tempo de absoluta depuração VIII

(5 escritos sobre os anos de chumbo)

André Frazão
2 min readJul 21, 2024

PÃO

“por que pão?” perguntam os vagabundos
acusando-me de incentivar vagabundagens
pedem para eu parar de camaradagem
com esses moribundos
cheios de tatuagens

“por que pão?”
questionam esses que se dizem irmãos
alguns orgulhosos de serem cristãos
julgando-me não entender a passagem

pedem – honrados da ideia
gritando para uma infame plateia
“não dê o pão, ensine o que fazer com trigo”
e dizem que corro perigo
por inflamar os reles da cidade

por que pão?
gritam em vão
mas nunca entenderão
enquanto tiverem alimento nas mãos.

TARDE DEMAIS

Já é tarde demais
Desde cedo ouço isso
E cada vez mais entardece
Por isso não há nem prece
Desde sempre sabemos
É tarde demais.

EMBALAGENS

As mãos que embalaram laranjas na quinta-feira
Não viram besteira
Quando passaram a embalar ventiladores.
No mês seguinte foram flores

Mas não houve questionamento.
Na segunda em que embalou cerâmicas, nenhum lamento
Depois de um tempo, foi a vez de embalar lixão.
Fez como devia, quando certo dia, acometido pela demissão

Algo lhe chamou a atenção.
“Que trabalho era esse que eu tinha?”
Se perguntou enquanto não se continha

De frustração, pensando que iria corroer.
Ao fim, a conclusão:
“Apenas fazia o que me mandavam fazer.”

INGERIDO

Engoli uma inverdade
Mastiguei uma ignorância
Vomitei uma boçalidade.

Em seguida, fui ingerido.

PERIGO

Certa noite vi um homem fazendo palhaçadas
Tirando risadas de uma multidão
Alguns, de tantas gaiatadas, apertavam a barriga com a mão
A fim de conter as gargalhadas.

Aproximando, pude ver claramente
O homem com tinta até nos dentes
Cabelos coloridos, roupa engraçadinha
Sapatos compridos, nariz de bolinha.

Pensei “É um palhaço!”
E esse foi meu percalço.

Esqueci desta contemporaneidade estranha
Apontei os dedos sem artimanha
E afirmei: “É um palhaço!”

Cessou a euforia, a risada se desfez
Os olhos se viraram todos de uma vez
A atenção agora estava voltada para o meu nariz
Meu riso amarelo foi ficando infeliz.

Foi quando entendi, um pouco lentamente
Se ofendeu o palhaço, da minha exposição
E me disse “Não não não
Você que é demente!”

São tempos de depuração
Eu havia esquecido
Veja só que perigo
Chamar coelho de coelho
Palhaço de palhaço
Nazi de nazi
Gente de gente.

Dei um passo para trás
Eles deram dois à frente.

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