Metáfora, Substantivo Feminino

Daniela Belmiro
3Devi
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2 min readNov 8, 2019
pisando em brasas, foto minha

Estes dias eu me peguei querendo um casaco que me fizesse sentir o que a vida raramente traz oportunidade de ser: pequena. Já fui, sim, “pequena”, no olhar e no léxico de um casamento que ficou pra trás. No mais, física e emocionalmente transbordante, sou mais descrita como in-ten-sa do que qualquer outra coisa (e nem sempre no bom sentido, digo logo). E bom, mesmo do lado de cá do mar, com tamanho médio significando algo diferente, haja lã para apequenar meu mais de metro e oitenta. Planos, planos.

Estes dias me brotou na memória — um tanto ineditamente, uma vez que é raro saber de cor o que eu mesma escrevi — um poeminha que de tão antigo estava só nos cadernos de papel que não atravessaram o mar comigo. Um tanto perplexa, e pensando nas desrazões do inconsciente neste meu mês de Arcano XVIII (Janela? Tsc, pelo jeito hoje vamos de porão mesmo), corri para anotar no mesmo caderno virtual que tem guardado as tentativas de prender igualmente os cavalos, leões e aviões explodidos que têm povoado os sonhos do período. “Não foi possível converter o caminho”, me avisa, pretendendo-se sutil — embora sincrônico — o aplicativo que tentei multitarefar agora mesmo em outra tela.

Estes dias, também, me dei conta de que nessa mesma tarde dos pés em brasa da foto, em que atinei de caminhar coisa de sete quilômetros margeando o rio depois que saí do vermelho do museu, eu percorri todos esses passos com um caco de vidro incrustado na sola do pé esquerdo. Que na altura, é claro, eu não sonhava que estava alojado lá. Havia a dorzinha, sim, um incômodo talvez de espinho mal saído, mas foi só semanas depois, diante da dor que não passava, que uma investigação mais séria fez brotar o — minúsculo, verdade, mas inquestionavelmente — vidro. Et voilá, eis que caminhei quilômetros não sobre as brasas de mentirinha da foto, mas sobre um caco de vidro bem real. Cravado certeiro na sola esquerda. A palmilha do tênis do dia ficou marcada por pequenos círculos concêntricos vermelho escuros, e eu, ruminando sobre essa minha capacidade absurda de resistir à dor e caminhar, e, ao mesmo tempo, sobre a necessidade de que, ainda assim, e no seu tempo certo, os cacos sejam todos espremidos para fora, expurgados. E, se o machucado do pé já virou casquinha e memória, o das ruminações mentais continua alive and kicking, espetando tudo aqui.

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Daniela Belmiro
3Devi
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— — malabarista de vazios, carangueja inventora de asas, a moça que escreve também no @desdicionario, @peeping_dani e @imagina.gram