas produções da (in)certa vanguarda paulista — cujo DNA paranaense (Arrigo, Itamar e Neuza) não pode ser ignorado — são infinitamente menos mencionados e valorizados que os “cancionistas”, nas abordagens historiográficas e jornalísticas do período ou desse recorte geracional.

Rodolfo, Feliz e Azael (esq. para dir.) em passagem meteórica pela pequena aldeia conservadora e reacionária da grande São Paulo | Foto: Reprodução/Palavra de Músico

Para delinear o descalabro, apresenta-se parte das fichas corridas dos increnqueiros: o baterista Azael Rodrigues foi membro fundador do Premê e do Pau Brasil — gravou álbuns de ambos –, além de ter tocado com Arrigo na pseudópera Gigante Negão (1990), entre outras tantas colaborações, como no primeiro LP das Frenéticas (1977), com César Camargo Mariano, nos álbuns Prisma (1985) e Ponte das Estrelas (1986), na banda Mantiqueira, com Emilio Santiago e Jorge Benjor. Nos seus últimos anos de vida também capitaneou a banda Azael Rodrigues & Network. Nos últimos meses, preparava nova versão do A Divina Increnca, que estava gravando trabalho com a participação do pianista Rogério Rochlitz e do guitarrista João Marcondes — ambos o acompanharam no último show do grupo, em 22 de janeiro de 2016 no Sesc Ipiranga, no projeto “Lira Paulistana: 30 anos. E depois?” Ele também teve dois álbuns póstumos lançados: Coletivo São Paulo-Milào, com o pianista italiano Antonio Zambrini, João Marcondes e André Santos, gravado em única seção, dia 7 de março de 2016; e Cantilena (2016), com João Marcondes. Deixou ainda um livro escrito, O ritmo interior (2018), organizado por sua irmã Gaia Dyczko e lançado postumamente em edição bilingue.

O multi-instrumentista Felix Wagner, que tornou a morar na Europa, em alguns países, depois de muitos anos no Brasil, teve participação no álbum Clara Crocodilo (1980), de Arrigo Barnabé, atuou com o teatro Ornitorrinco, com a cantora Fortuna, no Grupo Um, acompanhou Itamar Assumpção, Tetê Espindola, entre outros. Na Europa (Berlim, Roma, Lisboa), compõe para big bands, quintetos de saxofones e formações jazzísticas, e atuou como pianista solo (prêmio da cidade de Berlim). Trabalhou com Albert Mangelsdorff, Till Brönner, Sven Ake Johansson, Garrett List, Cher, Twana Rhodes, entre outros. Como livre docente leciona solfejo e harmonização jazzística na Universität der Künste (Berlim).

O contrabaixista Rodolfo Stroeter é um dos fundadores do Pau Brasil, tendo participado de toda a discografia do grupo. Em 1985 lançou seu único disco solo, Mundo. Foi integrante do Grupo Um, gravou os álbuns Reflexões Sobre a Crise do Desejo (1984) e A Flor de Plástico Incinerada (1986). Criador do selo Pau Brasil Music, produziu artistas como Joyce, Gilberto Gil, Banda Mantiqueira, Sérgio Santos, Marlui Miranda, Mônica Salmaso e outros. Foi diretor artístico da orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, entre 1991 e 1995. Ainda no campo da produção musical, desenvolveu trabalhos para inúmeros artistas, como Zizi Possi, Céline Rudolph, Gilberto Gil, Pau Brasil, Trilok Gurtu, Naná Vasconcelos, Joyce, Sergio Santos e Dori Caymmi.

“O curioso é perceber como uma arte predominantemente popular transformou-se em objeto de culto de eruditos ou pretensiosos…”

“Cheguei lá e tal…”

No ano em que se celebram quatro décadas do lançamento original do álbum autointitulado A Divina Increnca (de 1980, mas lançado no ano seguinte) — e a um ano do centenário da Semana de Arte Moderna, que, de certa forma, representa o fim de um ciclo de “importações” no campo cultural –, no horizonte dos eventos, decisivas, impõem-se percepções acerca da exploração da matéria sonora, seja como renúncia ao nacionalismo fanático ou como meio de representação das formas dialógicas.

Como se sabe, no jazz, os instrumentos clássicos de sopro são usados com o intuito de simular “inflexões da voz humana, ou seja, a maneira africana de tocar os instrumentos europeus.”[18] O curioso é perceber como uma arte predominantemente popular transformou-se em objeto de culto de eruditos ou pretensiosos…

Antes, porém, de discorrer sobre o único item discográfico do grupo, (mais) uma digressão: Juó Bananére, que se apresentava como poeta, barbiere i giurnaliste, muito provavelmente fora criado com o entendimento de que,

como seus serviços em tal atividade liberal lhe permitiam tempo vago entre um freguês e outro, os barbeiros [podiam] aproveitar esse lazer para o acrescentamento de outra arte não-mecânica ao quadro de suas habilidades: a atividade musical.[19]

A começar pela capa, com uma caricatura de Miécio Caffé (1920–2003) dos três integrantes sorridentes e até mesmo uma carinha na voluta do contrabaixo de Rodolfo escancarando os dentes, a versão em LP do álbum A Divina Increnca, com área de capa 1 cm² maior, parecia pensada integralmente para ferir as suscetibilidades de ouvintes (e consumidores) dogmáticos — algo que o público mais especializado de jazz, ao leigo, parece encarnar. Sobre a escolha do desenhista/pesquisador cuja biografia é lendária, — Miécio registrou o nascimento da bossa nova em mais de 700 horas de gravações e imprimiu sua arte em cartazes, publicações e muitas capas de discos, além do acervo monumental de discos 78 rpm que possuía e de ter testemunhado boa parte dos acontecimentos musicais relevantes no Brasil até os anos 2000 –, estabeleceu-se um ruído:

Esse é um bom exemplo da dinâmica de “polêmica interna” do Divina Increnca. A ideia de chamar o Miécio para fazer a capa foi do Azael […] eu diria que o conteúdo e a capa do disco são “opostos que convivem”; o Azael vai ver que diria que são “opostos integrados que se chocam”.[20]

Em 22 de julho de 2008, indagado pela jornalista Patricia Palumbo sobre uma possível diferença do som daquela apresentação no Programa Instrumental Sesc Brasil, com uma formação de quarteto (Azael Rodrigues: bateria; Carlos Rebouças: piano; Geraldo Vieira: contrabaixo elétrico; e Vitor Alcântara: saxofone), em relação ao trabalho original do álbum, com a base de trio e participações (de Mauro Senise e Claus Petersen) em três de oito composições, Azael afirmou que os interlocutores recentes da obra manifestaram apreço à sua atualidade:

Porque, primeiro, a gente chegou, vamos dizer, no pensamento musical, numa coisa um pouco mais densa, mais profunda do que simplesmente fazer groove ou alguma coisa assim. Tinha um conceito por trás. A gente queria exatamente… A gente pesquisou muito, tanto o jazz como a música erudita. Como a música brasileira também, com Hermeto [Pascoal] e Egberto [Gismonti], que estavam tocando muito na época. A gente chegou um pouco mais fundo nas nossas pesquisas. E outra coisa, a gente usava instrumentos acústicos. Então ficou uma coisa mais atemporal. Não é aquele timbre de teclado que você poderia falar: “Não, isso é 1983”. Não! É o piano. O piano que hoje a gente vai usar. Basicamente é isso: esses dois tempos estão conversando muito bem.[21]

Descrever o conteúdo do álbum A Divina Increnca, depois de tentar contextualizar processos históricos e ancoragens estéticas do grupo homônimo, torna-se desnecessário e enfadonho, quando há registros raros no YouTube ao alcance de um Google ou clique — por exemplo, a apresentação promovida próxima à gravação do LP, pela TV Cultura, com a formação original, e os áudios na íntegra das versões em vinil e em CD.

A transcriação musical — inspirada na teoria da tradução poética de Haroldo de Campos — imaginada por Azael Rodrigues e Felix Wagner, lá em 1976, e executada com a adição de Rodolfo Stroeter, chegou às plataformas para fi(n)car. Democracia, às vezes, é apenas ouvir o que importa, o que se quer — sequer uma composição, acorde, fraseado ou voz a menos.

(PS: Registro que a capa do original presenteado a mim pelo amigo Luiz Carlos Calanca, da loja/selo Baratos Afins, recebeu do próprio Luiz um refile estratégico para não sofrer consequências drásticas desproporcionais aos cuidados empenhados em sua absoluta preservação por quatro décadas. A observação sobre o tamanho fora de padrão da capa do LP , no texto, mereceu este adendo, por ter sido atentado pelo próprio Luiz e, antes, pelo também amigo MAU.)

[1] McLuhan, Marshall. O Meio são as Massagens — Um inventário de efeitos. Rio de Janeiro: Record, 1969. p. 139.

[2] Stockhausen, Karlheinz. In: A música contemporânea. Rio de Janeiro: Salvat Editora do Brasil, 1979. (Biblioteca Salvat de Grandes Temas.) p. 35.

[3] Extraído de texto de Azael Rodrigues encartado no CD A Divina Increnca (Rio de Janeiro: Editio Princeps, 2007).

[4] Em 3 de dezembro de 1977, com um dia de antecedência, na seção Acontece, a Folha de S.Paulo divulgava o debute do grupo: “DIVINA INCRENCA — Duo formado pelo pianista Felix Wagner e percussionista Felix Wagner, interpretando composições de Keith Jarret e Hermeto Paschoal”. Como é evidente, também lá nos anos 1970, as publicações escritas careciam de revisão. Portanto, onde se lê a segunda ocorrência do nome Felix Wagner, era para constar Azael Rodrigues. Informação complementar: com entrada gratuita, a apresentação teve início às 16h.

[5] Carpeaux, Otto Maria. Uma voz da democracia paulista. In: BANANÉRE, Juó. La Divina Increnca. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2015. p. ix.

[6 ]Idem. p. xi, xii.

[7] Extraído de texto de Rodolfo Stroeter encartado no CD A Divina Increnca (Rio de Janeiro: Editio Princeps, 2007).

[8] Extraído de texto de Azael Rodrigues encartado no CD A Divina Increnca (Rio de Janeiro: Editio Princeps, 2007).

[9] Idem.

[10] WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: Uma outra história das músicas. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 20.

[11] BANANÉRE, Juó. Uvi strella. La Divina Increnca. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2015. p. 25.

[12] MEDAGLIA, Júlio. Uma linguagem brasileira. In: Pixinguinha. São Paulo: Abril Cultural, 1970. (História da Música Popular Brasileira.)

[13] RODRIGUES, Azael. Música instrumental do Brasil. In: SIBILA — Revista de poesia e crítica literária. Disponível em: http://sibila.com.br/cultura/musica-instrumental-do-brasil/4755 (acesso em: 20 fev. 2021).

[14] Depoimento a Zuza Homem de Mello, concedido em 1968, extraído de matéria de Carlos Calado publicada na Folha de S.Paulo, 10 jul. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com. br/fsp/especial/fj1007200810.htm (acesso em: 22 fev. 2021).

[15] Extraído de matéria de Carlos Calado publicada na Folha de S.Paulo, 10 jul. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/especial/fj1007200810.htm (acesso em: 22 fev. 2021).

[16] SOUZA, Tárik de. Tem mais samba — Das raízes à eletrônica. São Paulo: Editora 34, 2003. p. 187, 188.

[17] Extraído do texto de Carlos Calado, Pau Brasil: três décadas de música instrumental, disponível em: http://grupopaubrasil.com/historia/ (acesso em: 26 fev. 2021).

[18] aLBET, Montserrat. A música contemporânea. Rio de Janeiro: Salvat Editora do Brasil, 1979. (Biblioteca Salvat de Grandes Temas.) p. 111, 112.

[19] TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 157, 158.

[20] Depoimento de Felix Wagner, concedido a Lucas Rodrigues de Campos, extraído do jornal Coletivo sÓ. Disponível em: https://so0jornal.wordpress.com/jazz/divina-increnca/ (acesso em: 28 fev. 2021).

[21] Azael Rodrigues e Divina Increnca, Programa Instrumental Sesc Brasil, apresentado por Patricia Palumbo. Na íntegra, com ficha técnica completa, incluindo repertório e surpresas. Disponível em: https://www.instrumentalsescbrasil.org.br/artistas/azael-rodrigues-e-divina-increnca/programa-instrumental-em-22-julho-2008 (acesso em: 2 mar. 2021).

Fabio Giorgio — Escritor, autor de Na Boca do Bode — Entidades Musicais em Trânsito; pesquisador musical; produtor cultural, fonográfico e audiovisual, dirigiu Beleléu Cá Entre Nós — Itamar Assumpção antes do Nego Dito. Editou o zine Toxina F.C. Corroteirizou e coapresentou o programa Risco no disco, na USP FM. É diretor geral da BOCA de LOBO produções, cujo selo musical produziu e lançou em CD o álbum Escumalha, de Douglas Germano, e relançou em CD o álbum Retrato do artista quando pede, do Duo Moviola — Douglas Germano e Kiko Dinucci. Representa artisticamente Douglas Germano e o Duo Moviola. Nasceu e vive em São Paulo. Site: bocadelobo.art.br

Este texto faz parte da série ÁLBUM — 10 ANOS: DISCOS PARA CONHECER promovida pelo Sesc Belenzinho no mês de abril de 2021 no ambiente digital. O ÁLBUM é um projeto que nasceu em 2011 e trouxe aos palcos da unidade a performance integral de discos importantes da história da música brasileira. Nesta edição virtual, 12 discos brasileiros de gêneros e épocas distintos foram selecionados para escrutínio de jornalistas, críticos e pesquisadores musicais. Confira o livreto com a série completa aqui neste link.

--

--